"Um conselho de um velho?"
Manoel de Oliveira dirigindo Leonor Silveira e Michael Lonsdale em "O Gebo e a Sombra" (2012)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Manoel de Oliveira dirigindo Leonor Silveira e Michael Lonsdale em "O Gebo e a Sombra" (2012)
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"Mal Viver" (João Canijo, 2023)
Convém declarar que no cinema de Canijo o processo acaba sempre por ser a atração dos seus projetos, e nele concentra-se uma ação performativa intensamente arrastada, seja nos atores e a sua maleabilidade para aquilo que chamamos de “realismo” (o nosso senso perante essas representações), ou por outra, pela construção de uma instalação visual, cénica e sonora.
No caso deste recortado “Mal Viver”, a sua característica nata encontra-se no segundo ponto, mais do que as possibilidades com que os seus atores (com muitas “caras” reconhecíveis do universo de Canijo por aqui) possam expressar. É a inteira percepção do realizador em elaborar um filme, arquitetonicamente falando, retalhado em diversas perspectivas (sendo que isso nos levará à outra face do díptico, mas já lá vamos). Assim, com “Mal Viver”, somos conduzidos a uma teia de dramas a ter lugar num hotel rústico, com enfoque na equipa que gerencia este mesmo espaço, esse abordado maioritariamente por vias de planos conjuntos, onde a ação é somente uma janela à escolha do freguês (literalmente e não-literalmente). O espectador assume então a posição de voyeur e é igualmente resistente face a não distrair-se do enredo principal, essa coluna vertebral conectando tudo o resto sem ordenar a sua execução linear.
João Canijo presta-se ao desafio, vislumbrando o seu mais Tati dos filmes, um objeto aglomerante de ações sob ações, e o procedimento dessas mesmas em grande ecrã, como os diálogos interpolados e independentes, são apenas sintomas dessas personagens em livre arbítrio, pelo menos a sensação dada, visto que o realizador é um realizador por inteiro, autocrata e onipresente (próximo da rigidez de Haneke). O espectador, porém, perde esse estatuto endeusado, convertendo-se num testemunho impotente e sem certezas absolutas, escolhendo a óptica que lhe enquadrar e nisso prescrever o seu próprio filme.
"Viver Mal" (João Canijo, 2023)
“Mal Viver” não se deleita nos corpos dos seus intérpretes (em território “canijiano” são escravos do seu método), é antes disso um filme-edificante, pensando e casuístico, cuja sua arquitetura se revelará ainda mais com “Viver Mal”, que ao contrário do filme-siamês, tende em controlar a perspetiva do espectador, ao invés de deixá-lo a “marinar” no ambiente. Desta feita, o enredo não é novo, já havia sido “descoberto” no filme anterior, e em modo loop é trabalhado com severidade na sua mimetização. Aqui, seguimos três histórias, três reservas, cada uma apresentando hóspedes presos aos seus respetivos pecados capitais ou crónicos bovarismos (“ah, o velho conto dos privilegiados encurralados nos seus ‘mundinhos’”).
Mais do que a matéria desenvolvida em “Mal Viver”, “Viver Mal” encanta-se com os seus atores, e ainda mais na dramaturgia emanada por eles, os seus corpos tornam-se devidas medidas temporais quanto à narrativa tríptica, expondo o esqueleto deste projeto, entretanto repartido em duas estâncias fílmicas. E a conexão sexual entre os demais, reluzentes atrativos para o “buraco na fechadura” que o então voyeur-espectador não deixará de espreitar. Tal como o referido, e estabelecido, filme anterior, “misturamo-nos” com a plebe, faminta por “conhecer” os traços das vidas animalescas e de excentricidades calcificadas dos passageiros residentes (o qual tão bem nos identificamos com a personagem de Cleia Almeida, a camareira que remexe os pertences dos hóspedes ou que se intervém nas suas trivialidades, uma fantasiadora do degrau que nunca irá “pisar”).
