Denise Fernandes: "A autenticidade, para mim, não é algo que se procura, mas sim algo que se respeita."
“Peço desculpa pelo que vai acontecer [risos]. Tenho conversado com alguns colegas meus que já a entrevistaram nos últimos dias, portanto, algumas questões que lhe farei já as fizeram anteriormente”, “Não faz mal [risos]”, responde a voz do outro lado da linha.
Uns quantos aviões passam. Lisboa, de céus tão exaustos desses aços alados, deixa-se rasgar por um barulho por vezes insuportável. Contudo, nem as forças antagónicas saídas do aeroporto Humberto Delgado impediram a conversa — breve, mas reveladora — com Denise Fernandes, laureada há poucos dias na 22.ª edição do IndieLisboa, ao conquistar a Competição Nacional com a sua primeira longa-metragem, “Hanami”. Já consagrado em Locarno, chega agora às salas portuguesas prometendo um bilhete, só de ida, para a Ilha do Fogo, em Cabo Verde.
O filme aponta mar adentro até desembarcar no refúgio atlântico, entre escombros e casas-fantasmas, onde a pequena Nana, nascida e criada ali, vê os outros partir e “conquistar Mundo”, esse mesmo que, para ela, apenas presente naquele pedaço de terra à beira do vulcão. Em contraste com o ruído incansável de Lisboa, aquele paraíso insular instala-se num silêncio quase melódico. Por entre festejos de funaná com muita comida e doces de coco para sobremesa, é nas proximidades do cume e da terra batida em cinzas que a ausência de som nos transporta para outras eras, ou, quem sabe, para outros realismos, mágicos até. Contudo, Denise Fernandes não quer delirar: quer autenticar. Ir atrás do que realmente representa Cabo Verde — as suas gentes, as diásporas, as antípodas, a identidade de “ser cabo-verdiana”.
Sem mais demoras, segue uma breve conversa do Cinematograficamente Falando… com a realizadora: sobre a obra-destaque, os olhares, existencialismos e simbolismos, e, acima de tudo, autenticidade. A palavra de ordem.
... Só um momento... vai passar mais um avião!
Antes de conversarmos gostaria de lhe dar os parabéns pelo Prémio do IndieLisboa [Competição Nacional], do passado domingo, como também pelos prémios conquistados no Festival de Locarno no ano passado [Cineasta do Presente em 2024]. Portanto, começo exatamente por aí: sendo “Hanami” a sua primeira longa-metragem, o que significam para si estas distinções? E que tipo de impulso ou motivação podem trazer à sua carreira?
A maior recompensa para um filme como “Hanami”, que não é de todo um filme comercial, é, sem dúvida, a visibilidade. Filmes independentes, de autor, não têm o mesmo acesso a promoção e distribuição que os comerciais. Por isso, o reconhecimento através de prémios pode dar precisamente isso: mais visibilidade. E essa mesma é essencial para projetos com esta dimensão.
Antes de “Hanami”, a Denise já tinha realizado algumas curtas, nomeadamente “Nha Mila” (2020), estreado também em Locarno, que lhe deu alguma projeção. Que desafios encontrou na transição para a longa-metragem?
Foram muitos. Quando estudamos cinema, como foi o meu caso, fazer curtas faz parte do percurso académico, mas não há um caminho claro ou direto para seguir para uma longa. É um processo muito mais longo e complexo.
Tudo o que acontece antes de filmar uma longa envolve anos de desenvolvimento, preparação, tentativas de financiamento. Um dos maiores desafios foi, precisamente, perceber como se faz uma longa: por onde começar, o que é suposto fazer em cada fase. E isso varia muito: depende do país, do contexto de produção, da língua, do sítio onde se vive.
No meu caso, o primeiro grande desafio foi este: tinha uma ideia, mas como é que chego a concretizá-la?
Numa recente entrevista foi abordada a questão do regresso a Cabo Verde. No entanto, mencionou que não é originária da Ilha do Fogo onde o filme decorre. O que a atraiu cinematograficamente nessa ilha, ao ponto de situar aí uma história tão pessoal?
É verdade, os meus pais são da Ilha de Santiago, não do Fogo. Mas muitos dos temas abordados em “Hanami” — a diáspora, a espera, o vínculo ao território — são comuns à identidade cabo-verdiana no geral. Então, mesmo não sendo do Fogo, esses temas dizem-me respeito. Escolhi a Ilha do Fogo porque as suas características — tanto geográficas como simbólicas — estavam alinhadas com a história que queria contar. Foi quase ao contrário: primeiro escolhi a ilha e só depois surgiu a história. Para mim, “Hanami” não podia acontecer noutro lugar. A ilha, com a sua paisagem, a sua energia, foi determinante.
Denise Fernandes e o produtor Luís Urbano [O Som e a Fúria] durante a apresentação de "Hanami" na antestreia no Batalha Centro de Cinema.
