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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Eu acuso ... Roman Polanski

Hugo Gomes, 27.01.20

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Uma sombra se projeta em todo este "J’Accuse" – a atualidade e a convergência histórica. E conforme seja a nossa opinião quanto ao "Caso Roman Polanski", difícil mesmo é separar este seu novo filme (vencedor de um Prémio Especial de Júri no Festival de Veneza) do seu autor. Por mais negações que o realizador dos clássicos “Rosemary’s Baby” e “Chinatown” faça sobre as ligações entre esta encenação da história verídica de Dreyfus, protagonista de um dos escândalos políticos e militares do século XIX (imortalizada pelo influente escritor Emile Zola sob o título “J’Accuse”), com as acusações e condenações de violência sexual que o cercam, é essa mesma natureza que dá uma invulgar dimensão ao filme.

Podemos esmiuçar parentescos entre os caos e “escavar” a pertinência do interesse de Roman Polanski em contar, exatamente, esta mesma história, mas “J’Accuse - O Oficial e o Espião” também é uma obra plena de um tipo cinema quase extinto nos nossos dias: classicista sem o ser e calculoso na temática, escapando do fervor da denúncia que passa por muitos outros filmes. Quase de uma forma erradamente pejorativa, dir-se-ia que estamos perante um “filme de velho”, construído e embarcado por um cineasta que tem atravessado as mudanças mais extremas da indústria, de produção a estéticas, e ao mesmo tempo resistindo a todas elas, tentando com isto perpetuar o seu cinema.

Curiosamente, Roman Polanski é um realizador de espaços, e como tal fez disso o seu perfeito signo autoral, seja na tão citada trilogia do apartamento (“Repulsa”, "Rosemary's Baby”, “The Tenant”), seja nos exercícios que fez durante a sua prisão domiciliária (“The Ghost Writer”, “Carnage”). Em “J’Accuse”, o espaço adquire uma perfeita analogia do enclausuramento moral que o filme conjuga com planos perfeitamente adaptados à sua "mise-en-scène". Nota-se, por exemplo, o cerco humano que delineia a ação na sua abertura: a despromoção, humilhação e condenação de Dreyfus (Louis Garrel) é o comité de boas-vindas para pressentimos um realizador preocupado com a estética estagnada de um filme que se queira político.

Todas as sequências que se seguem persistem nesse fascínio pelo adorno, pela reconstituição e pela atmosfera que se readapta ao clima imposto na história. É um policial sem o assumir, é um filme de tribunal sem o pretender ser é uma cinebiografia sem o desejar: “J’Accuse” é um gesto ativista corrompido por uma passividade, essa, a de fazer cinema como uma peça de “História Morta” (sem ênfases dramáticas nem epifanias), um exemplo trazido à luz para o “hoje”.

Portanto, estamos novamente a diluir Dreyfus e Polanski, mas até nisso há um calculismo minado porque não é à toa que o realizador se apropria do caso, assim como não é coincidência que o faça sob os embrulhos de um cinema estático que faz sobressair as suas qualidades técnicas e foge da mera temática de engodo...

O homem que quis ridicularizar Godard

Hugo Gomes, 23.05.17

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Há que admitir a coragem de Michel Hazanavicius em “biografar” aquele que para muitos é um Deus vivo da 7ª Arte. A repudia é iminente, visto que este estudo de um homem que decide reinventar-se, mais do que ele próprio, o seu cinema, soa como uma heresia de tal tamanho, e maior, tendo em conta o tratamento acordado nesta demanda antipessoal.

Encarnado por Louis Garrel, filho de um dos realizadores que mais estima tem por Godard, Philippe Garrel, o cineasta-representação é uma espécie de clown, um herdeiro indigno do slapstick do Buster Keaton ou das vontades de ridicularização de um Monty Python. Ele é uma “pinatta”, pronta a ser verdascada por Hazanavicius e pelo público. Cuspido como uma caricatura, uma imagem generalizada do gigantesco ego, porém, é aqui que reside o maior trunfo deste “Le Redoutable”, a ousadia de transfigurar algo divino, algo intocável, não ceder ao “crowd pleaser” de veneração ao ídolo.

Em entrevista, Hazanavicius falou que por vezes grandes artistas são péssimas pessoas. Não cabe a nós julgar Godard à distância, mas a História é a favor do criador de “Le Redoutable”. A sua instabilidade, o seu narcisismo, a sua obsessão pela afirmação no circuito artístico e político, elementos que contribuíram para a criação de novas linguagens cinematográficas, novas visões para além da narrativa, e ao mesmo tempo o levaram gradualmente ao registo eremita que os seus últimos filmes tem indiciado (convém salientar que não o perdoamos pela crueldade causada a Agnés Varda, captado em “Visages, Villages”).

Mas a crítica ácida e de coñojes termina aqui. O filme entra num registo de autodefesa, uma auto-humilhação para ser mais claro. Enquanto tenta estabelecer uma espécie de meta-cinema para esse propósito, assim como a personificação de Louis Garrel aclama tratar-se de um “ator” e não o “verdadeiro Godard” (reforçando com “ainda por cima um mau ator”), Le Redoutable adquire uma insegurança em seguir avante a sua ideia, em recear o culto godardiano munido de tochas e forquilhas pronto para o tumulto.

