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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Oscars 2024: depois das legislativas, o atómico

Hugo Gomes, 11.03.24

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Como costumo dizer no final de cada cerimónia - "Acabaram-se os Óscares, que regressa o Cinema" - este ano, simplesmente, não aconteceu... E não me refiro aos vencedores, obviamente, a gala de prémios foi a mais previsível desde que "Coda" (quem?) abocanhou a estatueta de Melhor Filme numa noite quente marcada à bofetada. Não, o motivo foram as eleições legislativas altamente disputadas que tiraram o sono a qualquer português. Depois disto, qual o interesse de ver "Oppenheimer", o "mais importante filme do século", como vozes em uníssono declararam antes da produção estrear, levar um punhado de "homens dourados" (com alguns bem discutíveis, "Montagem? Por favor", outros bem merecidos como Robert Downey Jr. enquanto ator secundário)? Contudo, como é tradição aqui no espaço, um comentário - meio ácido, aviso desde já - da noite que se fez para lá de Los Angeles a marcar a manhã de uma ressacada segunda-feira. Portanto, cá vai:

Como tinha afirmado, Nolan é o esperadíssimo vencedor, antevendo um circuito altamente previsível e homogéneo. Cillian Murphy sai sorridente em oposição de um "Maestro" tristonho e vazio (para um filme com uma realização daquelas merecia mais, mas nada neste mundo é justo). Emma Stone, a frankensteiniana criatura de "Poor Things" de Yorgos Lanthimos, faz uma rasteira a Lily Gladstone na categoria de Melhor Atriz, e na mais disputada categoria, a de atriz secundária, Da'Vine Joy Randolph de "The Holdovers" acena às derrotadas America Ferrara e Danielle Brooks. Outra categoria digna de nota é a de Filme Internacional, com o britânico falado em alemão "Zone of Interest" a sobrepor-se a "Perfect Days" e "The Teacher's Lounge", sacudindo alguns fantasmas do Holocausto e incomodando, como se percebeu no discurso de Glazer, o conflito israelo-palestiniano. E por fim, digno de nota, o nipónico e "underdog" "Godzilla Minus One" a triunfar na competição dos efeitos visuais, deixando para trás candidatos com potencial como "The Creator" e o terceiro "Guardians of the Galaxy", e (confesso, o prémio que mais felicidade me trouxe), a animação para "The Boy and the Heron" do nosso mestre Hayao Miyazaki.

E pronto, é isto. "Acabaram-se os Óscares, que regressa o Cinema"!

Por favor, respeita-se a tempestade

Hugo Gomes, 19.10.23

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O que está em causa não é considerar "Killers of the Flower Moon" como a obra-prima de Scorsese ou o suplício interminável da sua carreira. Nem sequer é encontrar nesta história desvendada de nativos americanos enriquecidos com a exploração petrolífera no seu território e, eventualmente, massacrados silenciosamente por uma gananciosa conspiração, cujo enredo motivará a criação do FBI, como um revanchismo histórico sociopolítico hoje levado da breca pelos … admirem-se … grandes estúdios hollywoodescos. 

Enquanto discutimos os factos e a duração, ou caímos na superlatividade com palavras fáceis, esquecemos o “ativismo” scorseseano: o de resgatar a arte da ditadura do “conteúdo” e o cinema adulto enquanto resistência à infantilização industrial. Como o fazer? Obviamente, estabelecer pontos de contacto entre o que se perdeu e o que se adquiriu, ou seja, "vender a alma ao Diabo", mefistotelicamente falando da Apple TV (produtora de "Killers of the Flower Moon") como sustento, o cavalo de Tróia em troca de liberdade na criação. Hipocritamente, o "conteúdo" que tanto ele prega contra, mas aí existe uma traição, não à sua natureza, mas aos financiadores naturais, pois inegavelmente há Cinema aqui, longe do guião e da sua dominância que os “espectadores de conteúdos” (apelidamos desta maneira) premeiam ou das subserviências às pregações atualizadas. O Cinema é nos dado pela sugestão de uma força maior que a do seu filme, se isto não nos faz crentes deste estado, digamos que existem dois momentos que retive nesta jornada de três horas e meia que muita imprensa pornograficamente salienta nas suas letras gordas, e poderá se aproximar de “milagre” na escassez destes anos movimentados. 

A primeira, apontamos na paragem, pausa como quiserem, Leonardo DiCaprio (aqui o protagonista scorseseano com mais fraco espírito) e Lily Gladstone se enamoram após uma ceia, restringidos na casa dela, a poucos quilómetros do epicentro do vilarejo. Uma tempestade aproxima-se, avisa ela, enquanto instrui à personagem de DiCaprio como manter em silêncio e imóvel na mesa de jantar. A desculpa é que tempestade é um sinal a respeitar - não se vá enraivecer aquilo que não se compreende - e da quietude espiritual acalenta até os mais furiosos temporais. O olhar meigo de Gladstone reflete esse estado de espírito, como um soneto relaxante à atribulada e inquieta presença de DiCaprio. O filme repousa com eles, por pouco tempo, obviamente, é lhe pedido para acalmar, e por ordem hierárquica ao espectador também. 