Numa outra entrevista, julgo que foi uma reportagem de Cabo Verde onde a Denise iria programar sessões do “Hanami” para a comunidade da Ilha do Fogo, ressaltou a importância de trazer autenticidade às pessoas e aos locais retratados no filme. Tendo em conta que a Ilha do Fogo tem sido representada por realizadores estrangeiros — como Pedro Costa, entre outros —, gostava que me falasse sobre essa necessidade de um olhar interno. E também sobre o realismo mágico presente em “Hanami”, como é que ele se cruza com esse conceito de autenticidade?
A autenticidade, para mim, não é algo que se procura, mas sim algo que se respeita. É um compromisso com as pessoas que vivem aquilo que estou a filmar. Sendo cabo-verdiana, embora não do Fogo, senti que o mínimo que podia fazer era garantir que quem vive na ilha se reconhecesse no retrato que apresentava.
Quanto ao realismo mágico, não foi uma escolha estilística deliberada no sentido clássico. Cresci a ler livros infantis onde tudo era possível; personagens que voavam, portas que se abriam para jardins infinitos. Mas raramente vi essas possibilidades aplicadas ao contexto africano. Era como se a África fosse sempre apresentada como lugar de limites, de carência. Com “Hanami”, quis contrariar isso.
A “magia” no filme não foi inventada, ela já lá estava, na forma como as crianças veem o mundo, nos rituais, na paisagem. Apenas a aceitei como parte do universo. Para mim, filmar o realismo mágico foi filmar o real, só que com os olhos de quem está disponível para ver o invisível.
Quando pensamos na Ilha do Fogo no cinema, é difícil não lembrar imediatamente de “Casa de Lava”, do Pedro Costa, por exemplo, e de outros autores portugueses que, depois dele, foram a Cabo Verde retratar as suas próprias ideias sobre o país. O seu filme parece contrariar essas visões externas. Tem alguma posição sobre essa tradição? Vê o “Hanami” como um gesto consciente contra esse olhar?
Sim, tinha consciência de que a Ilha do Fogo já tinha sido filmada por olhares exteriores, e, de certa forma, também o meu é um olhar exterior: como disse sou da diáspora e não nasci naquela ilha. Mas escolhi não me focar nesses outros filmes. Quis concentrar-me no meu percurso, no que desejava contar.
Dito isto, claro que desejo uma mudança: um futuro onde as histórias de Cabo Verde sejam contadas de dentro para fora. Onde a ilha não seja apenas um cenário exótico, mas um lugar com voz própria. O ideal seria que os próprios realizadores cabo-verdianos tivessem os meios e as oportunidades para narrar o seu país. O que já foi feito está feito — não costumo comentar. O que me interessa é o que ainda está por vir, e o que podemos construir a partir de dentro.
Mas existe um momento, diria até, quase de antípoda no seu filme. Há uma energia japonesa, não só representada no título da obra (“Hanami” = palavra nipónica que significa “contemplar as flores de cerejeira”) como também em vários elementos a certa altura. Porquê o de cruzar estes universos tão distintos? Há uma tentativa de aproximação entre culturas que aparentemente estão nos antípodas?
O tema do Japão é, ao mesmo tempo, simples e complexo. Não queria que o filme fosse só sobre uma ilha isolada no mundo. Queria mostrar que essa ilha também pode estar ligada ao resto do mundo, que há pontes possíveis, mesmo que pareçam improváveis. E, pessoalmente, novamente, enquanto cabo-verdiana da diáspora, cresci com uma certa narrativa sobre África como um lugar distante, quase incomunicável com o resto.
Aceitamos muitas vezes essas narrativas sem as questionar, e isso é doloroso. O que tentei fazer com o “Hanami” foi contrariar isso: criar uma metáfora de aproximação. A presença japonesa não é um exotismo gratuito, é um exercício de empatia, de espelhar experiências humanas aparentemente distantes que, afinal, podem ter muito em comum.
Posso avançar que a tartaruga presente nesses “espaços de aproximação” funciona como uma subtil representação do Tempo? Ou é apenas a minha leitura?
A tartaruga? Sim, pode representar muitas coisas — o tempo, a continuidade, o ritmo da natureza. Mas prefiro deixar isso aberto à interpretação de cada um [risos].
Voltando ao território da autenticidade, e novamente àquela reportagem em Cabo Verde: você falou sobre trabalhar com não-atores. Gostaria de saber mais sobre essa escolha e como isso se relaciona com a autenticidade do filme.
Na verdade, essa não foi uma escolha consciente no sentido de querer trabalhar com não-atores. A realidade é que estamos a falar de Cabo Verde, de um país que não tem uma indústria cinematográfica forte, como em Portugal, França ou nos Estados Unidos, onde há uma enorme disponibilidade de atores profissionais. Para fazer um filme em Cabo Verde, na Ilha do Fogo, e especialmente em locais remotos, como o Pacífico, sabia desde o início que ia ser feito com pessoas locais, da própria ilha. Quase todos os atores portugueses presentes no filme nunca tinham feito filmes antes. Isso não era apenas uma escolha minha, era uma realidade do contexto em que estávamos a trabalhar.