Depois há ainda a tendência de mimetizar os maneirismos dos filmes do “homenageado”, remetendo a um “La la Land” referencial, a um doce tranquilizador das fúrias estabelecidas. O resultado dessa brincadeira de parecenças é insuficiente, “espertalhona” e ao mesmo tempo míope, reduzindo toda uma cinematografia (anos 60) para adereços bibelôs. Porém, acima dessa leveza, existe Stacy Martin que se afigura como a atriz Anne Wiazemsky, a relação perturbada de Godard, e cujo esforço trespassa a previsível caricatura.

Um café com Vincent Macaigne: conversa com o "furacão" e ator de "Deux Amis"

Hugo Gomes, 01.05.16

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Une histoire américaine (Armel Hostiou, 2015)

O “furacão” Macaigne, como é assim apelidado pela imprensa, esteve em Portugal por alturas do Indielisboa. O festival lisboeta dedicou-lhe uma retrospetiva sobre o seu incansável trabalho como ator, produtor e realizador, e salientou o seu tremendo contributo para com as novas gerações que atualmente surgem no cinema francês. Falei com este “Herói Independente“.

É a sua primeira vez em Lisboa?

Sim, esta é a minha primeira vez. Tenho andado por aí a ver a cidade e Lisboa é realmente um local bonito … e bastante louco.

Como se sente ao saber que um festival lhe dedica uma retrospetiva?

Como eu me sinto? Bem, é bastante estranho porque eu não me sinto assim tão velho.

Acredita que as retrospetivas são para “velhos”?

Não nesse sentido, eu acredito que quando um festival dedica-te uma retrospetiva, é sinal de que algo precisa de mudar na tua carreira, ou seja, a partir daqui devo fazer algo diferente.

E ao saber que o festival dedicou-lhe uma retrospetiva em conjunto com a de Paul Verhoeven?

Bem, faz-me sentir bem pior em relação à velhice (risos). Agora a sério, é uma honra estar lado a lado com este cineasta, como homenageado num festival.

Em “Eden”, de Mia Hansen-Løve, Vincent interpreta uma personagem que a certa altura aclama o “infame” “Showgirls”, de Verhoeven, como uma obra-prima. Já viu o filme e partilha a mesma opinião da sua personagem?

Sim, eu vi o filme, mas posso dizer que não concordo com a palavra “obra-prima”. Essa frase é exclusiva da minha personagem, não partilho dessa opinião.

Em 2013, com três filmes em competição no Festival de Cannes, consideraram-no numa espécie de revelação do cinema francês, um novo “Depardieu” para ser mais específico. Foi, de certa maneira, nessa altura que se tornou uma presença habitual da mesma cinematografia. O que lhe fez interessar repentinamente pelo cinema?

Quanto à minha presença em Cannes, não foi bem isso que aconteceu. Apenas entrei em três filmes que porventura conseguiram integrar a seleção de Cannes, não fui nenhuma revelação como a imprensa apelidou. Todos os anos existe sempre um ator ou uma atriz que entra em mais do que um filme em Cannes e pronto, temos a revelação do ano. Quanto ao meu interesse no cinema, não foi algo que nasceu de repente, já possuía esse interesse há muitos anos, desde os meus tempos no Conservatório Nacional, apenas não havia ainda encontrado o melhor momento para fazer parte da indústria.

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Eden (Mia Hansen-Løve, 2015)

Um dos seus trabalhos mais recentes foi na produção "Les Deux Amies", no qual foi dirigido e contracenou com Louis Garrel. É bem verdade que vocês já se conheciam? Como foi trabalhar com Garrel como realizador?

Eu conhecia Louis Garrel desde os tempos do Conservatório Nacional, participamos em algumas peças juntos e desde então tornamo-nos amigos. Entretanto entrei na sua curta de “La Règle de Trois” e a coisa até correu bastante bem. Algum tempo depois convidou-me para integrar o elenco da sua primeira longa-metragem, “Les Deux Amies”, e obviamente aceitei. Louis tem muito talento e divertidas ideias fixas. Mesmo tendo sido o seu primeiro grande filme, soube perfeitamente lidar com todo o tipo de situações que poderia prejudicar qualquer “novato“. Digamos que o cinema está no seu gene.

Já que refere o Conservatório Nacional, para si qual é o mais desafiante, o teatro ou o cinema? Qual deles prefere?

São dois “palcos” completamente diferentes. No teatro, o espectador vê o presente e o ator representa o momento. No cinema, é uma questão de memória, o espectador vê uma interpretação ultrapassada, apenas gravada. Ao contrário do teatro, o cinema mexe no passado das coisas. Outro exemplo é quando adotamos uma personagem no teatro e esta tem tendência a alterar-se em cada sessão, existe um improviso evidente. No cinema, a personagem é trabalhada e depois de filmada é tudo aquilo que está exposto e pronto.

Voltando ao ponto da imprensa, esta refere-lhe que de certa maneira está a levar o cinema francês para uma Nova Vaga. Concorda?

