Problemas de adaptação a partir de “The Fall of the House of Usher”
O conto The Fall of the House of Usher, publicado em 1839, numa revista literária em Philadelphia, pelo norte-americano Edgar Allan Poe, é um dos contos mais influentes do escritor, tendo sido adaptado, citado, ou mera fonte de inspiração para peças musicais ou de teatro, transposto ao cinema em curtas e longas metragens, para cinema e televisão, de imagem real ou animação. Sem pretender ser exaustivo, no cinema destacam-se duas versões mudas, curiosamente do mesmo ano de 1928, uma curta dos norte-americanos, James Sibley Watson e Melville Webber e o filme com pouco mais de uma hora do francês Jean Epstein, La chute de la maison Usher. Em 1950, Ivan Barnett assina uma versão britânica, enquanto o cineasta de pendor experimental Curtis Harrington abriu e fechou a sua carreira com duas versões curtas do conto, uma de 1942, em 8mm, e outra já em 2000, um pouco maior, filmada em 35 mm.
Em 1960, Roger Corman e o produtor Samuel Z. Arkoff abrem o ciclo de adaptações que a AIP- American Film Internacional faria da obra de Poe, precisamente com The Fall of the House of Usher. A esta obra de terror gótico de época, que obteve bastante sucesso junto do público, ainda se juntariam outras sete: The Pit and the Pendulum (1961), Premature Burial (1962), Tales of Terror (1962), The Raven (1963), The Haunted Palace (1963), The Masque of the Red Death (1964), e The Tomb of Ligeia (1964). Já nos anos oitenta, Jésus Franco realiza El hundimiento de la casa Usher (1982) citando-se a si próprio, usando excertos de um dos seus primeiros filmes Gritos en la noche (1962) que, de alguma forma, já encenava uma relação de protecção doentia de um homem em relação irmã, como acontece no conto de Poe com a personagem de Roderick Usher em relação a Madeleine. Em 2002, Ken Russel faz o que ainda não havia sido tentado: dobrar o ambiente de The Fall of the House of Usher para uma obra satírica, The Fall of the Louse of Usher. Já em 2023, a Netflix produziu uma mini-série de oito episódios, realizada a meias por Mike Flanagan e Michael Fimognari.
Como vemos, o trajeto é longo e são muitos os gestos de adaptação do famoso conto de Edgar Allan Poe. Com o intuito de refletir sobre algumas das escolhas na adaptação do conto ao cinema, vale a pena pensar em algumas distinções face às duas versões mais populares, a de Epstein de 1928 e a de Corman de 1960, separadas por mais de três décadas e em dois sistemas estéticos e de produção bastante distintos.
O filme do cineasta francês marca uma fronteira reconhecível na sua carreira. Para trás ficaria uma fase inicial nos primeiros anos fulgurantes com a produtora Pathé, a vanguarda artística francesa e obras como Coeur fidèle (1923); e ainda um par de anos com a Societé des Films Albatros, onde tem menos liberdade artística e a crítica começa a questionar se o sucesso público de filmes como Le lion des Mogols (1924) não o teria afastado dos iniciais princípios de vanguarda e experimentação. 1926 marca para Epstein um período em que se lança na produção independente (com a Les Films Jean Epstein), recentrando a vontade de compreender como o cinema conseguiria recortar-se das linhas familiares da literatura e do cinema, trabalhando a luz, as sobreimpressões, os ralenties e acelerados e as diferentes formulações da montagem. Este momento é marcado por filmes como Mauprat (1926), Six et demi onze (1927), La glace à trois faces (1927) e … La chute de la maison Usher.
Este é o último filme que Epstein realizará antes da série de filmes que denominava de “filmes da natureza” que irá filmar às ilhas da Bretanha, num despojamento total, trabalhando com argumentos menos escritos, em exteriores e com a utilização da população desses espaços. Desta feita, La chute de la maison Usher é uma obra marcada por duas “fugas”. A primeira fuga, ironicamente pois que se tratava de adaptar um conto, é à lógica literária. A segunda é a vontade de se ir afastando do cinema de estúdios, com cenários elaborados e uma manipulação espácio-temporal que não decorresse dos mecanismos da própria linguagem do cinema.