Contudo, é neste capítulo que presenciamos os desempenhos mais ferozes, seja uma Beatriz Batarda em modo “mommy dearest” ou uma Leonor Silveira, despojada vilã de novela, no desempenho mais desafiador da sua carreira nos últimos (e largos) anos. Poderão ser dois filmes desiguais, um mais cuidado que o outro, mas são provas da maratona que Canijo tem executado ao longo da sua carreira, da performance à idealização de um cinema prestigiado por diversos “pontos de fuga”.
"Magoamos a mãe?"
Fisicamente ...
Parir doi ...
Transforma."
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Entre “kiss me” e “kill me” existe uma ligeira divergência fonética que não impede que ambos os “pedidos” se enquadram na igual esfera do Desejo. Aliás, esse signo é identificável numa colheita de curtas que jogam com a carne e a perversão da mesma como objetivos-irmãos, seja pela heresia interior nas imagens sacras (“Carne”), quer nos limites do aceitável imaginário (“Coelho Mau”) ou simplesmente o desejo repreendido (“Boa Noite Cinderela”), um universo que Carlos Conceição nestes últimos tempos deixou-nos “babar” por uma inadiável estreia no formato das longas.
Infelizmente, “Serpentário” (ainda sem estreia comercial) não correspondeu a essa constelação do desejo ardente, enfraquecido por um caminho serpentino à sua determinante chegada, esta algo memorialista e longe da sensorialidade. Contudo, é com “Um Fio de Baba Escarlate”, uma média-metragem (50 e poucos minutos contamos nós de duração) no limiar da estância seguinte, que funciona como estreia “longuíssima” que tanto ansiávamos e que nos negaram, por culpa do próprio Carlos Conceição.
Um filme que se concentra nessa incestuosa relação entre o desejo a ser consumado e a depravação nunca ocultada, enriquecida numa trip estetizada e sanguinariamente glamorosa de um serial killer (Matthieu Charneau) atingido pelo constante efeito “fregoli” (todas as suas vítimas são representadas pela mesma face – Joana Ribeiro – assim, como o seu redor, homogéneo) e pela língua inexata e imperceptível aos nossos ouvidos (somos “atirados” a um enésimo “não-lugar”). Aqui, o seu “fetiche” (menorizando a sua vontade de matar é claro!) é interpolada por um incidente / acidente que o converte numa equivocada estrela viral. Para a insaciável fome existe uma veneração messiânica que o transporta num (nunca justo) dilema moral. Mas a racionalidade não é inabalável perante a cedência pecaminosa e carnal dos seus desígnios (Conceição joga ainda com os seus “lugares-comuns” para tracejar uma linha direta entre as efémeras ambições [fama] pela negritude da sua caixa-negra [a fantasia]).
Confessamos, e novamente repescando o ponto inicial, que este é o trabalho que pretendíamos como primeira longa-metragem, um ensaio incorporado nos ditos gestos de Conceição, fortalecido com o estilismo superlativo e artificializado que nos convoca para uma falsa sensação de devaneios oníricos. E na entrada para esse campo de sonhos e pesadelos diluídos numa só cor, o travelling serpentário (melhor juz ao tão desperdiçado título) que se “cola” a Joana Ribeiro, materializando-a num desiludido amor de perdição. Resumindo movimentos contraditórios (temos testemunhado muitos destes nos últimos anos) que corroem a tradição da artificialmente estática que muito do cinema português tem vivido.
E é na clareza da sequência que persegue a sua personagem-mártir (coincidência um filmes destes presentear-nos Leonor Silveira, a protagonista de um dos mais belos travellings que o nosso cinema nos ofereceu – “O Vale Abrão”, de Manoel de Oliveira) que novamente bradamos pelo regresso em platina de um dos nomes mais promissores deste chamado “novo cinema português”.
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Isabel Ruth e Leonor Silveira em "Raiva" (2018)
Sérgio Tréfaut enraiveceu para nos dar esta Raiva, filme que celebra o neorrealismo lusitano através da adaptação do Seara de Vento de Manuel da Fonseca. A luta entre classes, definições inexistentes num Alentejo nos anos 30, onde a austeridade embarca para Palma, o chefe de família determinado, o camponês pronto para defender o seu estandarte – a sobrevivência.