Não me considero como tal, por vezes a imprensa exagera nos títulos e nas descrições. Apenas gosto de representar e estou aberto para qualquer proposta, seja cinema de autor ou filmes de alto orçamento. Aliás, eu entrei recentemente em "Les Innocentes", de Anne Fontaine, que é um filme grande.

O que tem a dizer sobre o estado atual do cinema francês?

É uma indústria muito diversificada, são vários os filmes gerados por ano, penso que sejam mais de mil, não tenho a certeza. É muito difícil avaliar qualquer tipo de estado.

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La Fille du 14 juillet (Antonin Peretjatko, 2013)

Quanto a novos projetos?

Neste momento encontro-me em plenas filmagens de “Les Philosophes”, um filme de Guilhem Amesland, e estarei no elenco de “La Loi de la Jungle”, que foi rodado na Amazónia e é escrito e realizado por Antonin Peretjatko que é o mesmo de “A Rapariga de 14 de Julho”.

Existe a possibilidade desse último filme estar em algum festival?

Julgo que não, “La Loi de la Jungle” tem estreia marcada para julho.

Gostaria de regressar a Cannes?

Sinceramente, Cannes é um ótimo festival para filmes, mas para mim é muita confusão, uma pessoa não consegue desfrutar aquilo direito. Prefiro festivais mais pequenos como este aqui. Uma pessoa pode ver filmes, conviver, fazer turismo com a maior das tranquilidades e isso é precioso.

Se recebesse algum convite para Hollywood, aceitaria?

Claro que sim, mas duvido que me convidem até porque tenho grande dificuldade em falar inglês.

Os Sonhadores

Hugo Gomes, 17.12.15

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Se tivéssemos que avaliar atores como raças caninas, então difícil seria negar a existência de pedigree em Louis Garrel, o filho do cineasta Philippe Garrel, o neto do ator Maurice Garrel e ainda afilhado do também ator Jean-Pierre Léaud (o imortalizado Antoine Doinel dos “Les Quatre Cents Coups”, de Truffaut). Porém, não estamos aqui a discutir a árvore genealógica do protagonista de “The Dreamers”, mas sim confirmar a sua experiência, ou a possibilidade desta, captada na sua própria faceta artística. Talvez seja esse contacto direto com o Cinema, um dos motivos para avançar da interpretação para a realização de uma primeira longa-metragem. 

Estampa-lo com a expressão “tal pai, tal filho” é visto como uma pura hipocrisia para ambos os lados. Não só Louis difere das influências supostamente recebidas pelo seu progenitor, como demonstra uma jovialidade mais hiperativa e simultaneamente, ao contrário do que se poderia imaginar, “acorrentada” aos velhos costumes da cinematografia francesa. Aliás, como o próprio havia salientado numa visita a Lisboa, é previsível apelidar o seu filme como um filme francês na sua ingénua forma. 

“Les Deux Amis” (“Os Dois Amigos”) resulta na enésima abordagem do ménage-à-trois francês, um conjunto de relações afetivas (romance e “bromance“) que chocam neste composto triângulo isósceles, onde o terceiro elemento (Golshifteh Farahani), de natureza misteriosa, tem como propósito perturbar uma já vincada amizade masculina. A desmistificação dos três estarolas sem pingo de slapstick, mas que encontram o comic relief no embaraço – na humilhação das suas personagens – apresentam uma espontânea vontade de destacar num mundo firmado pelas rotinas agendadas. 

Esse mesmo trio "quebra o gelo” de alguma forma, vivendo o dia como fosse o último das suas respectivas vidas. “Os Dois Amigos” é também um retrato sobre a maturidade, por vezes precoces em contraste com um período globalizado e recheado de medos interiores. Aqui, as personagens masculinas são "bebés grandes“, seres inadaptados a responsabilizar dos mais cruciais atos, e ela, dotado por um propósito quase “disnesco” de procurar algo mais na limitações do seu quotidiano. 

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Escrito a meias com o seu amigo Christophe Honoré e co-protagonizado com outro amigo seu, Vincent Macaigne, o realizador Louis Garrel providência dos elementos mais estereotipados do cinema francês para recriar uma interpretação íntima desses mesmos códigos. De tal maneira que este “Os Dois Amigos” funciona como uma prolongada reinterpretação do êxito de “The Dreamers: Os Sonhadores”, de Bernardo Bertolucci, o qual também protagonizou um tão famoso ménage-à-trois. “Queria fazer amor com este filme”, disse o próprio realizador / ator quanto aos desejos desta sua estreia na direção – concretizar uma obra íntima – um prazer seu que possa ser partilhado pelos demais. 

Até certo ponto, Louis tem razão, o cinema não tem que ser um entretenimento de massas pensado e automatizado por produtores para preencher uma faixa ou classe etária, mas sim, um pedaço de nós (cineastas) com o deleite de ser distribuído para um terceiro elemento: o espetador. Nesse ponto de vista, Louis Garrel aprendeu com o seu pai, mesmo que o seu cinema não traga nada de novo para estas “bandas“.