Energético como Scorsese sempre demonstrara (em tempos recentes metia-se à cocado no “The Wolf of Wall Street”), o realizador parece chegar-nos domado. Erro nosso pressupor tal passividade, apenas procura o seu “canto do cisne”, a tristeza residida na última nota, essa de paz encontrada ou debilitada com “Silence” (dos seus filmes mais divisórios), ou da despedida de um estilo e quiçá de um universo em “The Irishman” (uma obra também pactuada por aqueles que tanto embate), deixando a porta entreaberta [literalmente] para uma morte anunciada (o epílogo como sinal divino do Scorsese dos últimos anos). A tempestade, o Scorsese “velho” porém estilizado e fora de horas, é exorcizada nestas recentes estâncias, possivelmente na busca de um derradeiro título, em “Killers of the Flower Moon”, se tudo correr bem não deterá esse papel, mas é o ritual de afirmação para com essas memórias que se contrapõe a um Scorsese “novo”, mais próximo para com o súbito desvanecer. 

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Melancólico, o realizador transforma esta cena, que muitos ignoram ou desleixam, na sua “dança da chuva”, um pedido alto a um Cinema que faça de casa / abrigo ao espectador, não apenas entretê-lo ou informá-lo (aqui encarando o Cinema como peça social), e sim de criar uma compaixão entre visualizado e o visualizador. A partir daqui, aquele subenredo de máfia disfarçada com Robert De Niro (contido, o qual solicita a DiCaprio o tratamento de Rei, ao invés do laço sanguíneo), é um “faz de conta”, um pretexto de continuidade às juras. Abalar o porto de abrigo ou seguir em frente na imperatividade da sua história (e História), soa-nos ao “velho Scorsese”, ou simplesmente a marca ferrada, dirigida a gado, para nos manter a par da sua “mão invisível”, enquanto que o verdadeiro filme, possivelmente o encontrado pelo mesmo, pousa naquele olhar, dócil, de Gladstone, correspondido ao jeito tonto de DiCaprio, prejudicial e igualmente protetor. É aquela ligação que fortalece “Killers of the Flower Moon”, é aquela febre que despoletará a lição a ser chicoteada, infiltrada no campo florido do crime(s) em retrato fotográfico … mas já lá vamos. 

Segundo momento, a febre, Scorsese infernizado pelos seus pecados, ali, “torturando” Gladstone que vai esmorecendo na sua própria cama. O quarto iluminado à meia-luz, ambiente que se aproxima ao teor fúnebre, não é a única luminosidade que atinge a assoalhada, da janela um clarão impede a noite escurecer, uma queimada é feita a uma considerável distância dali, controlada por dezenas de homens cujas silhuetas transfiguram pelas labaredas e os corredores incendiários. Aquelas figuras humanas são reduzidas a sombras, e as sombras reduzidas a criaturas disformes, distorcidas na sua própria malícia. É uma imagem e tanto, encostando o suposto realismo (coerente no seu storytelling), à invocação espectral. Não são os mortos a manifestarem, nada disso, são os vivos a renegar a sua ligação para com o natural, enfraquecendo a sua essência até se tornarem meros espantalhos. É a visão dos Infernos, a de Dante segundo a perspetiva de Scorsese, dos homens brancos, cowboys no termo clássico, coreografados com a sua sinfonia macabra.

Destes dois momentos, com Gladstone no seu centro - cuja o seu underacting se revela numa discreta virtude que “abocanha” as intrigas à deriva que Scorsese vai polvilhando aqui e acolá - expressam a vontade do realizador comunicar, não com a fé religiosamente falada (uma das suas velhas verrugas cinematográficas), mas para além do que as imagens poderão oferecer. Pois bem, figurações num realizador terra-a-terra parece uma manobra brusca, contudo, e parafraseando Álvaro Cunhal no tão espontâneo “olhe que não, olhe não”, esse escape ao que somente as imagens dão, sempre o acompanhou, manifestando com ele um súbito do que existe para lá das ações e da carne. Desde forças imaginárias do seu “After Hours” (1985), a montagem onírica estampada em palcos broadwaianos [“New York, New York”, 1977], passando pela teologia óbvia e desconstrutora [“Last Temptation of Christ”, 1988] ou a morte ao pendurão [“Bringing Out the Dead”, 1999], e continuando e continuando. Scorsese nunca fora um artesão do óbvio. 

