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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Sol de Carvalho entre "O Ancoradouro do Tempo" e o Moçambique cinematográfico: "o cinema é a transfiguração do real."

Hugo Gomes, 27.06.25

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O Ancoradouro do Tempo (2024)

Da varanda do Frangipani, vemos Moçambique: uma ilha, uma fortaleza, um crime, e, na sua trajetória, um detetive determinado a resolvê-lo e a deter o homicida. Contudo, a investigação escapa pelos dedos deste agente da justiça, a verdade nem sempre é linear: é burlona, trocista, finteira.

O Ancoradouro do Tempo”, a nova longa-metragem de Sol de Carvalho, estreia entre nós após a sua inauguração na última edição do Leffest. Trata-se de um thriller imaginado nas palavras de Mia Couto, num duelo sem ganhos nem vencidos para com o real e o mundo espectral do além. Nesta conversa com o realizador, partimos do ambiente da produção, mas não cedemos à âncora, prosseguimos para outras margens, outros cantos, e, no fim, para um lamento sobre o estado do cinema moçambicano.

Então vou começar pela génese do projeto. O que é que o fascinou no livro do Mia Couto? Já sei que não é a primeira vez que trabalha com um texto dele [“Mabata Bata”, 2017]...

Está a falar d’ “A Varanda do Frangipani”, certo? Porquê que cheguei a essa obra? Há uma história por trás disso. Eu e o Mia somos amigos há muito tempo, já tínhamos colaborado antes. Na altura, eu tinha acabado de fazer "Mabata Bata”, que foi uma criação muito livre a partir de um conto dele. E ele disse-me: “Vamos fazer um trabalho mais estruturado juntos.” E assim surgiu a proposta para adaptar “A Varanda do Frangipani”.

Quando li o livro, a primeira coisa que me fascinou foi o facto de ser uma história que se podia filmar num ambiente mais fechado, mais contido, que é um tipo de espaço que me agrada muito de trabalhar. Um lugar onde tudo acontece, mas onde o próprio ambiente contribui para a narrativa. Depois, quando surgiu a ideia de filmar na Ilha de Moçambique, percebi logo o potencial que aquele espaço tinha para enriquecer a história. A ilha, o seu tempo, a sua arquitetura... tudo isso podia ser mais do que cenário, podia funcionar quase como uma personagem. Nos primeiros guiões, demos muita importância à própria ilha, talvez até demais. Mais tarde, tentámos reequilibrar isso, dar mais peso às personagens, para não dispersar demasiado.

Mas o que me atraiu mesmo foi isso: uma história fechada num espaço onde o ambiente ajuda a revelar a psicologia das personagens. É como se o espaço e a história conversassem.

Gosto muito dessa questão do ambiente, porque em todo o filme sentimos quase uma aura fantasmagórica, muito presente naquela fortaleza, e várias vezes ao longo do filme também se evoca o passado colonial. Neste filme, o Sol brinca com algo que não é bem o sobrenatural, mas talvez uma certa (sobre)naturalidade da memória. Um lado mais... espectral, talvez?

Sim, exatamente. O que acontece é que os “velhos” - e no filme são mesmo chamados assim - acabam por representar, de certa forma, a identidade moçambicana. Há elementos que talvez uma audiência estrangeira não capte de imediato. Por exemplo, o filme é falado em três línguas nacionais, e há ainda um personagem que representa, de certa forma, a comunidade indiana: uma comunidade com muita importância em Moçambique, mas que é, historicamente, vinda de fora.

Mesmo entre os personagens, há trajetórias distintas. Essa personagem, por exemplo, é de origem local, mas acaba por sair do país. É uma espécie de retrato da viagem dos moçambicanos ao longo de 50 anos de história. Temos também a personagem mais “refilona”, a que contesta, e depois o director, mais autoritário, vertical, ligado à ideia de ordem. Tudo isto, de certa forma, reflete o que está a acontecer em Moçambique hoje. Ou seja, dentro daquele espaço fechado, os personagens funcionam quase como símbolos da sociedade moçambicana, da sua identidade, da sua moral. 

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O Ancoradouro do Tempo (2024)

Há uma pergunta que paira no filme: o que é o bem e o mal? O que é a coerência? O que pode ser a integridade de um polícia? A sua determinação em não ceder à corrupção, ao roubo fácil?

