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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Abrem os vossos chapéus! Lá fora chove musicais ...

Hugo Gomes, 28.12.24

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Muito escrevi sobre "Les Parapluies de Cherbourg”, seja no seu primeiro “comeback” às salas em 2017, seja em reflexões sobre a sua natureza, representação ou até na memória de Nino Castelnuovo. O seu retorno, agora em pack-retrospectiva nos cinemas, faz-me querer revisitar Cherbourg, a cidade portuária próxima de Nantes (já em “Lola” se pressentia essa proximidade), onde somos recebidos por uma torrencial chuva e chapéus em tons pastel que abrigam amores a recitar os códigos shakespearianos. Tudo ali parece encantado, sem fronteiras nem países, um contraponto às bofetadas de cinzentismo da realidade, enquanto Michel Legrand se mostra incansável na sua batuta. Porém, não se deixem enganar: a crueldade do destino está aqui presente como em nenhum outro lugar. Foi desta mesma crueldade que Damien Chazelle bebeu para criar “La La Land”.

E porque não suspirar pela jovialidade de Catherine Deneuve, hoje um verdadeiro património francês? Ainda assim, o que “Les Parapluies de Cherbourg” continua a revelar na contemporaneidade é o nosso preconceito – natural ou talvez nada natural – em relação ao musical. Um género outrora visto como escapismo na era dourada de Hollywood, que hoje resiste aos moldes e simulacros da ficção convencional. Leos Carax fez amor com o género, troçou dele e cuspiu-o em “Annette”. A reação foi morna: de um lado, rosas; do outro, assobios. Já o Joker dançou ao som de velhas canções porque Todd Phillips quis “agredir” o mau espectador (e merece essa agressão) que o cinema abriga nos seus “guarda-chuvas”. Foi incompreendido, em parte pela infantilização do público e da crítica, que antes veneravam o palhaço-psicótico. Por sua vez, Jacques Audiard usou um embalo de falso-trash para abordar narcotraficantes e mudanças de sexo no divisório “Emilia Perez”.

No meio disto, há Broadway [não podemos deixar de lado o fenómeno “Wicked”] ou revivalismos do classicismo ["West Side Story" de Spielberg]. Contudo, no fundo, o espectador repudia: “O único género que não suporto é o musical.” Talvez haja um problema nesta frase, porque a sua banalidade lhe retirou a verdade. Nascemos preconceituosos enquanto espectadores. E enquanto isso, “Les Parapluies de Cherbourg" mantém-se como um dos grandes do seu universo, musical ou não. Afinal, as grandes histórias merecem ser cantadas.

Os Melhores Filmes de 2024, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 23.12.24

… era uma vez, um episódio verídico …

Cheguei ao trabalho e, durante o render do turno, notei que o meu colega manejava no computador da empresa um ficheiro Excel enquanto, na sua secretária, ecoava o som de diálogos em português do Brasil entrelaçados com motores enfurecidos de carros de Fórmula 1. "Isso é a nova série do Ayrton Senna?", perguntei. "É sim!", a naturalidade da resposta me levou à seguinte e precisa pergunta, "e porque é que não a vês?". "Hã, eu já conheço a história, não é preciso vê-la." A resposta fez-me barafustar sobre o sucedido. As imagens tornaram-se banais, sem significado, portanto para quê defender a democratização das mesmas, as tais plataformas de streaming a rodos, se depois não são vistas nem apreciadas devidamente?

Elaborar tops, convém, não é só juntar um dezena de filmes que nos “tocaram no coração”, é também atribuir a essa totalidade um statement, - e tendo em conta os tempos e a sua gradual aceleração (cada vez mais), esta ofensiva contra a vulgarização imagética, ao sacrilégio do gosto do espectador (merece ser subvertido, sair do seu próprio umbiguismo), contra as esquadrias e as mensagens / storytelling como unilateralidade das produções audiovisuais -, um ato político. Por isso, não vos vou mentir, existir algo politizado aqui, uma marcha contra a inevitabilidade de um lufa lufa social. 

