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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Elas Fazem Filmes", e fazem mesmo!: Mostra de realizadoras segue pelo país fora através da MUTIM

Hugo Gomes, 18.09.24

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Frágil como o Mundo (Rita Azevedo Gomes, 2001)

Arranca hoje (18/09) a mostra itinerante “Elas Fazem Filmes” - uma colaboração entre a associação MUTIM (Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento) e a Cinemateca Portuguesa, com o apoio do ICA. A mostra parte da “casa-mãe”, o Museu do Cinema, com uma sessão dupla: Cães que Ladram aos Pássaros, curta-metragem de Leonor Teles, e a segunda longa-metragem de Monique Rutler, “Jogo de Mão”, cineasta a ser redescoberta, e prossegue com a ambição de chegar a 14 cidades de todo o país até julho de 2025, trazendo uma coleção de obras, célebres e algumas esquecidas que merecem uma nova apreciação, todas dirigidas por mulheres - cineastas portuguesas que desafiam o cânone ou oferecem uma um novo olhar sobre a História do Cinema Português.

A mostra inclui fragmentos de Barbara Virginia, indiscutivelmente a primeira mulher realizadora em Portugal, com “Três Dias sem Deus” (dos 102 minutos, só restam atualmente 25), a inaugural produção portuguesa a competir no Festival de Cannes. Inclui também as primeiras obras de Rita Azevedo Gomes (“Frágil Como o Mundo”, 2001), Manuela Viegas (“Glória”, 1999) e Margarida Gil (“Relação Fiel e Verdadeira”, 1987), documentos históricos de Raquel Soeiro de Brito (“Erupção Vulcânica dos Capelinhos”, 1958) e de Ana Hatherly (“Revolução”, 1975), animação (trabalhos de Laura Gonçalves, Regina Pessoa e Alexandra Ramires) e documentário (Catarina Mourão, Cláudia Varejão ou Susana de Sousa Dias), entre outros. Um verdadeiro “espectáculo de variedades”, uma montra polivalente de filmes cujo único elo comum é o facto de terem sido conduzidos, concebidos e produzidos através do trabalho árduo e dedicação de mulheres.

O MUTIM disponibilizou-se a responder a algumas questões do Cinematograficamente Falando… não só sobre o ciclo itinerante, como também sobre as projeções e ativismos que “Elas Fazem Filmes” pretende alcançar, bem como sobre a natureza e a estrutura do coletivo. Mariana Liz, professora e co-autora do livro “Realizadoras Portuguesas: Cinema no Feminino na Era Contemporânea”, e Marta Fernandes, distribuidora e programadora [Midas Filmes], aceitaram o desafio, e respeitando o espírito do movimento, falaram em nome de todas, e não apenas uma. Assim, o MUTIM assume uma entidade coletiva e própria neste informativo diálogo. 

Qual foi o impulso inicial para dar vida à mostra “Elas Fazem Filmes” e quais os obstáculos enfrentados ao longo do processo de curadoria e produção?

Desde a sua criação em Abril de 2022, que a MUTIM promove sessões de filmes realizados por mulheres, sessões que contam com debates e a presença sempre que possível de realizadoras ou membros da equipa e de outras profissionais que possam discutir os filmes. As sessões começaram em Lisboa, em parceria com o Goethe-Institut, e mais tarde passámos também a promovê-las no Porto, em conjunto com a Casa das Artes. O ano passado e depois das conclusões do estudo do meio sobre “A Condição da Mulher nos Sectores do Cinema e Audiovisual em Portugal achámos que devíamos criar uma iniciativa que nos permitisse promover o cinema feito por mulheres em Portugal, mas também discutir a nível nacional e com os espectadores as conclusões a que o estudo chegou. As mulheres ganham menos, ocupam menos cargos de chefia, tem mais entraves à progressão da carreira, são vítimas de discriminação de género, assédio, racismo. 

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Jogo de Mão (Monique Rutler, 1983)

Relativamente aos entraves, o apoio que conseguimos do ICA, sendo fundamental para levarmos a cabo a mostra, foi, infelizmente, inferior ao solicitado e por isso não nos permitirá ir a tantas cidades como ambicionávamos. E no processo de programação, existiram também filmes que gostaríamos muito de ter incluído, mas que não foi possível por uma questão de inexistência de cópias disponíveis ou por questões de direitos. 

A mostra reúne cineastas de diferentes gerações, de géneros como também de movimentos artísticos. Como se deu a seleção dos filmes e de que modo acreditam que essa diversidade de perspetivas traduz o panorama do cinema português à luz das mulheres?