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Certamente que "Killers of the Flower Moon" será “venerado” ou “odiado” por outras razões, muitas delas que trazem à memória os maneirismos ou idiossincrasias do cinema scorseseano. É um facto, não neguemos que não é uma obra à imagem do seu criador, mesmo que a guinada faça por “vales da estranheza”. Em termos teóricos é mais um postal para o mapa histórico-territorial que Scorsese tem-se dedicado, aproximamo-nos da apoteose semi-apocalíptica de “Gangs of New York”, nem que seja a extração dos cenários lamacentos e sujos daquela “Big Apple” em construção, colocando lado-a-lado com este pseudo-western de iguais impurezas (uma vez mais, pouco ou nada furioso).  Conquistando o Oeste ou perdê-lo na desgraça, a América de outras passagens que só os tempos que decorrem são capazes de desenterrar e converter no conto cinematográfico (estamos numa fase de desconstrução da nação, como se pode evidenciar nas produções correntes). 

No entanto, voltemos ao casal, à relação-farpa nesta história de crimes finalizada em tom anti-climático, algo que poderia ser digno de um Robert Altman nos seus últimos trabalhos (a minha memória levou-me ao “A Prairie Home Companion”, por exemplo), pressupor à imaginação como o elemento que falta, não só ao cinema norte-americano obviamente, mas ao espectador cada vez escravo da ideologia do realismo porque sim. E é nesse relato a várias vozes que se pontua, em jeito de intertítulos informativos, o pós-”Killers of the Flower Moon”, mas é no casal, ou na réstia dele, que o filme se enfoca. Típico Scorsese, pode o mundo acabar, pode a civilização cair ou os deuses declararem o fim, mas é a relação, é o intimismo do contacto e da cumplicidade que tenta a todo o custo preservar. Grande escala que pare pequenas “coisas”, como “Taxi Driver”, por exemplo, com Travis Bickle prometendo o tumulto social, o Basta enraivecido, o atentado aquele candidato a mayor, mas no final, é aquela menina (Jodie Foster) que estabeleceu contacto e que a todo custo tem que a libertar do seu proxeneta. Em “Killers of the Flower Moon” é aquele casal improvável que importa, é o seu desígnio motivado pela mais “pequena das coisas”, a grandiloquência envolta soa-nos a … cenário.

Dou por mim a pensar que de Scorsese pouco ou nada percebemos (não o conseguimos resumir simplesmente), mas chamar “Killers of the Flower Moon” é um facto, e não há suplício nenhum que determine o contrário.

América, um continente desconhecido

Hugo Gomes, 06.08.23

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Lily Gladstone está sob os holofotes ao contracenar com Leonardo DiCaprio no muito antecipado falso-western de Martin Scorsese - “Killers of the Flower Moon” - mas antes que o 'épico' prossiga, ela embarca em romarias ao interior americano em busca de sua ancestralidade neste "The Unknown Country". Com a assinatura de Morrisa Maltz, esta sua primeira longa ficcional é entendida como um fruto de uma "tendência" ou, antes, um apelo a um determinado cinema americano que busca examinar as origens e uma espiritualidade perdida, sufocada pelo frenesim capitalista e pela modernização ocidentalizada.

Nessa vertente, acompanhamos a atriz (uma das incentivadoras desta história fora das câmaras) numa "peregrinação" a esse coração geográfico, na esperança de reencontrar um fantasma; pelo caminho, ela se depara com "outra América", habitada por náufragos de um deserto em transformação, mal amparados em relação a essa progressão. É fácil perceber o porquê das comparações com o oscarizado “Nomadland” de Chloé Zhao ou com os milésimos enquadramentos malickianos (ou maliquices, consoante a conotação). O gesto de registrar em conformidade com a narrativa busca emular o documental (veia que nunca abandonou Maltz) e a "coleção" de pessoas à margem, não apenas socialmente, mas em questão de universo hollywoodiano (sem antagonizações, nem desprezos). Além disso, há o deleite para com as paisagens desta América imaginada (e real, obviamente), conectando o humanismo com o divino toque da Natureza (a maiúsculas para assumirmos um Deus próprio e igualmente onipresente).

É um chamamento xamânico sem a necessidade distorciva; uma jornada em direção ao invisível, à ligação inerente e ao coletivo memorialista que estas terras preservam silenciosamente. "The Unknown Country", cujo título literalmente traduzido revela-nos a essência na "caça" de um território desconhecido, faz parte de um não distinguido subgénero, o de aceitar destinos sem intervenção nem expectativas, arbitrariedades e o estrangeirismo em países conhecidos. Não é uma terra de ninguém aquela que deparamos aqui, é antes uma terra de gente sem aparente voz, que ao contrário da protagonista, consentem o predestinado enquanto refúgio, fazendo dele um fim confortável para as suas respectivas existências.