Tudo isso me fascinou no livro, e o facto de se passar na Ilha de Moçambique foi muito significativo. Aliás, acabámos por reescrever algumas cenas em função dos cenários que fomos encontrando. Tivemos algumas dificuldades, por exemplo, dois dos espaços principais, como o quarto da personagem Nhonhoso, tinham condições de som muito complicadas. Tivemos de adaptar para conseguir filmar.

Mas visualmente eram muito fortes, tinham aquele impacto que queríamos. Portanto, foi um guião que começou num livro, passou por uma fortaleza, encontrou um espaço concreto… e esse espaço também acabou por influenciar a própria escrita do guião.

Há um lado que me interessou bastante neste filme, e por isso é que fiz aquela pergunta anterior sobre o seu acesso ao livro, mas, na verdade, o que quero destacar é outra coisa: essa estrutura do policial, do detectivesco, a investigação de um crime rodeado de múltiplas verdades. Quase até ao final seguimos essa lógica típica do whodunit, em que vamos juntando pistas até chegar à verdade. E, nesse percurso, o espectador pode assumir duas posturas: ou tenta ele próprio resolver o caso, como um detective, ou então entende tudo como metáforas, entrando num jogo mais simbólico.

Sim, a estrutura de “Crime no Expresso do Oriente” foi, de certa forma, uma inspiração para este filme. Mas há uma nuance e era precisamente aí que eu queria chegar com essa ideia da ambiguidade. Nós colocámos, de forma deliberada, elementos no filme para que o espectador perceba que as histórias que estão a ser contadas pelas personagens podem ser plausíveis... mas talvez não sejam verdadeiras.

Há adereços, por exemplo, que ajudam a sinalizar isso: uma bengala que se parte e depois aparece inteira, e o espectador pode até pensar “ah, erro de continuidade”. Mas não é. Foi feito de propósito. Ou uma pedra com uma mancha de sangue. Pequenos detalhes que piscam o olho ao espectador e dizem: “atenção, isto pode ser mentira.

Outra coisa que fizemos foi dar uma instrução muito específica aos actores: não representem nem como se fosse teatro, nem como cinema realista. Façam algo ali no meio. É difícil explicar, mas a ideia era criar uma certa distância, como se o actor estivesse, ao mesmo tempo, a contar a história e a dar uma piscadela ao espectador, dizendo: “estou a aldrabar este tipo.

No fundo, todos ali sabem que estão a mentir. Mas ao mesmo tempo, e é aí que acho que está a genialidade do texto do Mia Couto, as histórias têm uma base de verossimilhança tão sólida que o espectador pode perfeitamente acreditar que são verdadeiras. Fica ali uma confusão — propositada — no espectador: “Então, há um assassino ou não? Quem será? Será que há mesmo um crime?” Mas isso é um truque. Porque, na verdade, a história é outra. Cheguei a fazer uma versão mais longa do filme, com duas horas e quarenta e tal minutos, e mostrei metade a um grupo de pessoas, só para fazer um inquérito. A maioria dizia: “Queremos saber quem é o assassino!” Ou seja, o filme prende porque entra nesse território do whodunit, mas depois subverte-o completamente.

Ao contrário dos romances da Agatha Christie, por exemplo, onde tudo é resolvido no fim com base nas pistas que foram sendo lançadas, aqui a explicação final está completamente fora dessas pistas. Só quando se revê o filme, com atenção, é que se percebem dois ou três detalhes, como quando a rapariga fala dos olhos vermelhos e das câmaras de pangolins, que já dão a entender que há uma camada mais profunda. Essa ambiguidade foi totalmente propositada, e, sinceramente, é uma das coisas que mais gosto no filme.

Também é uma forma de convidar o espectador a ver o filme outra vez.

Também. É uma forma de o agarrar. Sou da opinião, e estou no campo dos cineastas que acreditam nisto, de que podemos ser profundos, claro, mas não precisamos ser… vou usar um termo talvez feio… intelectualoides. Quando digo -oides, digo mesmo isso: um certo tipo de intelectualismo vazio. Não estou a atacar o pensamento intelectual, que é necessário, mas sim aquela postura que afasta, que se distancia do público.