A programação da mostra “Elas Fazem Filmes” foi, como aliás todo o processo desde a procura de financiamento até à produção em curso, um trabalho colectivo, feito a muitas mãos. Queríamos apresentar uma programação inédita que permitisse ser um ponto de partida para reflectir sobre o cinema feito por mulheres em Portugal. E para isso era fundamental apresentar filmes de cineastas de diferentes gerações, a trabalhar em diferentes géneros cinematográficos de forma a que pudéssemos ter uma diversidade fértil de olhares e estabelecer diálogos entre filmes e realizadoras. Quisemos ter o máximo de géneros presentes, ter animação, documentários, documentários mais experimentais, aproximações ao fantástico e ao terror, ao filme etnográfico, à ficção científica. Mostrar que o cinema feito por mulheres em Portugal é muito variado e rico. E ajudar a desmontar preconceitos que existam relativamente ao cinema português e especificamente ao cinema realizado por mulheres. 

A colaboração com a Cinemateca Portuguesa, nomeadamente no que toca à digitalização de filmes, foi um ponto essencial para a concretização deste projeto. Como vêem o impacto dessa parceria na preservação e disseminação da obra cinematográfica de mulheres portuguesas?

É um trabalho imprescindível. Parte dos filmes que iremos mostrar só é possível fazê-lo graças a este trabalho da Cinemateca. Seria muito difícil exibir fora de Lisboa e da Cinemateca muitos dos filmes que programamos. É possível fazê-lo porque existem hoje cópias digitais. É preciso ter sempre presente a questão do acesso. Quando, no passado, outras cidades reivindicavam o direito a ter uma Cinemateca, estavam a pedir a descentralização. É claro que o acesso a cópias em 35mm é sempre difícil e por questões de preservação pode ser limitado. Com a digitalização, a circulação torna-se possível e os filmes passam a ser programados mais facilmente, salvando-os de uma invisibilização a que eram sujeitos por uma questão de suporte. Mas é um trabalho que tem de continuar a ser feito, e deve ser defendido e promovido, porque continuam a existir muitos filmes por digitalizar. 

A MUTIM defende uma maior equidade no sector cinematográfico e audiovisual. Na vossa opinião, que transformações mais urgentes precisam de acontecer para garantir uma verdadeira representatividade das mulheres no meio?

Há várias medidas que podem ser postas em prática e que contribuíram não só para uma maior representatividade das mulheres, mas também uma maior igualdade do setor do cinema e audiovisual em Portugal. Por exemplo, a MUTIM defende o estabelecimento de parcerias com instituições públicas, como a

Comissão para a Igualdade de Género, no sentido de explorar sinergias ao nível do aproveitamento de políticas que tenham impacto no nosso sector, e na sociedade de forma mais lata. Inspirando-nos no que já acontece em outros países europeus, propomos também que se implementem, nos concursos públicos de apoio ao sector, incluindo os do ICA, majorações nos projetos que cumpram critérios de representatividade de género e nos projetos que tenham como criadores e/ou chefes de departamento pessoas racializadas. 

Para além disto, defendemos a atribuição de um valor monetário extra a produções que cumpram 50%/50% ao nível da paridade de género na constituição das suas equipas e respetivas direções de departamento; e a atribuição de um valor monetário extra para a seguinte produção de produtora que continue a cumprir o critério dos 50% / 50% na composição de género das equipas. No que tem a ver com composições de jurados de prémios e financiamentos ao setor, é muito importante não só ter paridade, mas também formar as pessoas no sentido de combater o unconscious bias do sector e diminuir os estereótipos das candidaturas. Dar aos jurados Inclusion Checklists para acompanhar a leitura dos projetos pode também ser útil se contemplado no regulamento, e prevendo a atribuição de pontos extra na avaliação aos projetos que os cumpram. 

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Três Dias sem Deus (Barbara Virgínia, 1943)

Finalmente, recomendamos que seja posta em prática uma avaliação interna contínua sobre representatividade de género e racial, sendo que, na sequência do nosso estudo, acreditamos que ganhar consciência anual dos dados factuais que compõem ou não a diversidade das produções e das narrativas é um primeiro passo fundamental para a construção de um setor mais diverso e menos desigual. Aliada a esta visão, propomos também o estabelecimento de metas percentuais de representatividade e consequente aplicação de medidas para as concretizar.

De que forma a mostra “Elas Fazem Filmes” procura fomentar uma reflexão crítica sobre a imagem e o papel das mulheres no cinema português, tanto no conteúdo narrativo como nas oportunidades de participação?

Todas as sessões da mostra terão uma conversa / debate no final que contará com as realizadoras, profissionais mulheres que integraram a equipa técnica e artística dos filmes apresentados e associadas da MUTIM. E tentámos organizar as sessões de forma a que duas realizadoras de gerações diferentes pudessem conversar sobre as semelhanças e diferenças nos desafios de filmar nas suas gerações. Ao convidar não só realizadoras a falar sobre o filme, mas também outras profissionais, queremos sublinhar o trabalho da criação de um filme como um trabalho colectivo e valorizar todas as profissionais que para nele trabalham. Como já foi dito, queremos também que associadas da MUTIM estejam presentes para discutir as conclusões do estudo do meio, porque falar das conclusões do estudo é o primeiro passo para a mudança. 

