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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Leos Carax em direção às tempestuosas cadências sentimentais

Hugo Gomes, 07.07.21

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Em matéria de Leos Carax,  era o que esperávamos e igualmente o que não esperávamos. Passo a explicar, do realizador dos ecléticos exercícios como “Holy Motors”, “Mauvais Sang” e “Les Amants du Pont-Neuf”,  era mais que expectável algo que saísse da sua errante trajetória artística, que não fizesse “pandã” com o gesto anterior, e nisso foi concretizado em forma de musical. O que não esperávamos era ver um Carax fascinado aos elementos que compõem a convencionalidade, territórios escassamente evadidos no género em questão.

O resultado, esse, é um autêntico cuscuz, fervido em água e sal e servido como acompanhamento. Quanto a tal acompanhamento, deparamos com a mais-valia de “Annette”, os momentos “fora da caixa” que desafiam ainda mais a própria credibilidade do musical e o gosto generalizado de quem os consome. Seja sexo oral, valsas furiosas ao sabor das ondas, ou o propositado uncanny valley  (vale da estranheza) numa das personagens, artifícios e artificialidades que colocam Adam Driver e Marion Cottilard  (um portento casal), em na coreografia estabelecida do cinema de Carax, os romances autodestrutivos.

As consequências são levadas ao extremo numa sintonia composta pelos Sparks, reunindo paixões, ódios, a comédia como escudo de uma sociedade consciente, ou meramente consciente da sua consciência, e até espaço para emaranhados meta, na sua formalidade ou na sua temática (o #metoo referido como uma faca de dois gumes). O realizador sempre desejara elaborar um convicto musical, nunca o escondeu na sua filmografia, principalmente nos sketches aprimorados do anterior “Holy Motors”, porém, nunca prevíamos a sua cedência pelo encanto do mesmo e uma maior hesitação à bizarria com que anseia (julgamos nós) romper.

Mesmo assim, tendo em conta que “Annette” é até à data o seu filme mais acessível e o mais “americanizado” (não tento com isto soar um termo pejorativo, mas no sentido do seu virtuosismo), a estranheza, mais do que um “vale”, é uma dança cadenciada em ritmos opostos.

Década 2010 - 2019: os filmes que ditaram a nossa jornada pela imagem

Hugo Gomes, 28.12.19

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Antes de começar com a previsível justificação da minha seleção, queria mencionar um filme que apesar de se encontrar ausente desta listagem, foi importante e reflexivo para com a virada da década, e quiçá, desenhando aquele que diríamos ser o cinema das próximas gerações.

Essa obra é nada mais, nada menos, que a “The Social Network” (A Rede Social), de David Fincher, que acertou contas com um dos possíveis vórtices da nossa identidade do século XXI, enquanto individual, enquanto coletiva. Não poderemos negar que os nossos dias são demasiado dependentes desse dispositivo - o de trabalhar a nossa imagem para o exterior e moderar a exposição do nosso (não) íntimo. Digamos, que foi através desses pensamentos perante tal “futilidade”, do qual se tornariam o espelho narcisista da nossa modernidade, que Aaron Sorkin inspirou-se para escrever esta fictícia trama (na altura apontada como “cedo demais”) que operaria como pontapé de saída para os filme que reúno aqui – intimidade expositiva e a imagem fabricada da nossa existência.

Por isso, passeamos pelo último gesto de cineastas incompreendidos (The Other Side of the Wind, The Turin Horse) até à possível previsão do futuro do cinema (Holy Motors, The Congress), a nossa exposição sentimental como instalação artística (Elena, Before We Go, L’ Vie d’ Adèle), a identidade ou existência como demanda de natureza várias (La Grande Bellezza, La Piel que Habito, Django Unchained). Mas no seu todo é uma “mixórdia”, como muitos deverão salientar, de velhos autores em reunião com outros nomes sonantes e promissores que aguardam pelo seu tempo. Porque o cinema tem destas coisas - o de esperar para ver.