Falei com o realizador sobre o processo de criação deste neo-western, desde a escolha do protagonista até à fotografia de Acácio de Almeida, passando pela política e a diplomacia.
Trabalhou com Hugo Bentes em Alentejo, Alentejo e tornou-o o cartaz desse seu documentário. Agora deu-lhe protagonismo em Raiva. Para si, porque é que Hugo Bentes foi a escolha certa para o papel de Palma?
Sim, foi uma das vozes do Alentejo, Alentejo. Num dos momentos em que ele é solista, onde faz o “ponto” no Salsa Verde, eu comovia-me no preciso momento em que a voz grave se destacava. O Hugo também participou no canto Alentejo, Alentejo, que reunia uns 60 cantantes, mas só 10 encontravam-se de trajes, e ele era um deles. Nessa mesma cena o Hugo emitia uma posição de representação do orgulho alentejano. O orgulho pelas suas terras e sobretudo pelo seu cante.
E como Alentejo, Alentejo é um filme sobre identidade, encontrei nele o representante dessa mesma identidade e por isso fiz dele o cartaz. Mas antes disso, tinha lido o Seara de Vento durante o processo de rodagem do documentário e percebi que aquela mesma história era propícia a um filme, por isso comecei a tratar do argumento.
A única personagem certa para mim era a Isabel Ruth como Amanda Carrusca, mas não tinha ator predefinido para o Palma, o protagonista, exceto Javier Bardem. Na altura falei com os agentes do ator, porque era a única pessoa do universo do Cinema que representava tudo aquilo que Palma emanava. Bardem tinha aquela figura de campo, forte e viril. Não havendo Javier Bardem por razões óbvias, não procurei mais nenhum ator e parti logo para o Hugo. Dei-lhe a ler o guião, não lhe mencionei a personagem que seria. Ele leu e identificou-se imediatamente com a história.
Tenho um olhar para ver a fotogenia sem usar uma máquina fotográfica e o Hugo tinha e ainda, como se comprovou com o filme, a capacidade de interpretar. Há muitos atores que fazem bem isso, mas o que o Hugo tem de extraordinário é possuir a aura de uma grande estrela de Cinema graças à maneira que a câmara flirta com ele, e vice-versa. Quando isso acontece, é raro … muito raro no Cinema.
Está então empenhado em levá-lo a esse prometido estrelato?
Não tenho nenhum plano de ficção de momento que possa meter o Hugo ao barulho e também não passa por mim. Se alguém quiser fazer uma adaptação de O Elétrico Chamado Desejo e colocar o Hugo a fazer de Stanley Kowalski, está certo. Tudo o que peça Brando pode ser substituído pelo Hugo e isso está certo. Claro, não é para fazer um novo Apocalypse Now [risos].
Obviamente, que se ele quiser ser ator será ator. Eu apenas sei que acertei, melhor, acertamos juntos na conceção desta personagem.
Sérgio Tréfaut
Mas o que mais prazer me deu foi executar este casamento de pessoas que nada têm de relacionado umas com as outras. Por exemplo, colocar Leonor Silveira casada com o Hugo, ambos tendo uma filha que é a Rita Cabaço, e a juntar a isso todo um leque de figuras que vão desde Sergi López até José Pinto a fazer de sargento da guarda, não existe ninguém mais salazarento que aquilo.
Estas “uniões” foram constantemente contestadas, ou porque não podia trabalhar o ator x ou porque não posso colocar a Leonor Silveira em tal papel. Mas isso tudo são regras ‘estúpidas’ sobretudo de gente que faz televisão. Eu não sigo isso, apenas faço aquilo que acredito.
Mas o que realmente lhe atraiu em Seara do Vento para torná-lo num filme?
Isso é um pouco evidente. Para além do livro ser um grande romance, a história tinha influências do western, é um épico e ainda contornos daquilo que poderia integrar nos grandes clássicos de Cinema. O próprio Manuel da Fonseca foi convidado para adaptar esta sua criação ao grande ecrã, nos anos 60 (creio eu) e que decorreria em Espanha. O autor tentou elaborá-lo nesse território, mas desentendeu-se com os espanhóis acerca para onde eles queriam levar aquela história. Por acaso, uma das questões era a persistência em existir um romance entre Palma e a filha dos latifundiários. Manuel argumentou que esse não seria o seu livro. Os americanos também foram por razões idênticas.