No entanto, penso que isso acabou sendo uma das maiores riquezas do filme. Eles trouxeram uma autenticidade e uma naturalidade para as suas personagens que não teria conseguido alcançar de outra forma. Mesmo sabendo que não eram profissionais, eles deram muito ao filme. Para mim, trabalhar com não-atores foi uma maneira de ter uma conexão mais direta e genuína com as pessoas e a história, sem as formalidades e os limites que às vezes um ator profissional pode trazer. Foi um grande desafio, mas também uma experiência profundamente enriquecedora.
Só mais uma questão que tem a ver com o trabalho com não-atores. Sabemos que em muitos filmes, quando se trabalha com não-atores, ou atores não profissionais, como muitos preferem apelidar, há sempre esse elemento de autenticidade que é difícil de conseguir com profissionais. Como é que você lidou com a direção dos não-atores? Foi um desafio maior para você, já que, como você mencionou, a maioria deles nunca tinha atuado antes?
Sim, foi um desafio grande, porque, de facto, a maior parte das pessoas que participaram no filme não tinham experiência com a atuação. Mas, ao mesmo tempo, isso foi uma grande vantagem para o projeto. Ao contrário do que poderia parecer, a falta de formação formal em interpretação não limitou as pessoas, porque elas trouxeram algo que nenhum ator profissional poderia oferecer: uma espontaneidade, uma forma muito pura de expressar emoções, que é muito característica de quem vive naquele ambiente.
E a direção foi algo que teve de ser ajustado constantemente, porque era necessário trabalhar mais com as emoções e as reações naturais das pessoas do que com a técnica de atuação. Queria que as personagens fossem verdadeiras, não criadas, e, por isso, o trabalho foi mais de orientá-las para o que a cena exigia, mas sem perder a autenticidade. A maior parte das cenas foi construída no improviso, e as reações, as interações entre os personagens, eram muito naturais. Foi importante também criar um ambiente de confiança com eles, onde se sentissem à vontade para se expressar sem medo de errar.
Claro que houve momentos difíceis, como seria de esperar, especialmente em algumas cenas mais emocionais, mas, no final, tudo isso acabou sendo uma das maiores riquezas do filme. Eles estavam completamente imersos nas suas personagens e na história, e isso é algo que é muito difícil de reproduzir com atores profissionais. Para mim, foi uma experiência extremamente gratificante, o de dar voz a quem nunca tinha sido ouvido nesse contexto cinematográfico.
No terceiro ato do filme, há uma forte questão identitária em jogo, principalmente relacionada à protagonista e ao seu conflito com a mãe, e até mesmo à recusa de ir com ela para fora da ilha. Encaro isso como um dos pontos centrais do filme — um questionamento profundo sobre o que significa “ser cabo-verdiano hoje”, na diáspora, e mesmo na ilha. Gostaria de saber o que você pensa sobre isso. Ou, numa questão mais aberta, que “significa ser cabo-verdiano” para você?
Ah, essa é uma pergunta que não tenho uma resposta definitiva, e gosto muito de não ter [risos]. Para mim, a beleza dessa questão é justamente a sua resposta indefinida. O que significa ser cabo-verdiano é pode variar de pessoa para pessoa, de experiência para experiência, e, por isso, também gosto que o filme lance essas perguntas ao espectador, sem impor uma resposta clara.
É claro que, hoje, ser cabo-verdiano tem a ver com o que estamos vivendo agora, mas talvez também com o que já foi vivido e isso não é algo estático. O conceito de identidade é fluido, e também muda dependendo do tempo e da perspectiva. Gosto da ideia de que a resposta não é algo fixo, algo que se pode definir de uma vez por todas. Cada pessoa tem a sua própria experiência, a sua própria vivência da identidade cabo-verdiana. E o filme, para mim, abre esse espaço para reflexão, sem querer forçar uma única visão sobre o que é ser cabo-verdiano.
Agora, para terminarmos a nossa conversa, gostaria de saber se, sendo esta a sua primeira longa-metragem, que vai ser lançada nos cinemas portugueses esta semana, você já tem novos projetos em mente? Está a pensar em mais uma longa-metragem? Ou algum outro tipo de projeto?
Não sei... A minha resposta é muito simples. Espero que sim, mas também sou muito reservada com relação a isso. Na verdade, não gosto de falar muito sobre projetos antes de estarem realmente concretizados. Para mim, os meus filmes são quase como segredos, protejo muito o processo e os projetos. Considero que as pessoas só devem saber o que o filme vai ser quando ele chegar aos cinemas. Então, mesmo que tenha uma ideia ou sinopse, nunca diria exatamente o que vou fazer, porque para mim, o processo criativo é algo que deve ser protegido até o momento em que o filme se concretize. Espero que consiga fazer a segunda longa-metragem, mas, de facto, ainda está tudo muito no início.
Dizem que a segunda longa é ainda mais desafiadora do que a primeira. Vamos ver. [risos]