A interseccionalidade tem sido um pilar nas discussões da MUTIM. De que modo este princípio influenciou a escolha dos filmes e como têm procurado dar palco a mulheres de diferentes contextos sociais, raciais e geográficos?

É algo que temos sempre presente e que tentamos cumprir o máximo possível e como tal influenciou parte das escolhas que fizemos de programação. Sabemos que as dificuldades que as mulheres enfrentam no cinema e no audiovisual são ainda maiores quando falamos de mulheres fora dos centros urbanos ou de mulheres imigrantes, racializadas ou trans. O nosso trabalho tem obrigatoriamente de passar por ajudar a eliminar essas barreiras.

A mostra vai passar por várias cidades do país. Como esperam que a itinerância contribua para a receção das obras e para a criação de novos públicos, especialmente fora dos grandes centros urbanos?

Quando começámos a pensar a mostra, pareceu-nos crucial que não fosse mais uma mostra que se centrasse unicamente nos grandes centros urbanos, até porque já organizávamos sessões regularmente nas cidades de Lisboa e do Porto. Tendo em conta que é muito mais difícil aceder a cinema português fora das grandes cidades, e mais ainda a filmes realizados por mulheres, achámos desde o início que a itinerância e levar estes filmes ao máximo de cidades possível seria uma necessidade. Mas mais que mostrá-los, os filmes serão acompanhados pelas realizadoras e por associadas da MUTIM porque queremos que se estabeleça um diálogo com os públicos, queremos ajudar à formação de públicos para o cinema português, mas também ajudar ao debate sobre as questões de género. E tentaremos em todas as cidades por que passarmos e com a ajuda dos nossos parceiros locais fazer um trabalho junto do público escolar, trabalho que nos parece de extrema importância.

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Para mais informação sobre a mostra ver aqui

Arranca a 3ª edição do Cinalfama: "cheira bem, cheira a Cinema"

Hugo Gomes, 24.07.24

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O espírito da velha capital é projetado nas suas tradicionais ruas, mesmo que Lisboa esteja a ser despida dos seus habitantes, os carinhosamente apelidados de “alfacinhas”, dando lugar a um turismo voraz e padronizado. Mas não avancemos mais nesta crónica sobre a gentrificação, até porque o Cinalfama, na chegada da terceira edição, é uma iniciativa que visa captar o lado cinematográfico da cidade, fazendo dela um eco cultural. Do Largo de São Miguel ao Museu do Fado, serão projetados dezenas e dezenas de filmes provenientes dos quatro cantos do mundo, e ao contrário do que assola aquela região, não se trata de turismo, ao invés disso designemos orgulhosamente como Cinema.

João Almeida Gomes, diretor do festival, respondeu ao Cinematograficamente Falando… num plano geral deste evento que iniciou na passada segunda-feira, dia 22 de julho, e que terá o “The End” (calma, intervalo, voltará para o ano!) no dia 26 [ver programação completa aqui].

Chegamos à terceira edição do Cinalfama, olhando em retrospetiva como é que este festival cresceu ou ainda pode vir a crescer?

Tem crescido em número de filmes recebidos, em número de espectadores e atenção mediática e na criação de projetos de alcance comunitário como a recolha filmada de histórias e oralidades de Alfama. Mas tudo sempre com o ambiente de informalidade e intimidade que é a nossa essência desde a génese. 

O que pode dizer sobre a programação deste ano, e a sua relação com a nossa contemporaneidade?

Um exemplo: o filme de abertura é o “Judgment in Hungary” sobre um julgamento de crime de ódio racial contra ciganos na Hungria. Queremos perceber que tangentes poderão ter o atual clima político português com a situação húngara. 

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Judgment in Hungary (Eszter Hajdú, 2013)

Sobre os convidados do festival?

Vários realizadores nos visitarão para apresentar os seus filmes pessoalmente e realizadores como a Renata Sancho e a realizadora húngara radicada em Portugal Eszter Hajdu também estarão presentes. 

Poderia me falar sobre esse projeto - Recolhas Filmadas de Histórias e Oralidades de Alfama - que terá contribuição de Pedro Costa, Leonor Teles, Pedro Cabeleira, entre outros?

Convocaremos vários realizadores a verem através da sua própria lente e subjetividade o passado, presente e futuro de Alfama

Sobre a cidade, Lisboa, não apenas a menina e moça, mas toda esta gentrificação que estamos a testemunhar, existe algum receio que isso possa afetar o público do Cinalfama, o facto dos “lisboetas” estar cada vez longe do centro da cidade, ou até mesmo da cidade?

Talvez seja, pelo contrário, o que os possa atrair. Um desejo de fruir algo de real e profundo num wasteland cultural. 

Vemos neste festival um gesto de preservação da Lisboa antiga, e cinematográfica?