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Como podemos ver no genérico inicial, o filme é feito a “partir de motivos de Edgar Allan Poe”. Esta referência tem dois significados: desde logo, próxima da ideia de inspiração, clarificando que não se trata de uma adaptação rigorosa, fiel à obra de base; mas depois porque, apesar do título referir o conhecido conto, Epstein irá mesclar na sua obra um outro conto do autor, de 1842, The Oval Portrait. Luís Buñuel, que figura como assistente de realização, abandonou a produção a meio: em alguns relatos, a razão teria a ver com o afastamento excessivo que Epstein teria tido face ao primeiro conto de Poe; noutros, a razão prender-se-ia com a relação e influência de Abel Gance no projeto (por exemplo, a sua segunda esposa, Madeleine Gance interpreta Madeleine no filme).
Jean Epstein aproveita a relação próxima e patológica que Poe sugere entre os irmãos Usher, mas substitui essa ideia de possível degeneração por via de uma consanguinidade incestuosa por uma ligação matrimonial. Em La chute, Roderick e Madeleine são marido e mulher, e essa obsessão é adaptada de The Oval Portrait. Neste, o marido, pintor, obcecado em atingir o realismo máximo no retrato da sua mulher, não se apercebe que para que o quadro ganhe vida é o modelo, a sua mulher, que a perde. Esta obsessão “artística” está plasmada no filme de Epstein.
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Esta transferência de vida das pessoas aos objetos, como nos mostra The Oval Portrait, é particularmente interessante no olhar de Epstein sobre o cinema, na medida em que é a “alma dos objetos” que está também em jogo na especial figuração da fotogenia cinematográfica. Além disso, em parte nesses “motivos de Poe”, está a transferência que vemos com clareza no conto The Fall of the House of Usher, entre a decadência da casa e das suas duas últimas, ainda sobreviventes, personagens; observamos a forma como os espaços contaminam os seres. Numa formulação geral podemos dizer que esse “grande motivo” que Epstein quer extrair de Poe é a construção de um ambiente de claustrofobia, de decadência, onde as emoções exacerbadas também se extraem desse isolamento. Por outras palavras, o grande motivo é a “ausência de motivo” claro, antes uma contaminação que se dissemina pelo espaço e pelo interior das personagens. La chute de la maison Usher é assim construída como uma sinfonia cinematográfica, na esperança que o cinema e sua linguagem consigam “mostrar o imperceptível” e “dizer o indizível” (Joël Daire; Emilie Cauquy).
Ao ler o conto, Poe fala-nos dessa estranheza, abstração ou incapacidade de explicar. Por exemplo, no início, o narrador ao chegar junto da “melancólica” casa de Usher: “Não sei como tal aconteceu, mas, ao primeiro vislumbre do edifício, invadiu-me o espírito uma sensação de insuportável tristeza”. Adiante, ao descrever a situação de Roderick e após a famosa expressão (que Corman e Price irão usar na sua adaptação: “morbid acuteness of the senses”), o narrador diz: “Era presa de certas impressões supersticiosas quanto à mansão que habitava e da qual, havia muitos anos, jamais se aventurava a sair — quanto a uma influência cuja suposta força era transmitida em termos demasiado vagos para aqui serem reproduzidos, influência essa que certas particularidades da mera forma e substância da mansão familiar tinham, à força de tão longamente as sofrer, dizia ele, alcançado sobre o seu espírito — um efeito que o aspecto físico das cinzentas paredes e torreões e do soturno lago para a qual umas e outros davam, tinha acabado por exercer na moral da sua existência.”. Ainda adiante o narrador conta que: “Guardarei sempre a recordação de muitas horas solenes que assim passei a sós com o senhor da Casa de Usher. Fracassaria, contudo, em qualquer tentativa de transmitir uma ideia de teor exacto dos estudos ou das ocupações em que ele me incluía, ou nos quais me servia de guia. Uma irrealidade exacerbada e extremamente desordenada espalhava sobre tudo um brilho sulfúreo. (…) Dos quadros sobre os quais a sua apurada imaginação cismava, e que assumiam, pincelada a pincelada, uma imprecisão que me fazia estremecer mais ainda, porque estremecia sem saber porquê, desses quadros (por mais vívidos que surjam diante de mim) debalde tentaria extrair mais do que uma pequena porção que coubesse nas fronteiras da simples palavra escrita.”