 

#10) The Teachers’ Lounge

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Çatak constrói uma fábula sobre essa designação de Poder e de todas as suas consoantes [populismo, corrupção, panópticos, autoridade, repreensão, institucionalização], sem com isto sair da turma.” Ler crítica

 

#09) Bowling Saturne

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“Esta é uma história de predadores, com rostos humanos e sorrisos maliciosos, que ora nos repugnam, ora nos fazem ferver o sangue. Se este último estado se manifestar, não se preocupem; Patricia Mazuy sabe bem onde tocar nos nossos nervos.” Ler crítica

 

#08) Evil Does Not Exist

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Hamaguchi fez tudo isso, apenas movimentando brisas e se poupando nas palavras, rodou uma ópera rural, com espiritualidades bastantes para permanecerem como nativos. No fim, olhamos para o céu, novamente, o mesmo movimento, o mesmo plano, só que a perspetiva, essa, encontra-se alterada. Digamos mutada. Um belíssimo filme de uma natureza estoica e lacónica.” Ler crítica

 

#07) Megalopolis

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Megalopolis” não estabelece qualquer arrojo na sua política forma de hablar — ou talvez sejamos nós demasiado cínicos ou comprometedores para compreendermos esta sua mensagem, ou que fazer com ela. O que mais irrequieta em “Megalopolis” é a sua tremenda ambição, um projeto idealizado anos e anos, embrionário desde os tempos em que Coppola invejava a sua ideia de “Cinema Ao Vivo” e do fracasso ruinoso que “One From the Heart” (1981) se tornaria. Aí era uma “semetezinha”, sobretudo conceptual.” Ler crítica

 

#06) La Chimera

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“Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um “Martin Eden” desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em “Futura” faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. “La Chimera” é somente a sua Caverna de Platão!” Ler crítica

 

#05) Ryuichi Sakamoto / Opus

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“De "Aqua" a "Last Emperor", passando por "The Sheltering Sky", e soando réquiem, a partitura que o catapultou ao seu merecido estatuto: "Merry Christmas Mr. Lawrence", tema da obra de Nagisa Oshima, o qual o próprio compositor contracenou ao lado de David Bowie (até ao fim dos seus dias arrependendo de não ter tido "melhor relação"), que por sua vez, contou com uma despedida coincidente, em forma de álbum, "Black Star", provando a música divina que os moribundos produzem no seu aproximar com o Fim. No caso de Sakamoto, a Ordem é a estrutura da sua arte, e com esse estandarte musicado lançamos-nos a uma última performance, os créditos finais, mesmo que necessários, poluem a tela, aquela figura que toca a música que nos acompanhará até à saída da sala.” Ler crítica

 

#04) Joker: Folie à Deux

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“(...) é de igual registo, chega-nos como um cinema infiltrado, resultar em outra pária, talvez no prolongado das alegorias do populismo viscoso e desesperante - alimentado pelo sensacionalismo do espectáculo que os medias se converteram - na busca de agentes de caos que possam conduzir-nos a um “Novo Mundo”. Joker de Phoenix continua como esse 'messias' fabricável, mas no fundo é um miserável que procura a empatia do qual sempre lhe fora negado.” Ler crítica

 

#03) All we Imagine as Light

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“Mas, sem falar abertamente sobre isso, “All We Imagine as Light” é, na verdade, um filme sobre cinema, porque a luz imaginária não poderia ser outra senão aquela libertada pelo projetor em direção à tela. A outra realidade, a única possível para aquela gente, Kapadia sabe disso e, generosamente, entregou-a. O tal segundo cenário, o campo delineado pelo mar, por sua vez, é o outro lado da tela.” Ler critica

 

#02) Fallen Leaves

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“Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.” Ler crítica

 

#01) C'est pas moi

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““C'est pas moi” são 40 minutos de imagens, sejam retalhados, sejam de origem, em colisão com as imagens banais do nosso redor, prescreve-se como um antídoto mas não se assume totalmente essa responsabilidade supra. Carax, por mais identificável que seja essa ‘viagem’, ele não fala para nós, e notamos isso, porque ao longo destes 40 minutos, a sua voz dita cavernosa aborda uma espécie de auto-psicanálise, há nele o pairar de uma presença paternal, de um “pai ausente” porventura. “O cinema é o lugar dos pais mortos”, da autoria de Serge Daney, e para Carax, o seu fantasma … um pouco banal até. Mas quem não o é nos dias de hoje?” Ler crítica