O autor acabaria por adaptar em 70, convidado por razões bastante políticas na época e que era importante estimular as massas, para o teatro. Intitulou-se "Casa Cercada'', que chegou a ser publicado e a peça encenada no Teatro Aberto. Tal foi filmada. Porém, nunca vi as filmagens, mas li o texto. Esta também não iria ao encontro das determinações do Manuel. O livro, a Seara do Vento tinha a ver com a contenção, ele queria no primeiro momento que a versão final passasse no crivo da censura porque era contido, a sua força provinha desse aspeto e não era um livro panfletário.
Em ’76, pós-revolução, convidam o Fonseca para contar tal história com um vocabulário e objetivos mais explícitos, tornando-se num manifesto, num panfleto, algo que nem o próprio quis publicar. Curiosamente, tenta dar importância à parte final do cerco. Então, quando fiz a adaptação para cinema, cometi exatamente o contrário que lhe pediam. Aquilo que tentaram fazer para instrumentalizar e instruir o povo não era um dos meus objetivos, mas sim expurgar o texto de intenções pedagógicas porque a realidade fala por si. Depois filmamos de forma que as imagens têm aquilo que têm para dizer e, por outro lado, a trama já é forte o suficiente para mais implicações.
Procurei levar uma história local, preservando a sua localidade. Criei um filme bastante concetual e igualmente realista. Contudo, tirei o arquete, a relação entre abusador absoluto e agregados que tem no meio, um universo onde quem tem tudo abusa até aos limites de quem não tem nada. O contrabando paralelo com a convivência com a autoridade e a igreja como cúmplice dessa relação de abusadores. Isto tudo, elementos pelos quais quis despir da exclusividade local e tecer uma universalidade. Seja qual for a nacionalidade, vai-se identificar automaticamente com a história, apesar de ter tentado atribuir-lhe uma correspondência de uma realidade mediterrânea na primeira metade do século.
Haverá quem não encare que o Alentejo era sim … mas era. Por exemplo, a mendiga que aparece no filme, aquela vestimenta quase árabe, é contextualmente coerente. O próprio Nicolau Breyner, alentejaníssimo, que nas provas de roupa vestiu a mendiga, aclamou que “era assim que elas andavam”.
Gostaria de buscar um filme, o qual trabalhou para conceção do seu Outro País, Torre Bela de Thomas Harlan, e colocar em paralelo com este Raiva em questão do contexto histórico e do desenvolvimento da luta entre classes.
Para mim, o Raiva acontece num momento anterior ao que se pode chamar de luta de classes, porque não havia espaço nem direito para isso sequer. Não existiam sindicatos nem nada que se pareça como luta. O abusador tinha o poder total e abusava totalmente, e aí podemos falar de conflitos. Hoje em dia, temos uma parte da população que não possui organização para essa conscientização, como as que trabalham em call centers, por exemplo, uma margem enorme dos trabalhadores mundiais que ficaram totalmente à mercê desses “abusadores”.
Hugo Bentes, Leonor Silveira e Isabel Ruth em "Raiva" (2018)
Tal como naquele tempo, existe atualmente o receio de perder trabalho, mas a única diferença com a época do Raiva, é que hoje não trabalhar não significa automaticamente morrer de fome. Mas a realidade histórica da Torre Bela, anterior à revolução, é muito próxima à da descrita por Manuel da Fonseca, essa relação entre abuso e abusador. Uma realidade contada por qualquer alentejano antes de ’74, que sem trabalho perdia o sentido da vida, porque simplesmente não poderiam mais sustentar a si e aos seus.