A ideia que tento sempre construir nos meus filmes é a de criar diferentes camadas. Há sempre uma história mais superficial, digamos, que pode ser seguida como entretenimento. Porque o cinema, antes de mais, tem que entreter. Mas depois, sim, podemos usar essa base para fazer com que as pessoas pensem, reflitam, tomem consciência de algo. Sou adepto desse cinema que entretém, mas também inquieta, que oferece algo a quem quiser ir mais fundo. Mas não acredito na ideia de “agora vou fazer um discurso muito elaborado, complexo, denso” e pronto, esqueço o público. Não. As pessoas têm que gostar do filme, têm que se envolver.

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Sol de Carvalho

Têm que sentir essa verdade …

Exactamente! Penso que o Mia faz isso muito bem. Quando ele brinca com as palavras, está a criar imagens que são quase culinárias, ele é um verdadeiro chefe de cozinha das palavras. Nunca pensei que fosse usar essa expressão [risos], mas pronto. É isso. Nós lemos Mia com um sorriso nos lábios, mesmo quando o conteúdo é denso ou sério. Essa é a ideia: não afastar o espectador, manter essa ligação. Seja com o leitor, seja com quem vê o filme.

Falando em ligação, olhando para a sua carreira, e os seus muitos trabalhos, não consigo deixar de ver neste filme, sobretudo quando os suspeitos contam as suas histórias, uma dimensão quase documental, de investigação.

Sim. Há algo disso. Comecei como jornalista, e o Mia também. Aliás, o nosso primeiro contacto profissional foi enquanto jornalistas. Isso cria uma ligação natural com a realidade. Depois há um outro ponto: o cinema em Moçambique surgiu numa altura em que não havia televisão, por isso, desde o início, o documentário teve um papel central. Mas, com o tempo, comecei a interrogar-me sobre o que era essa “verdade” do jornalismo. O que é que significa, por exemplo, o direito ao contraditório? Se um lado tem 70% de razão e o outro só 30%, faz sentido dar 50% a cada um? Isso é justo? Descobri também que, na história, nunca há uma versão final. A história é escrita pelos vencedores, e está sempre incompleta. Deve ser posta em questão, deve ser divulgada, sim … mas nunca é fechada.

Nessa altura, até por causa do contexto político, o regime era difícil (vou dizer isto como forma simpática), percebi que talvez fosse mais honesto, da minha parte, dizer a verdade a partir da ficção. Mas atenção: essa ficção tem que possuir uma base real, sólida. E mais: acredito muito que o espaço alimenta a narrativa. Se quero fazer um filme sobre as viúvas em Inhambane, vou lá, escuto, observo. Não faço necessariamente um documentário, mas recolho elementos da realidade para construir uma ficção a partir disso.

Por exemplo, “O Jardim do Outro Homem(2007) nasceu de entrevistas com raparigas que tinham sido vítimas de chantagem sexual por parte de professores. Em plena rodagem, chegámos a apanhar uma professora em flagrante, numa dessas situações. Em “A Herança da Viúva” (2000), fiz a mesma coisa. E em “Mabata Bata (2017), quando abordámos as cerimónias e os espíritos, fomos à procura do que esses elementos significavam localmente. A questão simbólica das árvores, por exemplo. Usámos a figueira selvagem — a fig tree — que é uma árvore muito respeitada, onde as pessoas sobem em caso de cheias, uma árvore de salvamento. Por isso mesmo, nunca é cortada. É também o local onde se acredita que habitam espíritos.

Tudo isso nasceu da realidade. Não se inventa do nada. Há uma recolha. Mas depois eu liberto-me disso para criar. Às vezes não me liberto assim tão bem [risos], mas enfim... são os riscos do ofício.

Gostava de falar um pouco desse traço da busca pela verdade. Porque o Sol, tal como mencionou, foi jornalista, fez vários documentários, e muita da sua ficção tem esse lado social. Na verdade, queria fazer duas perguntas numa só: Este filme tem uma dimensão social clara, mas também foi filmado no contexto da pandemia, e isso está presente, até pela simbologia do pangolim. Por um lado, temos a questão da criminalidade contra os albinos, por outro, o contexto da pandemia. A ficção serve aqui como um veículo para trazer esses temas?

Sempre. Sempre. Há duas frases que uso muitas vezes: o cinema é a transfiguração do real. Ou seja, vou ao real, bebo dele, digiro — faço a digestão — e depois vomito. Mas quando vomito, já é outra coisa. Já não é o mesmo. É um processo que se passa dentro de mim: cerebral, mental, às vezes até físico.