 

Menções honrosas: Via Norte, Trap, Rapito, A Flor do Buriti, Le procès Goldman, Manga d´Terra

O Livro das Imagens

Hugo Gomes, 05.12.24

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C'est pas moi (Leos Carax, 2024)

Preciso de descarregar… deixem-me lançar o pedregulho ao charco antes que seja tarde demais … eis o “Livro das Imagens” que Godard nunca conseguiu fazer! Agora sim, podem arrancar cabelos “godardianos”, acusar Carax de ser um enfant terrible, um trapaceiro imitador que se encosta à sombra de Jean-Luc para o sugar numa (des)pretensiosa autobiografia. Ou, por outro lado, podem procurar-me, ameaçar-me, ou declarar-me morto no oitavo círculo da cinefilia. Quem sou eu para vos persuadir de tal realidade? Aquela que, através dos meus olhos, encontra em Carax o que Godard não alcançou nas suas últimas voltas neste espaço terreno chamado Vida: a humildade perante a mortalidade. Não é preciso responder a Joan Crawford em "Johnny Guitar” (Nicholas Ray, 1954) para esvaziar o cinema da sua arte ilusória, onde cada filme é um truque de ilusionismo com segundas intenções. Carax não se coloca no intuito de sobrepor-se a esses trabalhos, a essas histórias, ou a essas cinefilias com um ar de absoluto eruditismo.

O cineasta de "Les Amants du Pont-Neuf" (1991) responde para lá do Cinema à pergunta implícita pelo Museu Pompidou: “Por onde anda?”. E, por sua vez, dirige-se ao seu próprio “eu”, numa tentativa de encontrar uma resposta definitiva nos leitos de um filme-testamento. Talvez seja de um encontro com Godard, do qual o realizador não é definitivo quanto a essa certeza, mas a intenção da reunião é clara ao longo do filme: manejar as imagens, despi-las, recentrá-las na sua reflexão ou colecionar a parafernália que as acompanha — uma fórmula profundamente godardiana.

Carax sente o tédio nas veias e, tal como o pombo de Roy Andersson, decidiu “pousar no ramo e reflectir sobre a sua existência”. Sobre o que significa e como se recoloca neste Mundo … e que Mundo, de facto! “C'est pas moi”, como o título jocosamente sugere, soa como a inversão do cliché da ruptura amorosa: “Não és tu, sou eu”. Aqui, porém, é: “Não sou eu, és tu”. E quem é esse “tu”? O Mundo? Talvez. Porque, desta existência, o Mundo ferve… fervilha em ódio de várias colorações políticas, atravessando épocas e bailes. Putin, Trump, Netanyahu (“Porquê ele?”, pergunta um membro da plateia. “Porque não?”, responde Carax do outro lado da sala perante o público do festival), e, obviamente, Hitler. Os agentes do caos, os semeadores do ódio e dos odiáveis, e, nesse quadro, cabe também a vítima, Roman Polanski, sobrevivente do Holocausto, que por sua vez se converte no que sempre fugira: um homem de ódio. Será o ódio parte da nossa natureza humana?

Ao longo de 40 anos de carreira, Leos Carax autobiografa as imagens da sua autoria — de “Mauvais Sang” (1986) a Annette (2021), passando por “Pola X” (1999) e “Holy Motors (2012). Denis Lavant, o seu guia espiritual, permanece presente como o autêntico Monsieur Merde, que dialoga com a loucura enquanto solução para a sanidade e progressão humanas. Por via dessa retrospectiva, satura-se, a televisão é o símbolo desse excesso imagético, a mão do autor promovido a sombra perante o ruído branco transmitido pelo pequeno ecrã, Godard tinha postura idêntica [“Prénom Carmen”, 1983], um abraço à ferramenta frente do seu tempo, hoje, o televisivo, como a estagnação do mesmo. A televisão foi só o paciente zero, o Cinema virou o sintoma seguinte, a sua banalidade, a corrói, revira as suas entranhas e estabelece um fio condutor da própria imbecilidade.