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1 -The Other Side of the Wind (Orson Welles, 2018)

2 – Holy Motors (Leo Carax, 2012)

3 – Elena (Petra Costa, 2014)

4 – La vie d'Adèle (Abdellatif Kechiche, 2013)

5 – The Turin Horse (Béla Tarr & Ágnes Hranitzky, 2011)

6 – Before We Go (Jorge Léon, 2014)

7 – The Congress (Ari Folman, 2013)

8- La Grande Bellezza (Paolo Sorrentino, 2013)

9 - Django Unchained (Quentin Tarantino, 2012)

10 - La piel que habito (Pedro Almodóvar, 2011)

O sagrado Cinema falado por Leos Carax

Hugo Gomes, 22.04.14

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Uma invocação à sua paixão pelo cinema, que está decidido a referenciar  para lá das enésimas “serenatas à chuva”, mas com fidelidade ao seu legado enquanto autor-amante, “Holy Motors” (2012) marcou o regresso do peculiar cineasta Leos Carax, 13 anos após o fracassado “Pola X”, com Guillaume Depardieu e Yekaterina Golubeva (a sua companheira, que faleceu pouco tempo antes da rodagem de "Holy") e a sua colaboração no coletivo “Tóquio!” (ao lado de Michel Gondry e Bong Joon-ho). O cineasta encontrou refúgio numa sala de cinema, sem qualquer ligação com o mundo exterior. O público que esgota o espaço encontra-se adormecido, sinal de tédio perante as imagens que se movimentam na tela. Trata-se de uma advertência sobre estes tempos, os do cinema saturado, exausto pela seca criativa que comete o maior crime aos seus espectadores, o de transformar o ritual da ida e volta à sala numa espécie de diluição do seu mais mundano quotidiano.

É neste cenário que Leos Carax (o próprio), um ser confinado ao seu espaço de repouso, descobre subitamente a secreta porta que o leva para essa realidade, e por vias de um desconfortante chamamento, procura o registo afetivo com o gesto da criação cinematográfica. A partir daqui, o espectador de "Holy Motors" entranha-se, perdido perante uma panóplia de histórias que se confrontam em busca de um sentido para a sua existência, da mesma forma que o protagonista, Oscar (Denis Lavant, o ator mais associável ao cinema de Carax) se tenta debruçar sobre a sua identidade.

Para o espectador fica o mero aviso: não tente encontrar ligações entre as situações mirabolantes e diversificadas que surgem perante os nossos olhos. O que interessa, como diz um “manchado” Michel Picccoli, que surge instantaneamente da mesmo forma como desaparece, “é o amor do gesto”. Entendemos que Óscar é um homem em vias de extinção, dos últimos da sua arte, de mil faces e almas que vagueiam pela cidade parisiense. Nele concentram-se todos os contornos da personificação do Cinema, um paralelismo (e menção) com outra figuração da Sétima Arte, a da cineasta Agnès Varda no seu esquecido especial “Les cent et une nuits de Simon Cinéma” (curiosamente, aqui era o ator Piccoli sob as vestes do centenário Sr. Simon Cinéma).

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Assim sendo, interrogando-se sobre os porquês e acréscimos do seu eterno romance com a Sétima Arte e exclamando da pulcritude que é o de entrar num “não-lugar” onde todos os seus devaneios são possíveis, Leos Carax persiste em “encaminhar” os espectadores para um universo em que fantasmas percorrem as ruas da capital com mais vivência que os próprios vivos. É neste processo de criação e construção de um mundo tão próprio como íntimo que o realizador cataloga um leque de personagens bizarras, negras e singulares. Cada uma dessas invocações tem como propósito homenagear os diferentes tipos e géneros de cinema, dos estilos às metáforas.

Viajamos dos primórdios clássicos do cinema mudo à complexidade visual da era tecnológica moderna (como podemos assistir nas sequências de "motion-capture" de tamanha beleza e sensualidade), passando pelo musical "hollywoodesco" e emocionante que a cantora e atriz australiana Kylie Minogue interpreta com alma, até chegarmos à prosopopeia cinematográfica assistida no último tomo, quando a limusine que transporta o nosso “viajante cinematográfico” decide demonstrar a sua personalidade, como um produto digno da Disney-Pixar.

Com este biótopo erguido por igual fascínio de primeiro contacto, “Holy Motors” é, na sua simplicidade, cinema de muitas variantes, muitos requintes e muitos “amores”, tornando-o quase inclassificável dentro do seu próprio seio. Por assim dizer, um OVNI! Porém, um dos mais belos do cinema recente.