A Lisboa antiga também é um pouco romantizada. A Alfama antiga era, por exemplo, um cenário de enormes privações materiais. Por isso a nossa função é complexificar, densificar a própria ideia de Alfama e isso implica também (mas não só) falar da saudade e do espírito comunitário que se perdeu.

Ambições para o futuro?

Que os nossos projetos em torno da memória de Alfama entrem em velocidade cruzeiro e que o Cinalfama siga no seu processo gradual de legitimação.

Leonor Teles: "A direção de fotografia é o lugar que me faz mais feliz!"

Hugo Gomes, 12.04.24

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"Baan" (Leonor Teles, 2023)

Chegamos a L (Carolina Miragaia), uma jovem que caminha numa dimensão diluída, seja nas suas memórias embaralhadas por ordens indecifráveis do destino, seja no lugar, entre Lisboa e Bangkok, uma nova cidade e ao mesmo tempo cidade nenhuma. Qualquer um de nós, outros já passando em oposição aos que ainda vão passar, identifica-se com L, as suas crises, as suas dúvidas existenciais, a sua melancolia nunca dissipada em festas alheias. L é mais do que uma personagem, é um estado de alma, e esse estado tem um outro nome: Leonor Teles.

Percorremos "Baan" (da palavra tailandesa "Lar"), nessa imaginação, nessa mistura de águas salobras. É um filme de passagem, isso sim, de uma realizadora, e quiçá autora, que desde o brilharete em Berlim ("Balada dos Batráquios"), se afigurou na linha da frente um cinema com novos olhares e linguagens a serem enxertados em Portugal. Depois da sua estreia em Locarno e do circuito comercial nacional, "Baan" parte em busca do seu verdadeiro lar, que é conhecido por outra designação: a sala de cinema.

Aproveitando a sua chegada ao Funchal, por via do cineclube/iniciativa Screenings Funchal, o Cinematograficamente Falando... partilha uma breve conversa com a realizadora, questionando-nos sobre os caminhos que Leonor (a nossa L) irá trilhar. Mãos à obra!

Arranco com a mais 'chata' das questões: como começou este projeto? 

A ideia para o “Baan” surgiu desde 2017, quando viajei e filmei um videoclipe em Macau. Daí nasceu um desejo de filmar um filme em território asiático, que surge desta procura num lugar no Mundo após o fim abrupto de uma relação. Obviamente que esta busca do “depois de um fim” traz consigo todas estas questões de; “como voltar a confiar?”, “Como se sentir bem” e outros problemas de confiança. É toda uma série de consequências e igualmente de novos horizontes o qual apetecia explorar no preciso momento em que uma pessoa perde a sua casa, e neste caso refiro a uma “casa emocional”. 

Bangkok e Almirante Reis, diluídos no mesmo espaço e no mesmo tempo, a criação deste “não-lugar” serve de alguma maneira como alegoria à abstração sentida e vivida por L?

Sim, sem dúvida. Esta ideia de um “não-lugar”, ou de um espaço mental vai muito ao encontro do que a própria personagem está a sentir e do que está a viver, e como se situa no mundo. Nós, muitas vezes, quando estamos em estados extremos de desilusão, de tristeza ou de euforia, temos a tendência de viver dentro da nossa cabeça, deitar-se nas memórias ou projetar futuros, simplesmente viver. Acho que se vive as memórias, viver dentro deste lugar que habita na cabeça dela, é como se o cinema pudesse ser o estado mental das personagens. É através do cinema, desta junção ou não-junção, deste cá-lá e tudo o mesmo sítio, que nos representa o espaço interior da própria L. Claro que isso se reflete. Vê e vive o mundo à sua volta. Era importante que a linguagem do filme transmitisse esse espaço interior. Portanto, sim, seria como uma abstração vivida pela L

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Leonor Teles no Festival de Locarno 2023

Porquê a escolha de Carolina Miragaia? Existe nela um reflexo, diria, autobiográfico?

A escolha da Carolina prendeu-se muito com o rosto e com o corpo que iriam dar vida a L, é certo que também há um lado autobiográfico, e isso é assumido, mas prende-se ao facto de não conseguir falar das ‘coisas’ que estão longe de mim. Para mim também era importante ter um lado familiar e próximo enquanto estava a filmar para que soubesse para onde estava a dirigir o filme, e como levar esta personagem? Como conhecer esta personagem? Como torná-la numa pessoa de carne e de osso, digamos assim, para quem está a vê-la no ecrã? A Carolina tem uma fotogenia incrível e uma presença muito forte e enigmática que acaba por atravessar a câmara. São qualidades que se tem que procurar até encontrar a pessoa certa para o papel em questão e no caso deste filme, a L só poderia ser a Miragaia

A gentrificação das cidades tem sido uma das suas preocupações, seja na curta dos "Cães que ladram aos pássaros", seja no discurso feito na primeira edição dos Prémios Curtas, e agora em "Baan", cujo título não é o acaso. Da produção da longa até aos dias de hoje, como vê essa situação, principalmente a habitação jovem nas grandes cidade portuguesas?

