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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Falando com Rita Durão, uma mulher de cumplicidades ao som de Mozart

Hugo Gomes, 14.12.22

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Rita Durão em "Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Encontros e reencontros sempre centralizaram o espírito criativo de Eric Rohmer (que hoje poderemos afirmar como um dos nomes mais influentes do dito cinema moderno). Nessa sua familiarizada demanda concebeu com “O Trio em Mi Bemol”, a sua única peça de teatro, numa revisão aos elementos humanos, passado e presente de braços dados enquanto visualizam o Futuro a passos de si. 

Porém, não estamos perante um trabalho integralmente rohmeriano. “Éric Rohmer est mort”, cantarolava Clio acompanhada por Fabrice Luchini, e as suas estâncias rumaram para outras mãos, e para outros formatos. Rita Azevedo Gomes apodera-se desse material e compõe um filme a três dimensões, um teatro inicialmente delineado, um realizador (Adolfo Arrieta) com ambições de gerar televisão a partir daquelas relações e por fim, um filme, Cinema, aí parido num “salta-pocinhas” de linguagens e estéticas. 

Segundo a realizadora, a obra foi fruto da colaboração dos seus “amigos”, artistas unidos levados a cabo para materializar e musicalizar esta visão, entre eles, calejada aliada do seu Cinema, Rita Durão, atriz que como Rohmer valoriza relações e afinidades, o seu conjunto funde Arte.

Em conversa, Rita Durão falou-nos do projeto e do seu contacto com a (outra) Rita, o seu círculo e ainda prestou a conhecermos esta protagonista. Esta “Mulher Vingativa”. 

Gostaria de começar pelo início, pelo seu envolvimento neste projeto, e sabendo que o “Trio em Mi Bemol” estava planeado ser um rádio drama ao invés de um filme.

A Rita [Azevedo Gomes] tinha-me falado deste projeto, antes de ele se tornar num filme, era um fruto da sua vontade e de verbalizar essa ideia. A conversa inicial não tinha qualquer intenção de convite à sua participação. Depois recebi um telefonema da Rita a propor-me a participar no seu então decidido filme, só que ela propunha começar a filmar no dia seguinte. Ora bem, tinha uma “carrada” de texto para decorar e a juntar isso, o meu “pouco à vontade” com o francês, estando na dúvida se aceitaria ou não. Pensava, “isto é uma grande ‘maluquice’, é muito texto em tão pouco tempo e ainda por cima em francês  … não sei se serei capaz.” Sentimentos de dúvida que embateram no meu instantâneo entusiasmo em ouvir aquela “cor” na voz da Rita ao telefone, do qual dá sempre uma vontade em “correr atrás” do seu desejo. Isto porque existe uma energia entre nós que funciona muito desta forma … por isso acabei por dizer que “Sim”. E pronto … o filme fez-se. 

Apesar de não ser um entendido a francês, alguns colegas meus notaram durante a projeção de Berlim [o filme estreou nesse festival] sobre a sua pronúncia. Mais tarde, a Rita Azevedo Gomes revelou que Rita não sabia falar francês, como me confirmou agora. 

Não, porque nunca tive francês na escola, e portanto acabei por ter, o que chamo, de um certo “francês de praia” [risos]. 

Recordo que no Teatro da Cornucópia, o Luís Miguel Cintra convidou a Christine Laurent para encenar uma peça - “O Lírio” de Ferenc Molnár - e na altura ela precisava de um assistente de encenação. Não sei bem como a ‘coisa’ aconteceu, mas acabei por ser a tal assistente. Entrei em pânico porque não sabia falar francês, e a Christine nem português, mas ao longo do processo, passadas algumas semanas, já me lançava nestas aventuras da língua estrangeira. A Christine também tentava desvencilhar no português, e se havia alguma dúvida entre nós, requisitavámos o inglês como auxílio. Portanto era umas conversas bastante misturadas [risos]. Esta experiência acabou por me dar, de uma forma bastante natural, uma aproximação ao francês. Também acabo por ler ‘coisas’ em francês, livros e até filmes que me vão acompanhando, e quanto mais fundo sigo na língua mais entendo o quão próximo está da nossa. 