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C'est pas moi (Leos Carax, 2024)

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Prénom Carmen (Jean-Luc Godard,1983)

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Prénom Carmen (Jean-Luc Godard,1983)

Carax não aponta directamente aos agressores do Cinema, mas está implícito quem são, onde estão, e para onde vão. Marvel não ficará com a culpa toda, mas detém parte desse cartório. extraviaram desse propósito, são apenas umas, e muitas, para tal segue-se às origens, a Eadweard Muybridge, ao cavalo em 12 fotogramas, e corta-se para Lavant correndo feito louco na bravura de “Modern Love” de David Bowie em 24 frames por segundo. Por mais punk e moderno que seja, Carax liga-se diretamente à génese das imagens em movimento. Num mundo de ecrãs cada vez menores, clama-se por um olhar puro, o Olhar de Deus: aquele que observa a vida, o movimento e as mulheres com devoção, acompanhado por “Sunrise de F. W. Murnau (1927), mais um clássico para sobressair essa ideia de pureza em período de hibridez.

Carax declara amor ao plano subjetivo. A nuca de Kim Novak na lente de Jimmy Stewart [“Vertigo", 1958] é a deusa encantatória que o realizador confessa nunca ter conseguido reproduzir: “Nunca fiz um plano subjetivo nos meus filmes…” e continuando nessa jura amorosa, conforma-se com o intitulado “plano déjà vu”. Mas onde fica o coração? O eventual aforismo tem uma contradição, o único dos seus planos subjetivos … e que plano? Porque o único plano subjetivo de Carax… que plano! Em “Mauvais Sang, o rosto angelical de Juliette Binoche aproxima-se lentamente. Cada traço daquela face — os olhos, o nariz, os lábios, o sinalzinho, a pele brilhante — convida-nos à contemplação. Ali, vemos Deus! Ou melhor, olhamos para ele com os tão procurados Olhos de Deus. Mas ainda não acabou. A viagem oferece um brinde: a pequena Annette, que corre — ou melhor, voa — como rima à corrida de Denis Lavant ao som de “Modern Love”, assistida pelos seus kurokos (manipuladores de marionetas no teatro Bunraku). Esta é a imagem que persiste.

“C'est pas moi” são 40 minutos de imagens, sejam retalhados, sejam de origem, em colisão com as imagens banais do nosso redor, prescreve-se como um antídoto mas não se assume totalmente essa responsabilidade supra. Carax, por mais identificável que seja essa ‘viagem’, ele não fala para nós, e notamos isso, porque ao longo destes 40 minutos, a sua voz dita cavernosa aborda uma espécie de auto-psicanálise, há nele o pairar de uma presença paternal, de um “pai ausente” porventura. “O cinema é o lugar dos pais mortos”, da autoria de Serge Daney, e para Carax, o seu fantasma … um pouco banal até. Mas quem não o é nos dias de hoje?

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Horse in Motion (Eadweard Muybridge, 1878)

Mauvais Sang (Leos Carax, 1986)

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Annette (Leos Carax, 2021)

Uma *carax* experiência!!

Hugo Gomes, 27.11.24

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Experiência única a minha: sozinho numa sala de cinema, primeira fila, eu, o Carax e o seu delírio, no final "Modern Love" - música que me acompanhou anos no Exército enquanto despertador (os camaradas já não podiam com ela), seleção graças ao meu primeiro contacto com "Mauvais Sang" (como esquecer Denis Lavant correr que nem um doido) - uma lágrima correu-me pelo rosto. É Cinema!! Sinto-o violentamente nas minhas entranhas. Poderei estar sozinho, mas não me interessa, como naquele visionamento, sozinho mas igualmente acompanhado pelos espectros projetados em grande tela.

Emocionei, refleti, tentei juntar os pontos enquanto cantarolava:

I catch a paper boy
But things don't really change
I'm standing in the wind
But I never wave bye-bye

Já é cliché afirmar, mas ... filme do *caraxas*

Estreia 5 de dezembro nos cinemas selecionados.