Se é verdade que os temas do gótico e do romântico estão nesta relação de decadência de uma linhagem aristocrática por via do seu inevitável desaparecimento em função de uma sugerida consanguinidade, não é menos verdade que a escrita de Poe apaga a clareza desses motivos e reforça o inexplicável. Lê-se antes através da ausência de coordenadas nesse espaço que parece absorvido por um mal sem palavras que o consigam descrever (iluminar) com clareza.
Um pequeno salto até 1946 e um excerto do ensaio de Epstein, L’intelligence d’une machine no qual o cineasta aborda a capacidade do cinema modelar o tempo e o espaço: “De acordo com os diferentes valores momentâneos que as dimensões do espaço-tempo assumem, [no cinematógrafo] a descontinuidade pode tornar-se contínua ou a continuidade descontínua, o repouso produzir movimento e o movimento repouso, a matéria adquirir espírito ou perdê-lo, o inerte animar-se ou o vivo mortificar-se, o aleatório determinar-se ou o certo perder as suas causas, os fins transformarem-se em origens e as verdades evidentes em absurdos (…)” (pp. 50-51).
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Desta feita, o mal-estar do conto de Poe, em Epstein não é objeto de motivo declarado, é antes integrado numa poética à qual não é necessária a palavra — estamos no mudo, recorde-se. Tal procura de uma outra presença das coisas mescla os objetos com os seres humanos. Perante o esgotar-se da vida de Madeleine, o tempo abaula-se (o pêndulo do relógio parece uma guilhotina), as velas derretidas aparecerão, em sobreposição, nos caminhos da floresta em jeito de cortejo fúnebre. As cordas da guitarra rebentam, os rostos multiplicam-se ou desfocam-se e o vento traz as folhas para dentro de casa, fantasmagorizando o véu da morta de volta à vida. Ao contrário da conveniência que na altura associava o fantástico ao expressionismo alemão, a adaptação de Epstein, mais próxima de um filme como Vampyr (1932), de Carl Dreyer, releva antes de um onirismo provindo da natureza ou das técnicas de revelação dessa fotogenia das coisas que o cinema permitia trazer à tona. Em suma, o cinematógrafo de Epstein permitia extinguir a palavra da literatura de Poe, fazer-lhe “cair os motivos da queda”, mas conservando-lhe o âmago do conto, nessa fusão patológica, romântica e decadente, que ia da vida à morte (e viceversa) e dos espaços da casa às personagens, numa comunhão de sentimentos exacerbados.
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Já ao contexto de produção de The Fall of the House of Usher (1960) não era permitido ser muito vago nessa queda dos motivos de Usher. Pelo contrário, à AIP e a Arkoff era importante comprimir cirurgicamente uma espécie de vacuidade e abstração intencionais que o escritor colocara no centro do seu conto (e que talvez seja o motivo maior da sua longevidade). Além da já citada inauguração deste ciclo de adaptações, o filme de Corman é considerado um dos primeiros filmes de terror norte-americanos a usar o formato CinemaScope e a cor (o processo Eastmancolor). Enfim, um salto de escala face aos filmes a preto e branco, série B, com que a produtora enchia os drives-ins à época. A isto juntemos um orçamento de 300 mil dólares (iria fazer um milhão e meio nas semanas de estreia), uma rodagem de 15 dias (um luxo para os tempos habituais da produtora) e Vincent Price no papel de Roderick Usher. Não havia muita margem para grandes metafísicas até porque, como referia Joe Dante, que trabalhou com Corman, era um risco achar que jovens iriam pagar bilhetes para verem um filme de época, com pessoas a conversar no interior de palácios e mansões, por mais estilizados que fossem.
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Richard Matheson, argumentista que havia escrito com Richard Alan Simmons, The Incredible Shrinking Man (1957) de Jack Arnold, ficou encarregue da adaptação. No conto de Poe, o narrador é convidado a ir a casa de Roderick, uma vez que este havia sido seu amigo de infância. E, por isso, limita-se a assistir à parca acção do conto, sem grande interferência no decorrer dos eventos. No filme de Epstein, apesar de começarmos com a vinda à casa de Usher pelo convidado, o protagonismo do filme rapidamente passa para as pinceladas e o olhar irradiante de Roderick Usher (Jean Debucourt), descentrado o eixo da acção do conto. Matheson cria um outro dispositivo: o convidado, de nome Philip Winthrop (Mark Damon), passa a ter uma motivação dramática, vem buscar Madeleine para se casarem. Tal motivação ajuda a “entrar” e a “sair” do filme, que aliás termina com uma citação literal da última frase, após a destruição da casa: “e o fundo e pantanoso lago aos meus pés fechou-se soturna e silenciosamente sobre as ruínas da casa de Usher”. No filme de Corman, voltamos assim à formulação inicial, Roderick e Madeleine são irmãos e Philip vem opor-se a Roderick que não quer deixar sair a irmã de Usher, a inevitável casa-túmulo.