Mas para este filme, com a quantidade de diálogos, acabei por recorrer e muito ao Olivier Blanc - um excelente diretor de som que se encontra em Portugal há vários anos, o companheiro da Rita Azevedo Gomes nos seus filmes, e qual cruzamos não só nesse universo mas também em outros trabalhos com outros realizadores. Ele ajudava nos meus ensaios. Gravamos por via dos telemóveis e com isso aconselhava o quanto e como teria que aperfeiçoar a minha pronúncia, por exemplo, sendo que não era uma opção do filme, visto que a Adélia, a minha personagem, assume-se como portuguesa. Por vezes o preciosismo da língua não era levado ao extremo, como tínhamos o propósito de "construir" algo agradável e que fizesse sentido. 

A juntar a isso, os ensaios por Zoom com o Pierre [Léon], que interpreta Paul no filme, sempre companheiro, estando disponível 100% para me ajudar a melhorar a língua, porque, francamente, há palavras bastante difíceis para mim, principalmente em termos de pronúncia.

Mas o filme, foi essa força conjunta em ajudar ao máximo o próximo. 

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Rita Durão em "As Bodas de Deus" (João César Monteiro, 1999)

Outro ponto referido pela Rita [Azevedo Gomes] é que a língua não poderia ser entendida como uma barreira à sua participação, visto que ela desejava manter a química encontrada entre si e Pierre Léon.

De facto, eu e o Pierre tivemos mais tempo juntos durante a rodagem do filme, e virtualmente, através dos nossos ensaios via Zoom. Eu o conheci em … julgo ter sido em Locarno, o qual acompanhei a Rita com um outro filme dela, e aí fui apresentada ao Pierre e automaticamente nos demos naturalmente bem. De alguma forma, penso que a Rita guardou essa memória, esse sentimento, pelo que mais tarde lá reencontramo-nos durante “A Portuguesa”, uma experiência que adorei. O meu papel nesse filme era muito secundário, julgo só ter tido uma deixa e era algo baço, mas encontrava-se constantemente presente em cena, e com isso ia observando tudo à minha volta. Porém, aconteceu uma interação entre nós que deslumbrou a Rita. Julgo que foi a maneira como nos relacionamos um com ou outro nessa determinada cena que a marcou, guardando os ingredientes necessários para nos voltar a juntar. “Um dia, gostaria de juntar a Durão e o Pierre num filme, e ver o que isso gerará”, deve ter pensado, pelo menos, é o que me deu a entender no tal telefonema. 

Desde “A Conquista de Faro” (2005) que a Rita [Durão] tem sido recorrente nos filmes da Azevedo Gomes. Sente que, de certa forma, o Cinema dela encontra-se inteiramente ligado à sua figura?

Francamente, não me lembro como é que conheci a Rita, mas recordo de estar na “Conquista de Faro” e aperceber-me da química que estávamos a criar. Ela gosta particularmente de trabalhar com equipas pequenas, mais íntimas possíveis, sendo uma característica que também me interessa, porque permite uma observação de tudo que está a acontecer. Outra característica da Rita é de manter-nos envolvidos intrinsecamente no projeto e levar-nos a irmos além do nosso respetivo ofício. Ela proporciona esses momentos, enquanto realizadora, não guarda as dúvidas para com ela, partilha-as com a equipa e incentiva a procurarmos uma solução juntos.

Sinceramente, acho que fomos criando uma cumplicidade. Começou com os momentos artísticos e foi saltando para nós enquanto mulheres e depois enquanto amigas. Sim, é sobretudo uma relação de amizade.