Leos Carax em direção às tempestuosas cadências sentimentais

Hugo Gomes, 07.07.21

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Em matéria de Leos Carax,  era o que esperávamos e igualmente o que não esperávamos. Passo a explicar, do realizador dos ecléticos exercícios como “Holy Motors”, “Mauvais Sang” e “Les Amants du Pont-Neuf”,  era mais que expectável algo que saísse da sua errante trajetória artística, que não fizesse “pandã” com o gesto anterior, e nisso foi concretizado em forma de musical. O que não esperávamos era ver um Carax fascinado aos elementos que compõem a convencionalidade, territórios escassamente evadidos no género em questão.

O resultado, esse, é um autêntico cuscuz, fervido em água e sal e servido como acompanhamento. Quanto a tal acompanhamento, deparamos com a mais-valia de “Annette”, os momentos “fora da caixa” que desafiam ainda mais a própria credibilidade do musical e o gosto generalizado de quem os consome. Seja sexo oral, valsas furiosas ao sabor das ondas, ou o propositado uncanny valley  (vale da estranheza) numa das personagens, artifícios e artificialidades que colocam Adam Driver e Marion Cottilard  (um portento casal), em na coreografia estabelecida do cinema de Carax, os romances autodestrutivos.

As consequências são levadas ao extremo numa sintonia composta pelos Sparks, reunindo paixões, ódios, a comédia como escudo de uma sociedade consciente, ou meramente consciente da sua consciência, e até espaço para emaranhados meta, na sua formalidade ou na sua temática (o #metoo referido como uma faca de dois gumes). O realizador sempre desejara elaborar um convicto musical, nunca o escondeu na sua filmografia, principalmente nos sketches aprimorados do anterior “Holy Motors”, porém, nunca prevíamos a sua cedência pelo encanto do mesmo e uma maior hesitação à bizarria com que anseia (julgamos nós) romper.

Mesmo assim, tendo em conta que “Annette” é até à data o seu filme mais acessível e o mais “americanizado” (não tento com isto soar um termo pejorativo, mas no sentido do seu virtuosismo), a estranheza, mais do que um “vale”, é uma dança cadenciada em ritmos opostos.

Década 2010 - 2019: os filmes que ditaram a nossa jornada pela imagem

Hugo Gomes, 28.12.19

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Antes de começar com a previsível justificação da minha seleção, queria mencionar um filme que apesar de se encontrar ausente desta listagem, foi importante e reflexivo para com a virada da década, e quiçá, desenhando aquele que diríamos ser o cinema das próximas gerações.

Essa obra é nada mais, nada menos, que a “The Social Network” (A Rede Social), de David Fincher, que acertou contas com um dos possíveis vórtices da nossa identidade do século XXI, enquanto individual, enquanto coletiva. Não poderemos negar que os nossos dias são demasiado dependentes desse dispositivo - o de trabalhar a nossa imagem para o exterior e moderar a exposição do nosso (não) íntimo. Digamos, que foi através desses pensamentos perante tal “futilidade”, do qual se tornariam o espelho narcisista da nossa modernidade, que Aaron Sorkin inspirou-se para escrever esta fictícia trama (na altura apontada como “cedo demais”) que operaria como pontapé de saída para os filme que reúno aqui – intimidade expositiva e a imagem fabricada da nossa existência.

Por isso, passeamos pelo último gesto de cineastas incompreendidos (The Other Side of the Wind, The Turin Horse) até à possível previsão do futuro do cinema (Holy Motors, The Congress), a nossa exposição sentimental como instalação artística (Elena, Before We Go, L’ Vie d’ Adèle), a identidade ou existência como demanda de natureza várias (La Grande Bellezza, La Piel que Habito, Django Unchained). Mas no seu todo é uma “mixórdia”, como muitos deverão salientar, de velhos autores em reunião com outros nomes sonantes e promissores que aguardam pelo seu tempo. Porque o cinema tem destas coisas - o de esperar para ver.

