A toxicidade que nos envolve: uma conversa com Saulė Bliuvaitė, realizadora de "Toxic"

Toxic
Em 2024, com o Leopardo de Ouro na mão, a lituana Saulė Bliuvaitė consagrou-se à sua primeira longa-metragem, “Toxic”, uma obra que navega numa decadente cidade industrial pós-soviética, habitada por uma juventude marinada em frustrações e inquietações, impedida de viver os seus próprios momentos. No centro encontramos Marija, adolescente de 13 anos, à procura de um lugar, de um círculo a que possa chamar seu, talvez de uma identidade. Para isso, aventura-se nos sonhos alheios, num casting de modelos que recruta e promete encontrar a nova face das passarelas.
Um ano passou desde o brilho daquela estatueta felina e “Toxic” chega aos cinemas portuguesas sob a tutela da Zero em Comportamento, a distribuidora coincidentemente inscreve-se como subtítulo para esta fábula desencantada e austera, onde o realismo impregnam nos sonhos sequestrados da jovem, numa “ode” ao fim da inocência, não apenas estação, nem geracional, e sim da infância nas sociedades modernas, com a “adultização” no clamor das discussões e as influências de outras forças, politizadas ou não, do virtual e ao não-virtuosismo. “Toxic” é sobre toxicidade no fundo.
Conversamos com a realizadora sobre esta sua crónica jovial aplaudida no Festival de Locarno e a realidade que acarreta nos seus ombros.
Ao ver “Toxic”, deparei-me com um filme altamente atmosférico, e este factor funciona como um vector, porque nela se reflete a psicologia das personagens. Daí perguntar, visto ter essa sensação, da ideia deste filme ter nascido a partir de imagens e daí desenvolver-se conceptualmente e tematicamente?
Sim, diria que não sou uma realizadora que começa uma história ou um filme a partir de palavras, de uma sequência de acontecimentos ou diretamente do argumento. Para mim, tudo embarca nas imagens. Algumas surgem na minha mente ao que depois tento ligá-las e dessa forma criar uma narrativa que as una. No caso deste filme, a primeira imagem que me surgiu foi a de uma cidade industrial, muito desolada, e duas pequenas figuras – duas raparigas – ao longe, a caminhar em direção a uma fábrica. Elas pareciam quase recortadas e coladas naquele cenário, como se não pertencessem àquele lugar. Pela aparência, pelas roupas, pela juventude, destoavam do ambiente, e, ao mesmo tempo, era difícil adivinhar a idade delas.
Foi a partir dessa imagem que comecei. Ela ditou o espaço e as duas personagens principais. Portanto, diria que comecei com três elementos: duas raparigas e a paisagem.
A paisagem é mesmo muito importante. É uma comunidade industrial pós-soviética em decadência, e o filme transmite esse sentimento – uma decadência humana, social, e também alicerçada à falência da infância (a Marija, por exemplo, parece querer crescer mais rápido do que a idade permite). No fundo, este filme é uma crítica a uma sociedade onde já não há espaço para uma infância verdadeiramente infantil?
Sim, acho que esse é um dos temas do filme. Tanto a Marija como a Kristina querem crescer depressa porque sentem que têm de decidir já, apesar de terem apenas 13 anos, o que querem fazer na vida, como vão ganhar dinheiro… Esse é um tipo de pensamento capitalista: introduzir a pessoa na máquina de produção de riqueza o mais cedo possível.
Vemos as raparigas a serem arrancadas da infância e atiradas para responsabilidades demasiado grandes. Elas próprias acreditam que têm de assumir responsabilidades que, na verdade, não lhes cabem enquanto crianças. Estão num ambiente que as faz pensar que já deviam trabalhar, ganhar dinheiro. Há uma cena em que a mãe visita a Marija e ela diz: “Estou na escola de modelos, vamos para o estrangeiro trabalhar”. A mãe ri-se: “Trabalhar? Mas tu és uma criança!”. Esse contraste percorre o filme: o que realmente é responsabilidade de uma criança e o que a sociedade lhe impõe precocemente.

Saulė Bliuvaitė
Então, de certa forma, o filme fala do fim da inocência na sociedade ocidental?
Sim, embora não veja apenas como uma leitura política. A decadência da juventude que referiste é também muito característica desta idade em particular. Aos 13 ou 14 anos, há um dia em que se acorda e se decide: “A partir de hoje vou ser adulto”. Tal reflete-se na forma de vestir, na maneira de se comportar, de se apresentar. Muitas vezes de forma exagerada, quase forçada.