Mas foi com Rita Azevedo Gomes que teve, possivelmente, um dos momentos altos da sua carreira no Cinema. Refiro a “A Vingança da Mulher” (2012), filme que a colocou como plena protagonista e que a premiou com a distinção de Melhor Atriz da Sociedade Portuguesa de Autores. 

Não sei. Não com isto dizendo que não estou agradecida aos prémios, dos quais são bons de receber, tratando-se de uma prova de que o nosso trabalho é reconhecido, assim como o filme e da equipa também … mas o que importa referir aqui é que a “A Vingança da Mulher” foi um filme bastante especial resultante de um trabalho intenso e conjunto entre mim e a Rita. Nós nos reunimos, com a devida antecedência, para preparar este filme. Intensamente discutimos essas ideias, as cenas, os diálogos, a dicção. Aí houve um trabalho muito grande entre a pessoa que diz, a que escuta, a que realiza e a que vai encenar. Uma consolidação de uma grande proximidade que já se adivinhava, seja de projetos anteriores, mas acima de tudo, e devido à natureza do filme e a do meu papel, originando horas e horas de conversa a propósito do mesmo e na órbita desse mesmo filme. “A Vingança da Mulher” abre a janela para outros temas e outros entendimentos. 

Fora Rita Azevedo Gomes, existe outra realizadora o qual tem sido presente nos seus trabalhos - Catarina Ruivo - desde a sua primeira longa-metragem (“André Valente”, 2004), passando por “Daqui P’rá Frente” (2008) e contracenando com o ator Pedro Hestnes, no seu último papel (1962 - 2011), em “Em Segunda Mão” (2012).

Sim, é verdade, também tenho uma cumplicidade com a Catarina. Obviamente que são pessoas bastantes diferentes, mas acabo por me identificar com elas da mesma maneira. São duas mulheres importantes para mim de alguma maneira, lançam-me desafios, deixem-me integrar na concepção dos respectivos projetos e são “abertas” para mim. Gosto de as escutar. 

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Leonardo Viveiros e Rita Durão em "André Valente" (Catarina Ruivo, 2004)

Gosta de que lhe desafiam artisticamente?

Sim, gosto [risos].

Distanciando destes dois universos, a Rita partilhou uma romã com João César Monteiro em “As Bodas de Deus” (1999) … 

Sim. O Cinema é também isso, a vida a “mexer-se” e o meu primeiro encontro com o João César Monteiro foi desencadeado por esse mesmo movimento. Ele procurava alguém para aquele papel e eu acabei por cruzar-me com ele, o que me garantiu a personagem. E a verdade é que por questão geracional, ambos [Rita Azevedo Gomes e João César Monteiro] acabavam por gostar das mesmas ‘coisas’, frequentavam os mesmos círculos culturais, sendo normal que tivessem a mesma aproximação, o mesmo universo, a mesma familiaridade. 

Com o João César Monteiro ainda trabalhou em “Branca de Neve” (2000) …

Eu não participei no “Branca de Neve”.

Mas encontra-se creditada no projeto.

Sim, tenho conhecimento disso, mas não sei porquê. Era para participar, mas por algumas razões não cheguei à fase final do filme. Não apareço no filme.

Acho que ninguém “aparece” no filme [risos]

Sim. [risos]

Prosseguindo, depois participou no “Vai e Vem” (2003), o último filme do César Monteiro. Como foi trabalhar com ele? 

Essa é uma pergunta que me fazem tantas vezes. Tive uma relação muito especial com o César, aliás a minha forma de trabalhar é, prioritariamente, de criar laços de cumplicidade, gerar uma relação de cuidado para com a pessoa e para aquilo que me é proposto. 

Eu gosto muito de observar os realizadores, da mesma forma que eles nos observam, também gosto muito de observá-los. 

Nesse seu campo de observação e visto possuir uma carreira que oscila entre o Cinema e o Teatro, tenta "transferir" experiências de um território para o outro? 