Se no conto de Poe nunca saímos do olhar do narrador (e toda a loucura é-nos filtrada pelas suas descrições), e se em Epstein são o corpo e o olhar os grandes instrumentos dessa perturbação, já Corman pode voltar à palavra, e na primeira pessoa. Não existiram na história do cinema muitos actores como Vincent Price que, pela suavidade das suas palavras e delicadeza da dicção de cada sílaba, conseguissem chegar ao espectro do medo e da perturbação. Price encarna na perfeição essa hipersensibilidade dos sentidos, essa hipocondria que espera apenas a morte como desfecho inevitável.
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Numa das mais interessantes sequências do filme, que não surge no conto, é quando Roderick mostra a Philip os quadros dos seus antepassados. Ao contrário de Poe e Epstein, que mantêm na imagem sobrenatural a sugestão da queda de Usher, Corman irá explicitar os motivos dessa queda: numa família de assassinos, violadores, burlões, o mal corre nas veias destes irmãos amaldiçoados que devem manter-se isolados da sociedade para prevenir que a praga se espalhe. A somar a isso, o filme de Corman dá textura e cor à leitura freudiana que o filme faz na associação entre o mal-estar de Roderick e Madeleine e a decadência da Casa de Usher, com suas paredes rachadas, candeeiros periclitantes, caves pejadas de caixões, teias de areia e os vapores e neblina vindos do exterior. “A casa é o monstro!” vendeu Corman a ideia do filme aos produtores, quando estes exigiam um monstro para um filme de terror.
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Uma palavra ainda para o conto de Poe como uma história de mortes mais dolorosas que a morte. No conto sabemos que a personagem de Madeleine é sepultada viva e que regressa para atacar o irmão. No filme de Epstein, estamos diante de uma romântica assombração, cujo vento leva os cabelos e os seus véus numa dança além da morte. Já Corman permanece mais fiel ao conto, com Madeleine ensanguentada a escapar da sepultura, figura assustadora e monstruosa que a cor azul da fotografia de Floyd Crosby vem acentuar. O esquema de cores permitirá ao filme expor esta proposta de relação entre a casa, o sonho e o inconsciente — veja-se a magnífica e eloquente sequência do sonho de Philip antes do desfecho final —, ao mesmo tempo que permite transcender por questões comerciais o referido imaginário gótico de época para o qual não se estava certo ser uma aposta muito atrativa.
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Como em todas as grandes obras, não existe consenso sobre The Fall of the House of Usher: é uma história sobre o quê, afinal? Talvez apenas a história de uma casa? Como refere David Cairns, num ensaio audiovisual sobre o filme, Corman e o argumentista Richard Matheson tentaram “impor uma ordem racional no pesadelo de Poe”. Mas, refere ainda, como não existe suficiente plot para uma acção consistente, a adaptação torna-se um filme de fragmentos. É pelas falhas dessa estrutura fragmentária que entra afinal a atmosfera de insanidade dos Usher, numa amplificação da falha inicial da casa, que depois irá estar no origem no seu espectacular, mas económico colapso.
*Texto da autoria de Carlos Natálio, professor, investigador, programador e crítico na área do cinema. É investigador contratado no CITAR – Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes e Professor de História e Crítica de Cinema. É licenciado em Cinema, em Direito, mestre e doutorado em Ciências da Comunicação. É membro fundador e editor do site cinéfilo À pala de Walsh. Desde 2019 que tem trabalhado na área da programação, integrando desde 2019 a equipa do Festival IndieLisboa. Desde 2022 tem programado também para o Batalha Centro de Cinema (Programa Escolas; Novos Encontros do Cinema Português; Selecção Nacional). É autor de diversos cadernos pedagógicos em colaboração com vários projetos nacionais e internacionais de educação para o cinema. (CinEd, Shortcut, PNC, Filhos de Lumière, Insert).