Depois, alguns anos mais tarde, percebemos que era uma ilusão, que não havia necessidade de tanta pressa. Por isso quis retratar esta idade, em que a identidade é fluida: uma pessoa pode parecer criança, mas também pode parecer adulta.
Lembro-me de ver fotografias minhas dessa idade e mostrar a outras pessoas. Perguntava: “Que idade achas que eu tinha aqui?” Respondiam: “18, 19 anos?”. Mas tinha 13 ou 14. Isso acontecia muito por causa da forma de nos apresentarmos: roupa, maquilhagem, cabelo. Mais tarde, há uma espécie de recuo.
Por isso, eu não diria que é apenas uma história politizada. É também sobre essa fluidez de ter 13 anos.
Não quero compará-las directamente, mas as cenas de casting que apresenta nesta sua obra fizeram-me lembrar a primeira sequência de “Triangle of Sadness” de Ruben Ostlund. Isto porque, nos dois filmes, o mundo da moda aparece sem qualquer pingo de glamour, é seco, frio e … triste. Esses castings, como os mostras em “Toxic”, acontecem mesmo assim, de forma tão crua e apática?
O que se mostra em “Toxic” não é propriamente a indústria da moda, mas uma referência a instituições um pouco duvidosas que se apresentam como parte dessa indústria para parecerem legítimas. Na verdade, funcionam sobretudo como negócios para os donos ganharem dinheiro. Estas escolas existiam muito quando era adolescente, lá para o final dos anos 2000. Havia imensas! Estavam em plena expansão. Hoje em dia há menos, porque surgiram mais regulações na Europa. Agora, por exemplo, as casas de moda já não podem contratar modelos menores de idade, mas naquela altura era diferente. Lembro-me até de pessoas irem à minha escola e pedirem às raparigas para se levantarem, convidando-as a integrar agências. As jovens eram “caçadas” por todo o lado.
Enquanto escrevia o guião, uma atriz lituana contou-me uma experiência pessoal. Ela tinha trabalhado como modelo e foi chamada para uma sessão fotográfica num hotel degradado. O ambiente era assustador: cada rapariga entrava sozinha no quarto com um fotógrafo estrangeiro, num cenário muito suspeito. Quando ouvi isso, pensei: “Isto ainda acontece”.
Portanto, não é bem a indústria da moda oficial, mas um submundo que explora os sonhos e as inseguranças destas raparigas. Dizem-lhes: “És linda, podias ser modelo, vem connosco, paga uma quantia enorme e nós mandamos-te trabalhar para o estrangeiro”. E mesmo nas agências legítimas, quando enviam adolescentes para fora, elas enfrentam horários duríssimos, quase não recebem dinheiro e vivem experiências muito duras.
Uma curiosidade: o título internacional é “Toxic”, mas em lituano é “Akiplėša”, e pelo que li essa palavra não tem tradução em mais nenhuma língua …
É verdade, não existe tradução literal. Akiplėša resulta da junção de duas palavras: aki (olho) e plėšti (arrancar). Significa alguém totalmente desavergonhado, sem pudor. Literalmente, como se fosse “arrancar os olhos a alguém”, de tanto descaramento. É uma palavra antiga, que as avós usavam. Por exemplo, se roubasses maçãs do quintal de alguém, podiam chamar-te akiplėša. Decidimos recuperar esse termo, que quase já não se ouvia.

Toxic
Então o título internacional está bastante distante do sentido original?
Há uma ligação. Pode-se dizer que uma pessoa akiplėša é uma pessoa tóxica. Mas, em lituano, o título liga-se mais às raparigas, à ideia de que às vezes é preciso ser descarado, lutar pelo seu espaço, ir contra as regras. Isso pode ser positivo, mas também pode tornar-se tóxico.
A Kristina, por exemplo, é extremamente rebelde, mas acaba por perder o contacto com a realidade por causa disso. Já “Toxic” funciona como um título mais abrangente: fala de padrões de beleza tóxicos, de relações tóxicas, de masculinidade tóxica, de um ambiente literalmente tóxico, com lixo por todo o lado. É mais abstrato e engloba vários temas do filme.
E como foi o processo de casting para escolher estas duas protagonistas?
Demorou bastante. No início tínhamos atrizes mais velhas, de 17 e 19 anos, mas enquanto esperávamos por financiamento passaram dois anos. Nessa altura percebi que já eram mulheres feitas, não faria sentido apresentá-las como raparigas de 13. O público não acreditaria e seria injusto para as próprias adolescentes.