Quanto a Torre Bela, um filme que tão bem conheço, aliás é o meu filme preferido filmado em Portugal … reformulo … talvez (até porque João César Monteiro tem que estar nessa eleição algures) [risos]. Mas voltando ao filme, este foi montado por um comunista italiano na época, Roberto Perpignani, e é um retrato da extrema esquerda a tomar conta organizadamente e anarquicamente que nos leva a um falhanço. Por outras palavras, é uma condenação comunista do anarquismo. Ou seja, aquele processo de levantamento do Torre Bela nada tem de relacionado com a reforma agrária no espaço controlado pelo partido comunista e socialista, cuja organização não era totalmente anárquica. E o filme acaba por focar algo particular, que é a desorganização que leva à destruição.
Mas voltando ao Raiva, mesmo não definindo esse confronto, existe uma inconsciência da mesma? Por exemplo, em certo momento ouvimos em voz off uma lengalenga como “Em terra sem Pão''. O pobre nasce pobre. O rico nasce rico (…)”
Existe uma tentativa de toda a sociedade construir o mito da inserção, ou seja, que a Margaret Thatcher está ao alcance de todos nós. Que nós todos, pobres, se nos esforçamos muitos chegamos a algum lado. Obviamente que, para chegar a algum lado, é preciso esforço. Isso é obrigatório, mas os números são muito claros acerca da possibilidade de transformação social e dizem que essa capacidade do indivíduo fugir à regra é residual. No Alentejo passado ou se migrava ou se vivia lá da mesma maneira, ou seja, a exceção era e é muito difícil. Por isso, essa cantiga do “rico nasce rico (…)” é a imagem dos cerca dos 90% dos casos sociais.
Mas há no seu filme uma subliminar veia política?
A Seara de Vento pertence a um grupo de romances que marcaram a ascensão do neorrealismo português e dentro desse neorrealismo, o qual levava o herói para a militância, a consciência do abusado e que estava ser explorado como uma tentativa de revolta e afiliação na organização política. Isso é algo muito repetido em várias obras do neorrealismo, quer na literatura, no cinema e noutras plataformas. O Seara’ não entende bem a isso, é a história de um “cowboy” que tenta, mas que falha, orquestrando com isso uma vingança. O Manuel da Fonseca criou um leque de personagens de forma a criar um conjunto de representações. A filha do Palma representa as “organizações clandestinas”, a força obscura da organização política, a qual o nosso “herói” não quis ouvir. O facto dele não ter ouvido a filha e a “avó” que representa a força loriga da terra, a sabedoria ancestral, termina, concluindo o livro: “afinal de contas um homem só não vale nada”. Ou seja, por autonomia, a luta coletiva pode mudar o “mundo”. Contudo, o filme não quer maneira nenhuma de dizer aos espectadores o que fazer, é apenas um retrato sobre o abuso, a humilhação e a “explosão” de um homem.
Apesar de seguirmos o quotidiano austero e sofrível de Palma e da sua família, em Raiva temos um deslumbre de uma cidade com um rico leque de personagens. O Sérgio Tréfaut não desenvolve nenhuma das figuras desse biótopo, mesmo que o filme coloque uma lente mais profunda nesse sentido.
Eu entendo o que você diz, na verdade não fui muito criativo inicialmente – ao ler o romance ainda pensei em colocar mais personagens – mas ao invés acabei por retirar, como aconteceu a um presidente da câmara que estava presente no livro. Mas obviamente que essas (outras) personagens tão bem poderiam servir para um retrato social. Era possível, até porque existem milhões de histórias, mas a minha adaptação teve um processo que era chegar ao miolo, ao caroço, quer esteticamente, quer narrativamente, manter apenas o essencial.
Fale-nos da fotografia, o trabalho com Acácio de Almeida e da escolha do preto-e-branco.
O preto e branco é mais verdadeiro do que a cor, começo por aí. Fundamental, foi a emergência da verdade que me fez decidir este aspeto da fotografia. Quando fizemos testes a cores, todas aquelas imagens pareciam saídas de um anúncio qualquer de iogurte ou de azeite … nem sabia bem o que aquilo era. Aquelas imagens quase propagandistas sobre o Alentejo que vemos habitualmente, é tudo menos o Seara de Vento. Filmar a preto e branco é uma homenagem ao Manuel da Fonseca, é aproximar desse espírito.
