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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Apontamentos de um gesto desaparecido à lá Ruiz

Hugo Gomes, 14.10.18

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A pomposidade dos dramas de época levam-nos a este antídoto, uma reconstituição míope, despojada, que se apoia sobretudo na palavra e na crença ostentada pelas suas personagens em tempos expirados. Adaptação de “O Livro Negro de Padre Dinis”, uma espécie de prequela de “Os Mistérios de Lisboa” de Camilo Castelo-Branco, o testemunho deixado por Raoul Ruiz à sua mulher, Valeria Sarmiento, torna-se numa bandeja à memória pós-tumulo do seu “eterno amante”, tendo como objetivo máximo a concretização de uma “ressurreição”. Triste será dizer que não encontramos alternativa, nem regresso a espíritos passados: Ruiz desapareceu do nosso Mundo (infelizmente teremos que aceitar isso), Sarmiento apenas arma uma fita com o afeto memorial.

Talvez seja por isso que exista aqui um certo desdém, diríamos antes, sentimento de estranheza, como um substituto deslavado se tratasse, mas é dentro dessa mesma irreconhecibilidade que somos afrontados com um romance de outrora e de salvaguardado fatalismo, que despeja lirismo nos seus gestos automatizados com uma fé inabalável. Prolongando a linha … diríamos antes … as “Linhas de Wellington” (projeto inacabado de Ruiz que Sarmiento assumiu sem alternativa), em “O Caderno Negro” somos puxados à limitação cénica e conflituosa, mas nem por isso ilimitados da nossa imaginação.

Não se sentia assim desde o primitivismo trazido pelos “teatros de época” de Oliveira ou a manobra temporal de Olmi em “Il Mestiere delle Armi” (2001), a reconstituição que não prima pelo detalhe visual nem sequer assumindo a réplica aludida, mas a recomposição de um certo parecer, antes de mais ser. É um filme enquadrado numa vontade, o gesto assimilado ao invés do gesto realizado da credibilidade, de facto, ficamos no impasse de uma obra cuidada e alegadamente cúmplice do seu artificialismo. E mesmo sob uma passiva narrativa de contos e recontos de uma adaptação reduzido ao esquematismo, algo quase alicerçado a um certo cinema de autor, “O Caderno Negro” provém de uma veia classicista, não no seu formato mas das contrações espirituosas. Aliás, somos conduzidos à tragédia de romances incumpridos, como juras de amor que imobilizam vidas e imortalizam mortes. Aí deparamos, o seu vínculo reafirmado da pomposidade da palavra e dos sentimentos anexados.

Falando em “anexos” e antes que seja tarde, miremos a beleza e a doçura amargurada de Lou de Laâge, a mera figura acorrentada a um drama maior que ela própria.

Quem espera sempre alcança ...

Hugo Gomes, 14.04.16

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O cinema é dotado de uma linguagem, um dialeto trabalhado e aperfeiçoado por mais 100 anos de existência e que tal esforço se traduz através do seu visual. Tornando-se, segundo a teoria mais básica e prática do funcionamento expressivo da Sétima Arte, no “ingrediente fundamental” da narrativa cinematográfica. Mas por vezes surgem filmes cuja verdadeira história faz-se através dos silêncios, do ausente, do que não é mostrado, nem em campo, nem sequer fora de campo, é a sugestão poética invocada em cada frame, em cada plano, em olhar e obviamente em cada gesto. E são filmes como este - “A Espera” (“L'attesa”) - que nos fazem acreditar que o cinema é muito mais do que imagens, são sentimentos celebrados, neste exemplo, velados no recanto mais obscuro e ao mesmo tempo mais luminoso.

A primeira longa-metragem de Piero Messina recorre a um enredo tão minimalista que persegue em toda a sua duração; uma mãe de luto pela perda do seu filho, agora encarregue de revelar tal morte à namorada deste. Um objetivo constantemente procrastinado como representasse os “cinco minutos de Paraíso” entre uma mãe a fim de conviver com os últimos redutos da memória do seu “rebento”. Messina trabalhou com Sorrentino em duas obras (incluindo o consagrado “La Grande Bellezza”), sendo possível as comparações do seu visual com o seu anterior “mestre”. E que visual apresenta! Como um quadro de Caravaggio, Messina aproveita a luz e as sombras para conceber um palco de ilusão, onde lutos são ocultados mas não desviados da nossa atenção, com efeito disto, o realizador tem na sua mão um exemplar tradicional em consolidação com a sofisticação da fotografia.

O tradicionalismo transmite uma carga poética que aufere uma sensação de “amarcord“, neste caso a nostalgia constantemente referida. Se o “olhar” é importante na tradução narrativa da fita, a música transcreve esse ambiente em seu proveito. Com The Missing, de The XX, a conferir os créditos iniciais como um anunciado velório ou Leonard Cohen e o seu “Waiting for a Miracle” a perpetuar e relembrar o silencioso conflito que afronta a obra, nesta particular sequência envolvida numa dança sedutora como uma serpente e o seu flautista, é ditada por um jogo de olhares, uma envolvência que as duas personagens principais parecem compreender.

Aqui a cumplicidade é dita através do “não visto”, com Juliette Binoche a compor uma mulher sofisticada, abalada pela perda, e cujo luto torna-se no seu lar de emoções, por outro lado, Lou de Laâge (a estrela de “Respire”, de Mélanie Laurent), é uma jovem involuntariamente presa a uma ilusão. As duas atrizes completam-se numa sincronia de gestos, como tal, basta apenas verificar a emocionante cena em que Binoche adia a revelação e a reação sublime de Laâge perante em tão doce e vil mentira.

Como se tudo fosse uma questão de esoterismo, o clímax de “A Espera” é arrostado com a visita de fantasmas, ilusões, memórias, conforme quiserem descrever, operando como verdadeiros “Deus ex Machina” neste autêntico peso da confissão. Mas a verdade é que Piero Messina não possui preocupações com a linearidade da narrativa, apenas implica a forma como esta transcende à sua estrutura. Por outras palavras, existem dois filmes aqui. O orquestrado pelo visual e aquele que é dito por palavras mudas, esse, sim, a verdadeira obra nesta tão sublime pauta.