Sim, acho que nos “Pássaros” a gentrificação e a crise da habitação eram o foco e o tema central do filme, em “Baan”, também estão presentes mas não centrais. Há aqui muitas questões que atravessam a personagem e o filme que reflete a vida na cidade quase Lisboa, no qual existem tantas situações que não se encontram resolvidas e que precisavam de uma solução o qual preocupam os jovens. Era importante que o filme abordasse essas questões, que afetam a cidade, e que os que enfrentam dificuldades.

É certo que a habitação é um desses tópicos e é importante, não só a habitação física como também a reflexão e o questionamento sobre um lugar em que nos sentimos bem. É a procura de uma habitação interior e emocional. Tudo reflete um pouco a realidade de que se vive atualmente em Lisboa, principalmente a dos jovens que estão a começar a trabalhar e a assumir responsabilidades numa cidade muito agressiva e desigual.

Tendo em conta o seu percurso, e de uma segunda longa que distanciamento diverge da primeira [“Terra Franca”], que realizadora a Leonor espera ser, e que nós espectadores contaremos? Como se vê daqui a uns tempos?

Não tenho resposta a essa pergunta, porque nem eu sei o que vou fazer a seguir, nem posso lidar com as expectativas que as pessoas queriam.

"Baan" (Leonor Teles, 2023)

Para além de "Baan", 2023 ficou marcado pelo seu trabalho de direção fotográfica no díptico de João Canijo (saliento ainda o trabalho anterior com Pedro Cabeleira no "Verão Danado" ou com Ágata de Pinho na curta “Azul”), esse tipo de experiências a aperfeiçoam enquanto realizadora? Que lições com estes filmes você transporta para os seus?

Em relação à direção de fotografia, continua como o lugar onde me sinto melhor - apesar das pessoas me conhecerem da realização. Na verdade aquilo que pretendo e prefiro fazer, e investir o meu tempo, é sobretudo nesse campo, porque é o lugar que me faz mais feliz! É onde aprendo muito, e com cada realizador que trabalho, seja mais ou menos experiente, a partilha de ideias e discussões acerca dos projetos que estamos a desenvolver, permite-me crescer muito, não só profissionalmente, como também pessoalmente. Isso também me garante que possa tratar essas experiências quando estou a realizar ou a fazer outras ‘coisas’.

Porque ao conhecer os outros, e aprendermos com quem trabalhamos é sempre uma experiência gratificante e faz com que a nossa perspetiva esteja sempre a aumentar e isso torna os nossos trabalhos futuros melhores. É uma aprendizagem em vários aspectos; de como trabalhar com os atores, lidar com os atores, com a equipa técnica, no plateau, ou seja, um trabalho coletivo em constante aprendizagem.

E a seguir, Leonor?

Hugo Gomes, 12.08.23

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A miúda dos sapos”, cognome que Leonor Teles, assumidamente, deseja evitar após a sua “brincadeira” em forma de curta-metragem [“Balada dos Batráquios”] ter sido agraciado pelo Urso de Ouro do Festival de Berlim em 2016. A partir daí, surge-nos uma busca por algo maior: que cineasta temos em Leonor Teles? Uma demanda que a levou a uma longa à margem do Rio Tejo no rasto de uma personagem que sobressaísse do seu próprio filme - Terra Franca (2018) - passando para uma curta ambientada no Porto, com o fenómeno da gentrificação a remeter ao coração-vadio desse falso coming-to-age (“Cães que Ladram aos Pássaros”) em 2019. Talvez é nessas escapadinhas de “rapazes” que troçam de um iminente e incerto futuro que esteja encontrada a vertente do seu cinema, a preocupação de uma jovem urbana que enfrenta sozinha as adversidades do Mundo em movimento, um reflexo de todos os outros jovens, partilhando experiências, fraquezas e inquietações, e é daí que nasce um “Baan” (do tailandês “Casa”), a ficção em metragem de longa como desvirginação desse território. Será que desvendamos a Teles cineasta?

Contado em dois tempos e em dois locais, a jovem L (Carolina Miragaia), um heterónimo não assumido, dividida entre a Lisboa das orlas do Almirante Reis e o Bangkok de braços abertos (e apropriados) às estéticas de Wong Kar-Wai, fascínios e fixações, realidades e simulações, uma protagonista como tantos outros adultos “verdinhos”, de futuro pixelado, e ansiosos por uma resgatada luz ao fundo do túnel (conhecemos ‘gente’ assim, e pior, nada fazemos para os retirar dessa existencial situação, porém, até nessa passividade confirma a nossa impotência enquanto sociedade coletiva). Para todos os efeitos, este é um filme de descoberta e auto-descobertas, é Leonor Teles, esbanjada de elogios carreira acima e carreira abaixo, encarregada de tarefas hercúleas que vai desde a fotografia do díptico de Canijo ou do outro conto de inquietudes joviais (“Verão Danado”) em jeito festivaleiro, e agora motivada a emancipar-se, com isto, usufruindo dessa história de superação ao status vivente.