Em relação ao Acácio, um excelente diretor de fotografia que conhecemos há “milhões de anos” e temos um carinho especial. É alguém que compreende tudo o que está neste livro de forma intuitiva e que possui uma maleabilidade na forma de trabalhar, para além de um gosto pelo minimalismo no sentido de utilizar o menor número de recursos. Raiva foi o resultado de uma busca estética, de um improviso. Acácio é o coautor do filme, de certa forma.
"Outro País" (2000)
Como vê este filme numa época em que cada vez mais se discute o revisionismo histórico do Estado Novo, deixando passar que o sofrimento não fez parte do cardápio da ditadura salazarista?
Acho que há diálogos que não se consegue ter e eu não sou partidário de usar o diálogo em todas as ocasiões. Quando alguém me diz que no Estado Novo se vivia bem ou as virtudes do regime hitleriano, penso que nesses casos o diálogo não é possível. Há diálogos que são impossíveis e nem tento: “simplesmente chega, vão se instruir.”
Quem tem que se preocupar com o diálogo diplomático são os políticos. Nesse caso, recordo de um filme que vi recentemente, O Processo de Maria Augusta Ramos. Doeu-me ao vê-lo, principalmente a capacidade do PT estar sentado durante o processo de impeachment da Dilma, constantemente negociando por causa de uma acusação falsa. Eles discutiram isso por mais de seis meses, sabendo que no final iria ser imposto algo não verdadeiro. Sou incapaz disso, provavelmente devido à raiva, mas pronto, como dizem, eu sou louco.
Deixa-me só a acrescentar que relembro o momento em que o meu pai quis me apresentar o embaixador do Irão, mas recusei a apertar-lhe a mão, porque apenas lembrava dos crimes que estavam a ser cometidos lá. É a minha maneira de ser.
É curioso ter invocado o impeachment, visto que o tópico “quente” são as eleições brasileiras e a vitória de Bolsonaro.
O Bolsonaro era uma pessoa que não apertaria a mão de certeza absoluta. Como frisei, não discutiria com alguém que advoga o crime, a violência e que, seguindo o modelo americano, diga que a licença de porte de arma livre resolva o problema do Brasil. Simplesmente não consigo com essa falta de noção de discurso. Aliás, o Bolsonaro não sabe falar, não é a troco de nada que não foi a nenhum debate. A sua campanha eleitoral é minada de Deus e Eu, Eu e Deus e uma missa. Questiono, que Deus é esse que ele fala … e que Igreja é essa que se associa a um candidato destes.
No seu filme, a religião, enquanto instituição, encontra-se centrada no lado dos latifundiários, o que também exalta esse paralelismo.
O discurso do padre [no filme interpretado por Herman José] é de resignação, que devemos aceitar as coisas tal como são. Agora, isso vem do Manuel da Fonseca e do livro, no qual atribui grande ênfase no debate entre mãe e filha [no filme interpretados por Isabel Ruth e Leonor Silveira]. A filha, que trabalhou como empregada para uma família de burgueses, acredita que a sua situação mudará através da devoção a Deus, enquanto que a mãe, não sendo propriamente ateia mas sim uma pessoa com a sabedoria dos séculos aclama que “Deus não ajuda coisa nenhuma a livrar daquela pobreza”.
Isso é o conflito do Manuel da Fonseca, e claro, por outro lado, a igreja institucional com o padre anafado e que socializa com a família burguesa do livro. Mas o que ficou desse conflito no filme foi um conceito minimal.
Como vê o cinema português atual e a importância dos festivais de cinema no mesmo?
Existem dois tipos de pensamento referente à produção em Portugal, os que advogam que o cinema quer-se comercial e normalmente não é cinema, é outra coisa, e que não tem reconhecimento internacional, nem em festivais, nem em vendas. Por outro lado, há os que lutam por um Cinema que tem a ver com a História da mesma e da arte, essa menção de festivais é onde se legitima o filme para eventuais vendas e distribuição internacionais. É isso que balança o comercial e o de autor (que é Cinema), continuando a permitir a produção. Se isto fosse tudo por encomenda, seria um desastre.