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1 -The Other Side of the Wind (Orson Welles, 2018)

2 – Holy Motors (Leo Carax, 2012)

3 – Elena (Petra Costa, 2012)

4 – La vie d'Adèle (Abdellatif Kechiche, 2013)

5 – The Turin Horse (Béla Tarr & Ágnes Hranitzky, 2011)

6 – Before We Go (Jorge Léon, 2014)

7 – The Congress (Ari Folman, 2013)

8- La Grande Bellezza (Paolo Sorrentino, 2013)

9 - Django Unchained (Quentin Tarantino, 2012)

10 - La piel que habito (Pedro Almodóvar, 2011)

O sagrado Cinema falado por Leos Carax

Hugo Gomes, 22.04.14

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Uma invocação à sua paixão pelo cinema, que está decidido a referenciar  para lá das enésimas “serenatas à chuva”, mas com fidelidade ao seu legado enquanto autor-amante, “Holy Motors” (2012) marcou o regresso do peculiar cineasta Leos Carax, 13 anos após o fracassado “Pola X”, com Guillaume Depardieu e Yekaterina Golubeva (a sua companheira, que faleceu pouco tempo antes da rodagem de "Holy") e a sua colaboração no coletivo “Tóquio!” (ao lado de Michel Gondry e Bong Joon-ho). O cineasta encontrou refúgio numa sala de cinema, sem qualquer ligação com o mundo exterior. O público que esgota o espaço encontra-se adormecido, sinal de tédio perante as imagens que se movimentam na tela. Trata-se de uma advertência sobre estes tempos, os do cinema saturado, exausto pela seca criativa que comete o maior crime aos seus espectadores, o de transformar o ritual da ida e volta à sala numa espécie de diluição do seu mais mundano quotidiano.

É neste cenário que Leos Carax (o próprio), um ser confinado ao seu espaço de repouso, descobre subitamente a secreta porta que o leva para essa realidade, e por vias de um desconfortante chamamento, procura o registo afetivo com o gesto da criação cinematográfica. A partir daqui, o espectador de "Holy Motors" entranha-se, perdido perante uma panóplia de histórias que se confrontam em busca de um sentido para a sua existência, da mesma forma que o protagonista, Oscar (Denis Lavant, o ator mais associável ao cinema de Carax) se tenta debruçar sobre a sua identidade.

Para o espectador fica o mero aviso: não tente encontrar ligações entre as situações mirabolantes e diversificadas que surgem perante os nossos olhos. O que interessa, como diz um “manchado” Michel Picccoli, que surge instantaneamente da mesmo forma como desaparece, “é o amor do gesto”. Entendemos que Óscar é um homem em vias de extinção, dos últimos da sua arte, de mil faces e almas que vagueiam pela cidade parisiense. Nele concentram-se todos os contornos da personificação do Cinema, um paralelismo (e menção) com outra figuração da Sétima Arte, a da cineasta Agnès Varda no seu esquecido especial “Les cent et une nuits de Simon Cinéma” (curiosamente, aqui era o ator Piccoli sob as vestes do centenário Sr. Simon Cinéma).

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Assim sendo, interrogando-se sobre os porquês e acréscimos do seu eterno romance com a Sétima Arte e exclamando da pulcritude que é o de entrar num “não-lugar” onde todos os seus devaneios são possíveis, Leos Carax persiste em “encaminhar” os espectadores para um universo em que fantasmas percorrem as ruas da capital com mais vivência que os próprios vivos. É neste processo de criação e construção de um mundo tão próprio como íntimo que o realizador cataloga um leque de personagens bizarras, negras e singulares. Cada uma dessas invocações tem como propósito homenagear os diferentes tipos e géneros de cinema, dos estilos às metáforas.

Viajamos dos primórdios clássicos do cinema mudo à complexidade visual da era tecnológica moderna (como podemos assistir nas sequências de "motion-capture" de tamanha beleza e sensualidade), passando pelo musical "hollywoodesco" e emocionante que a cantora e atriz australiana Kylie Minogue interpreta com alma, até chegarmos à prosopopeia cinematográfica assistida no último tomo, quando a limusine que transporta o nosso “viajante cinematográfico” decide demonstrar a sua personalidade, como um produto digno da Disney-Pixar.

Com este biótopo erguido por igual fascínio de primeiro contacto, “Holy Motors” é, na sua simplicidade, cinema de muitas variantes, muitos requintes e muitos “amores”, tornando-o quase inclassificável dentro do seu próprio seio. Por assim dizer, um OVNI! Porém, um dos mais belos do cinema recente.