Não se deixem iludir pelo tom aqui descrito e escrito, Leonor Teles é um dos nomes maiores do nosso cinema, mesmo em tenra idade, por detrás das câmaras ou detrás da sombra de outros realizadores, é o rosto de um novo movimento, de um novo cinema português. Portanto, falar de Leonor Teles é falar do futuro, mesmo que em “Baan” encara-se uma experiência de impasse. Onde o filme quer-nos levar? Ou, o que poderemos extrair do filme? Nesse sentido, há que realçar a sensibilidade temporal e espacial de Teles em construir por via de uma diluição local um não-lugar. Entre Bangkok e Almirante Reis existe uma New Lisbon ou será um Bangkok europeu? É através do tal não-lugar que se reencontra a não-presença, a heroína silenciosa que está lá e não está, um brilhantismo espectral onde cada tempo é uma imprecisão.

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Flashbacks? Tal não é delineado, nem descrito visualmente como um conto em estado de progressão, “Baan” é sobre uma jovem, não de frente ao seu tempo, mas do seu tempo, não está presentemente no local nem na época, o seu espírito permanece ausente, talvez “preso” aos ecrãs de dispositivos tecnológicos em desejo de uma reabilitação, quem sabe? É um filme de desespero, de um desespero contínuo, sufocado e rebaixado. Leonor Teles, em conformidade com o já mencionado “Verão Danado” de Pedro Cabeleira, com “unhas” suas no visual, comunica com a sua geração, sem condescendências nem padronizações, e sim com empatia às suas “dores”.

Sentimo-nos em casa com as angústias da protagonista, contudo, é também uma obra de despertar a uma cineasta, a voz está embutida neste não-lugar e neste não-tempo, mas infelizmente a realizadora ocasionalmente abandona o corpo de Miragaia e avança às prestações a um ativismo colectânea, tentando “enfiar” tudo o que consegue no que requer a preocupações da Teles político-social sem o mínimo avanço nas bandeiras que escolhe. Perde-se a coerência do seu intimismo, adquire (sublinha-se intermitentemente) uma ânsia de agir (leia-se “apontar”) às patologias da sua contemporaneidade, como se assumisse um objeto plenamente politizado, enfim, todo o ato é político e o retrato desta jovem naufraga é mais que suficiente para o embarcar.

Desvia-se do coração e desvia-se da fonte, mas Teles é futuro e o seu cinema encontrará a forma sintática devida, nisso, sim, acreditamos. O restante é uma vidência do que Leonor Teles poderá se tornar, e ainda bem … 

Curtas, curtinhas, a origem: 1ª edição dos Prémios Curtas

Hugo Gomes, 13.03.23

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Os premiados e os jurados / Fotografia.: Ricardo Fangueiro

Foi através de uma curta que Portugal desbravou caminho em direção à Kodak Theater, a nomeação à tão cobiçada estatueta norte-americana automaticamente entrou para a História audiovisual do nosso país, e então porquê de estarmos constantemente a reduzi-los a "protótipos" de futuras longas-metragens?

André Marques teve um sonho, criar uma cerimónia de festividades, premiações e de comunhão a esse universo bem português, a resistência do Cinema na sua mais natural essência, a simples e de rápida dicção, a curta. Para isso juntou oito magníficos* e fundou um júri, aliciou e arrecadou apoios, e “convidou” a todos os participantes a inscrever o seu trabalho. A sua vontade fez com que o seu desejo se materializasse. No passado dia 10 de março, sexta-feira nervosa devido à nomeação de “Ice Merchants”, cujos Óscares seriam revelados no domingo seguinte (“será desta?” pensavam todos os que presentes), o Auditório Fernando Pessa em Lisboa encheu-se (deve-se sublinhar), para receber a primeira edição, modesta, ainda com o seu quê de improviso, muitas vezes ocultado graças ao malabarismo e carisma de Rui Alves de Sousa, radialista da Antena 1, que assumia o papel de anfitrião. Intercalado pela dita premiação e pela projeção de três curtas referentes aos três géneros-base (ficção, documentário e animação), a cerimónia ficou marcada pelas promessas do seu fundador, ambicionando seguintes edições em maior escala e a ambição de um “microfestival” em celebração daquilo que a curta-metragem tão bem representa - o Cinema, aqui e agora.   