Tirando isso, o cinema português é acima de tudo caracterizado pela liberdade, acho que é essa mesmo a palavra-chave. Temos o exemplo máximo disso que é João César Monteiro. Não pertencemos a uma indústria, o nosso Cinema é uma espécie de artesanato.
E quando me perguntam se o filme tem os moldes de produção do cinema português, afirmo porque Raiva tem isso mesmo … liberdade.
Mas em contrapartida, temos os modelos de financiamento através do ICA que são muito gerontocráticos. Eles não incentivam a criatividade e punem os jovens insensatamente. Não se preocupem em descobrir onde e de onde vem a criatividade. Temos o caso do Gabriel Abrantes que conseguiu furar isso, mas muitos são incapazes de “furar” o mandato deste sistema.
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A evidência de uma luta entre classes em “Raiva” remete-nos sobretudo para o dispositivo de Manuel da Fonseca e o seu romance “Seara de Vento” (publicado em 1958) em consciencializar um povo para os seus mais profundos desejos políticos. Esta nova ficção de Sérgio Tréfaut, a segunda longa-metragem desta linguagem desde “A Viagem a Portugal” (2011), é um objeto curioso e subtilmente absorvido pela sua reconstituição histórica, quer a nível cénico ou até mesmo atmosférico (com graças à belíssima fotografia do veterano Acácio de Almeida).
Nessa demanda pela adaptação, o realizador opta pela raiz da matéria-prima, o neorrealismo tão em voga na década de 50, quer na literatura, quer no teatro e até cinema (os falhanços de Manuel Guimarães, realizador que de maneira nenhuma parece não conseguir reavaliar-se), Como tal, “Raiva” é puramente simbólico e possivelmente dependente desse mesmo simbolismo, o que o configura como um ensaio de ideias, a “mensagem” que o próprio Tréfaut revelou não interessar como foco propagandístico ou didático. É um filme de imagens (termo que neste momento o leitor troça o escriba devido ao óbvio da caracterização), porque são estas, despojadas da dramaturgia cinematográfica ou ditada pela mesma, que realçam toda uma veia narrativa, dentro e fora do filme. E salientando essa ausência de ênfase e epifania, Tréfaut mutila a sua criação, inutilizando-o para esse estado. Como o faz? Simples manobra, transfigura as leis académicas dos três atos narrativos, opções narrativas que vão contra ao tão chamado storytelling que uma vaga de realizadores e argumentistas nacionais tentam impor. Por outro, essa escolha decepa por completo qualquer emotividade que poderá surgir por parte do espectador, ao mesmo tempo que configura um fatalismo irreversível.
Em “Raiva”, há um espelho de uma sociedade que hoje entra em plena negação, um revisionismo histórico dos “feitos salazaristas”, ou da urgência pela preservação distorcida da luta entre classes para induzir-se numa batalha contra as instituições erguidas atualmente. Tréfaut comete essa declaração política sem o uso do mais grave das leituras politizadas, cada um encontra a sua consciência da forma como pretender.
Mas dentro desse retrato que esboça um Alentejo a passos do esquecimento, “Raiva” instala-se ainda como uma celebração das mulheres e sobretudo das atrizes portuguesas (passamos pela geração que tão bem traduz todo o nossos legado cinematográfico; Isabel Ruth, Leonor Silveira, Rita Cabaço, Lia Gama e Catarina Wallenstein). O signo feminino presente como juízos, quer finais ou motivos para os trilhos conflituosos do nosso “herói”, Hugo Bentes, o cartaz de “Alentejo, Alentejo” (o identitário documentário de Tréfaut) para as ribaltas da ficção, incentivando a sombra de um tipo de ator preciso e sobretudo inexistente no nosso leque profissional. Em “Raiva” há muito por onde olhar e refletir, uma peça discreta que vence por essa mesma discrição. Mesmo não tendo a histeria de um ativismo a ser demarcado, este é sobretudo um filme necessário para as nossas consciências.
“Em terra sem pão, o pobre nasce pobre, o rico nasce rico”
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