Tivemos então de recomeçar o casting do zero. Procurámos em todo o lado: escolas de modelos, redes sociais, até abordando raparigas na rua para pedir contacto dos pais. No fim, encontrámos a Kristina numa escola de modelos, logo no primeiro dia dela. Ieva Rupeikaitė tinha apenas 13 anos e ainda estava no 6.º ano.
Já a Marija, Vesta Matulytė, foi descoberta quase por acaso. Estava a ver o Instagram e apareceu-me um anúncio de uma agência de modelos com a cara da Vesta. Achei logo que era ela. No início, não queria participar, dizia que não era atriz, que não estava interessada, mas lá os pais convenceram-na a ir conhecer-nos, e felizmente acabou por aceitar.
Juntei as duas para uma fotografia e percebi imediatamente que eram as personagens. Funcionavam bem juntas: a Kristina, pequena mas cheia de energia, como um fogo de artifício; a Marija, mais pálida, com movimentos estranhos, exatamente como tinha imaginado.
No ano passado entrevistei a realizadora estoniana Anna Hints, de “Smoke Sauna Sisterhood”. Ela dizia que a sauna, para as mulheres, é tradicionalmente um espaço de intimidade, onde habitualmente havia confissões e toda a partilha de questões pessoais. No teu filme também vemos uma breve cena de sauna, mas é muito silenciosa. As mulheres estão caladas, de olhares vazios, sem vontade alguma. Pergunto se na Lituânia a tradição é antípoda das saunas estónias ou foi uma opção em consenso com a atmosfera do filme?
Em “Toxic” quis trabalhar a ideia dos círculos femininos. Vemos a avó da Marija com as amigas num círculo que faz uma espécie de magia doméstica; vemos as raparigas na escola de modelos, também em círculo; e depois vemos as senhoras mais velhas. Queria esse contraste entre os círculos jovens e os mais velhos.
Nos grupos de adolescentes tudo acontece, há conversas, confrontos, discussões constantes. Já o círculo da avó e das amigas é mais silencioso, misterioso, quase ritual. A cena da sauna mostra exatamente isso: um espaço em silêncio, onde se procura fugir à realidade do dia a dia de outra forma. Para a Marija, esse silêncio é estranho. A ideia era mostrar como esses círculos evoluem com a idade, a comunidade continua a existir, mas a forma de comunicação transforma-se.
Então, de certa forma, o mundo da Marija é um mundo distante, onde é difícil se comunicar. Mesmo com a amiga, Kristina, parece não haver verdadeira ligação. Ela quer pertencer a um círculo porque no fundo sente-se sozinha.
Sim. É por isso que a Marija também se interessa pelo círculo da avó, e acaba por estar na sauna. Por um lado, sente a obrigação de integrar o “mundo superficial” da adolescência, mas por outro procura outras formas de se comunicar com o mundo, algo diferente. Isso é um conflito para ela.
Sempre quis que a Marija tivesse uma dimensão espiritual. Ela procura algo, mesmo sem conseguir exprimir em palavras. Esse desejo de transcender, de encontrar um sentido mais profundo, para mim é um sinal de esperança.

Saulė Bliuvaitė
Para terminar, uma pergunta inevitável: depois de ganhares o Leopardo de Ouro em Locarno, e mais sendo uma primeira longa-metragem, como está a ser o desafio de avançar para o próximo projeto?
[risos] Pois, é a pergunta típica: o próximo projeto. Estou a tentar perceber se serei uma realizadora que faz um filme de poucos em poucos anos ou alguém como o Jonathan Glazer, que faz um filme a cada dez anos.
No último ano estive totalmente dedicada ao circuito de festivais e à promoção de “Toxic”. Não tive tempo para desenvolver nada de novo. Só agora estou a começar a trabalhar num novo projeto, mas sem pressas. Não quero lançar algo apenas para “aproveitar o momento” ou porque “ainda sou relevante”. Para mim, um filme precisa de tempo. Preciso viver com a ideia até que deixe de estar presa ao contexto imediato e ganhe uma dimensão mais universal, quase espiritual. Com “Toxic” aconteceu isso: comecei com uma ideia muito estereotipada, que até hoje me parece engraçada, e o tempo ajudou-a a transformar-se noutra coisa.
Espero que o próximo não demore dez anos a concretizar-se, mas também não tenho pressa. [Risos]