Quanto à premiação, a noite consagrou “Azul” de Ágata de Pinho com cinco prémios, no qual incluem as categorias de Curta de Ficção, Realização, Argumento, Atriz (também Pinho) e Fotografia (assinado por Leonor Teles). “O Homem do Lixo” de Laura Gonçalves arrecada três distinções (Curta de Animação, Curta Documental, Banda-Sonora), igualando com “Punkada” de Gonçalo Barata Ferreira (Montagem, Caracterização, Guarda-Roupa). Os outros prémios; Vítor Norte recebe o de Melhor Ator (“O Caso Coutinho” de Luís Alves), Nuno Nolasco como Ator Secundário (“Tornar-se um Homem na Idade Média” de Pedro Neves Marques), Rita Tristão na categoria de Atriz Secundária (“As Feras” de Paulo André Ferreira), Rodrigo Manaia em Interpretação Infantil (“By Flavio” de Pedro Cabeleira), e ainda a animação “Garrano” de David Doutel e Vasco Sá no campo dos Som / Efeitos Sonoros juntamente com a ‘dobradinha’ de “2020: Odisseia no 3.º Esquerdo” de Ricardo Leite (Direção Artística, Efeitos Visuais).

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Rui Alves Sousa e eu / Foto.: Ricardo Fangueiro

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Vítor Norte brama ao Cinema após vencer o Prémio de Ator / Foto.: Ricardo Fangueiro

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André Marques, fundador do evento, discursa / Foto.: Ricardo Fangueiro

*Bruno Gascon (realizador de “Carga” e “Sombra”), Mia Tomé (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger do Hoje Vi(Vi) um Filme), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Rafael Félix (crítico e fundador do Fio Condutor) e André Pereira (videografo e editor de vídeo da Renascença).

Três Realizadoras Portuguesas: o desconfinamento português faz-se no feminino

Hugo Gomes, 13.07.20

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Cães que Ladram aos Pássaros

Após uns sensíveis três meses de distância das salas de cinema, esta reaproximação, chamaremos assim, serviu como oportunidade para um lançamento corrente de muitas das obras portuguesas agendadas e outras, um tanto, “engavetadas”. São provas de desconfinamento, diriam muitos, uma das novas palavras de ordem ao nosso vocabulário quotidiano, uma servitude exercida pelo espectador de forma reaprender o seu lugar enquanto … isso mesmo ... espectador, ao mesmo tempo que se dedica a “memorizar” novos hábitos, provavelmente inseridos numa renovada e conquistadora normalidade.

Uma dessas estreias portuguesas, possivelmente das menos improváveis a comportar-se como chamariz desesperado fruto das distribuidoras e exibidoras às suas salas, é esta coligação de três curtas que auto-definem uma geração. Se o mundo pede mudanças e sobretudo vinda de divergentes vozes para alimentar as propostas audiovisuais, esta, intitulada aposta de Três Realizadoras Portuguesas, é além do mais um trabalho de curadoria, o da seleção e reunião de um trio de cineastas emergentes com vias de conquistar o páreo. E esta, digamos, cooperação igualitária, tem como intuito fazê-las [essas vozes] ouvir neste panorama atual de cinema restaurado, estrategicamente como uma só, e apontá-las neste confinamento como guias para essa fase reiniciada.

Das três, o nome mais expectável, visto já andarmos de olho nela, é o de Leonor Teles, realizadora que venceria o Urso de Ouro de Curtas de Berlim com A Balada de um Batráquio (2015), filme-ensaio misto de “prank” que refletia num preconceito entranhado na nossa sociedade, focando na relação tóxica entre os sapos de loiça e a comunidade cigana. Teles viria a conhecer o outro formato, o da longa, com Terra Franca (2018), em que acompanha e esquematizava um ano - quatro estações - na vida de Albertino Lobo, habitante de um comunidade piscatória nas margens do Tejo, e um resistente ao tempo e a austeridade insertada pela consistente falta de investimento no sector e às "politiquices" que a geraram.

Mas aqui, em Cães que Ladram aos Pássaros, a realizadora não aborda desconfinamentos, mas indicia-se também em readaptações, neste caso a de uma família portuense que defronta o fenómeno de gentrificação, onde as metrópoles “empurram” os seus habitantes mais economicamente desfavorecidos, para fora dos seus centros, explorando estes “vórtices” para fins turísticos ou em nome do progresso paisagístico. Sob uma fotografia “granulada” assinada pela própria autora, o pequeno filme segue os seus “condenados” em um misto de festa e tormento perante a situação que se instalam. Uma resistência silenciosa, algo desleixada quanto ao destino que se avizinha mas sob um olhar otimista no seio daquele caos iminente. Leonor Teles bebe daqui a realidade para o contorcer em prol de uma ficção à sua imagem, onde entramos na intimidade destes peões, sentindo a sua autenticidade como simultaneamente a sua exposta manipulação ao serviço (sempre) da narrativa.

 

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Dia de Festa

Porém, burla minha, comecei a narrar a viagem através da sua meta! Possivelmente o meu lapso temporal deriva do facto de já compreendemos Leonor Teles como uma consolidada cineasta, enquanto que as outras duas do “bunch” detém uma tarefa maior em ofuscar ou igualar um nome já por si atrativo pelos mais atentos cinéfilos. Felizmente para Mariana Gaivão e Sofia Bost, o desafio é superado com o melhor dos aproveitamentos, e a mais entusiasta faceta autoral que nos faz salivar pelo futuro garantida destas, até então, “maçaricas” de vanguarda.