Sim, porque as ‘coisas’ não devem ser arrumadas nos seus cantinhos como gavetas. As gavetas devem permanecer “semi-abertas” para que deem espaço para criação e transferência de ideias de um território para o outro. Pelo menos penso dessa forma, porque muitas vezes eu roubo do Cinema, elementos que levo para o Teatro e assim sucessivamente. 

E quanto ao Teatro, existe uma certa afinidade deste território no cinema de Rita Azevedo Gomes.

Sim, há uma construção de cenas e situações que nos remetem ao universo teatral. Cada cena decorre num determinado sítio e num determinado tempo que é permitido de alguma forma ser inventado ou reinventado, e todas aquelas cenas possuem um significado, uma representação, cabe ao espectador tentar compreendê-las e sucessivamente encaixá-las. Soa tanto a Teatro.  

Só que no Teatro existe um contacto direto com o seu público no ato da sua criação, não uma reação à posteriori.

Sim. Mas antes da peça em si, existem os ensaios. É um pouco de Cinema dentro do Teatro, que por sua vez, acaba por ser o Teatro dentro do Cinema. Essa questão do público é uma questão de consciência, nós sabemos que o que fazemos irá ter um público em determinada altura, portanto, tentamos antecipar essa reação, seja no Teatro, seja no Cinema. A grande diferença, é que no Teatro, por vezes temos uma reação direta e manifestante, por exemplo, o riso ou a tensão, a energia emanada no público. No Cinema, não temos essa energia, mas temos outra libertada na cena, na cinematografia, ou entre nós, no qual sentimos, depois temos a restante equipa que nos observa, um público improvisado, naquele preciso momento é como se tivéssemos uma espécie de Teatro íntimo. 

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Rita Durão em "A Vingança da Mulher" (Rita Azevedo Gomes, 2012)

Qual é a sua “reação” ao termo que tem ganho uma conotação pejorativa que é “teatro filmado”? Relembro que é diversas vezes dirigido ao cinema português.

Não tenho muito para dizer sobre isso. Acho que o “teatro filmado” pode ser algo extraordinário desde que faça sentido a sua existência. Quanto à conotação … sinceramente, não sei muito bem o que dizer.

Falou-me há pouco do francês vindo dos “filmes que a acompanharam”, pergunto se Éric Rohmer entra nesse cardápio?

Não entra muito, para dizer a verdade. Quanto a Rita falou comigo sobre o projeto, percebi que não era um realizador do qual acompanhava. Na altura, achei por bem não ver nada dele para que não haja influências. O que fiz, e do qual adorei fazê-lo, foi consultar as suas entrevistas, o de ouvi-lo falar sobre os seus pontos-de-vista, do que pensava, da sua perspectiva quanto à Arte, à Vida sobretudo. De resto, tentei manter-me como uma “folha em branco”, preferi essa abordagem ao invés de me aprofundar no seu universo cinematográfico Se tivesse feito isso, teria como consequência de me sentir aquém do seu estilo ou algo do género, e nisso condicionar-me. Senti que os filmes poderiam ter um efeito diferente no “O Trio em Mi Bemol”, poderia não funcionar a aproximação do mundo da Rita com o do Rohmer, por isso evitei essa abordagem. 

E no final disso tudo - depois do “O Trio em Mi Bemol” - não ficou com vontade de espreitar a sua cinematografia?

Fiquei, mas confesso que não tenho tido o tempo necessário para o fazer. A correria entre o trabalho, os filhos, as peças para ler, não permitem aquele “tempo de qualidade”, que por vezes é essencial para a nossa receptividade. Julgo que o Rohmer merece melhor. 

É sabido também que vai ou já esteve a trabalhar com o Luís Filipe Rocha na adaptação do livro de João Ricardo Pedro, “O Teu Rosta Será o Último".

Estive a filmar com o Luís Filipe este ano, do qual terminamos no início de maio, e … pelo que vou sabendo, está praticamente pronto. Mas não sei mais detalhes nem sequer quando estreará.