Assim embarcamos no último nome e primeiro da sessão -Dia de Festa, de Bost (formada na London Film School) - o qual ostenta uma articulação para com o dito “storytelling”, este por vezes ignorado no panorama português. Nesta história, enxugada por um sentimento constante de defraudação, o dispositivo-narrativo é uma comemoração que ressoa os alarmes da festividade, assumindo-se como vestes da insegurança vivida por uma progenitora sem “formação” para tal. Como diz a certa altura, uma das personagens, argumentando que se informou teoricamente num documentário qualquer, existem espalhadas na sociedade mães isentas de instintos maternais e, opostamente, contraídas por sentimentos de repugna para com os seus próprios rebentos (uma espécie de ódio irracional, o bode expiatório perfeito para a insatisfação existencial). Pois claro, Dia de Festa é um filme sobre amor maternal sem o amor maternal, é a laboração de um estatuto estabelecido imposto pela sociedade e não pela natureza. Sofia Bost compõe o membro mais inteligível desta trindade, mas não menosprezemos as acessibilidades neste campo, a curta é pragmática no seu diálogo para com o espectador, assim como a vida por vezes, e a destacar a subtileza de Rita Martins, atriz que traja a farsa das festa improvisada, a herdeira do legado sem afetividade e na confiança dos estranhos passageiros. É uma das confirmações deste tratado narrativo que faria furor em metragens de maior duração, mas por enquanto fiquemos com “aperitivo” … e que bem!

Já por último, o seu meio para dizer a verdade, Mariana Gaivão concentra-se em Ruby um enredo de resistência e consequentemente libertação por via do desapego afetivo. Filmado na região de Góis, local ardido e povoado por “estrangeiros” que fazem dessa terra de cinzas a sua casa. Nele, deparamos com a protagonista-título (Ruby Taylor), jovem que se apercebe do desaparecimento do seu cão no meu desde dia que recebe a notícia de despedida da sua melhor amiga para Inglaterra. Há uma negação que advém com o corte de afinidades para fazer do seu horizonte sua nova morada. Gaivão demonstra a sua idoneidade em casar a desilusão com um misticismo (in)existencial, uma beleza artificial naquilo que o futuro nos reserva, demonstrando, como a sensorial sequência da rave cavernosa, que basta ceder-nos à experiência e deambularmos pela corrente do desconhecido. Aonde chegaremos, automaticamente o chamaremos de casa.

E foi Casa, a proclamação vinda destes três nomes ascendentes em relação ao Cinema, esperando que o espectador faça o mesmo nesse seu regresso.

 

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Ruby

Entre margens ...

Hugo Gomes, 18.10.18

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Presenciar a passagem da curta para a primeira longa metragem é uma sensação semelhante a de uma familiar exclamar com surpresa: “olha só o quanto cresceste!”. Nesse sentido podemos afirmar que Leonor Teles cresceu ao ponto de conseguir ritmar um filme com 80 minutos de duração, tudo, tendo como antecedente uma “prank” que (in)voluntariamente se converteu num ato ativista contra o preconceito e a discriminação [“A Balada de um Batráquio”].

Obviamente, como já devem saber desta história, o experimento foi recompensado com o Urso de Ouro da Curta-Metragem no prestigiado Festival de Berlim (não é para menos). Em “Terra Franca”, Teles não amadureceu devidamente como esperávamos, no que requer a encontrar uma nova linguagem no panorama documental português, mas convenhamos que toda esta pesquisa filmada é vista com entusiasmo, até porque a realizadora tem um golpe de sorte (ou não, mas quem sou para determinar a consciência do gesto). Essa fortuna deriva do seu “objeto” de estudo, um achado por si.

Falamos de Albertino Lobo, um pescador que reside numa antiga comunidade piscatória no Tejo. O filme tende a acompanhar as quatros estações, na prática, um ano da sua existência. Tinha tudo para falhar, mas novamente buscando o ponto crucial, temos uma personagem e tanto (referimos isto com um sorriso elogioso). Desde a sua humildade que nos leva a um certo tradicionalismo português, até ao olhar expressivo de um homem que teme o futuro, mas que o vê não como um trilho individual, mas algo conjunto e sobretudo familiar (a família que se vai construindo e reconstituindo).

Albertino é um lobo do mar … vá … um lobo do rio, constantemente dividido pelo magnetismo da água e dos elos afetivos que o aguardam em terra. O homem castiço faz o filme e Leonor Teles segura-o. É um bom sinal e, ao contrário do protagonista, o futuro poderá não ser um “bicho de sete cabeças” para a nossa realizadora. A ver vamos.