Depende da minha aproximação com o tema, do olhar: se olho com grande-angular, se uso uma teleobjetiva, se isolo a pessoa, se a coloco no contexto do espaço. São escolhas do cinema, claro, mas todas ligadas à verdade. Agora, o porquê dessa insistência na verdade?

Já tive esta discussão com o Mia, ele também sente essa ligação com a verdade, está nos livros dele, é evidente, mas ele sente-se mais livre. Ele gosta de deixar o leitor ou o espectador na dúvida: será isto verdade ou não? No meu caso, o que me interessa é essa ambiguidade entre o real e o imaginário, especialmente por causa do nosso universo espiritual moçambicano. Aqui, em Moçambique, tu podes estar sentado numa sala e alguém diz: “aqui ao lado está o espírito”. E sentem mesmo isso.

Não sinto, confesso, cresci de outra maneira, com outras referências - Deus, o Diabo, essas coisas da cultura católica -, mas Moçambique é uma mistura: temos a cultura católica, sim, mas também uma cultura sincrética e uma cultura animista muito forte. Essas culturas misturam-se. Então tens Cristo ao lado do Espírito ancestral. É difícil explicar isso a alguém de fora, mas aqui faz todo o sentido.

Esses elementos são tão fortes que, se os respeitar no meu cinema, não estou a mentir ao espectador. Estou a criar um mundo imaginário, sim, mas esse mundo é verdadeiro dentro da nossa lógica cultural. Quando vejo um filme como o “Black Panther”, por exemplo, aquilo é claramente imaginário, ninguém duvida. Mas nos meus filmes, essa separação não é assim tão óbvia. Essa ambiguidade está muito ligada ao nosso mundo espiritual. Dou um exemplo: uma série que estou a fazer agora, por causa da guerra, tem um episódio sobre o Ritual da Reconciliação. Esse ritual é essencial para os soldados que mataram e sobreviveram. Quando voltam para as suas aldeias, têm que passar por esse ritual, que envolve o sangue, a lavagem, para se purificarem. Se não fizerem isso, não podem viver na comunidade. Porque trazem os maus espíritos com eles. E sabes que mais? Esses rituais de reconciliação foram, em muitos casos, 300 vezes mais eficazes do que os grandes discursos das Nações Unidas. Os panfletos diziam “vamos reconciliar as famílias”. Mas a reconciliação, a verdadeira, acontecia através desses rituais.

Portanto, esse mundo espiritual é tão forte em Moçambique, mas tão forte, que não preciso inventar nada. Só preciso ir lá, escutar, respeitar e beber dele.

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Na rodagem de "O Ancoradouro do Tempo" (2024)

E falando desse mundo espiritual... No filme há aquele ritual ligado aos barcos de pesca, e depois aparece o capataz: “Já disse para vocês não fazerem esta macacada.” Há também uma repressão interna a esse lado tradicional, dentro do próprio Moçambique?

Não, não... Pelo contrário. Houve repressão no início, sim, mas depois veio uma abertura, uma libertação, e hoje isso já está bastante aceite. Os curandeiros e até os chamados feiticeiros já fazem parte do Sistema Nacional de Saúde. Estão integrados.

Porquê? Porque há uma dimensão psicoemocional da cura que, se não passar pelo curandeiro, não acontece. O comprimido, sozinho, não resolve. Foi assim na pandemia, mas já era evidente nos casos de HIV. O próprio curandeiro sabe que não pode curar HIV, ele reconhece que é preciso o medicamento. Mas sem o ritual, a pessoa não acredita que está curada.

Dou-te um exemplo recente: saiu uma reportagem na RTP sobre um ritual chamado Cuxinga. É um ritual sexual em que as viúvas têm que dormir com os irmãos do marido falecido, para serem “purificadas”. Tenho discutido muito esse tema em Moçambique, e as conversas são intensas. Os jovens criticam; os adultos dizem: “Sim, é mau … mas se não houver esse ritual, essas mulheres ficam desprotegidas.” É um pouco como a poligamia: a justificação é que, se formos monogâmicos, 20% das mulheres vão ficar sozinhas (não estou a defender a poligamia, só estou a explicar o raciocínio dentro do sistema social).

Fiz um filme sobre o Cuxinga, e correu muito bem cá. Mas, curiosamente, houve um certo medo. Algumas mulheres diziam: “Não, quero fazer esse ritual. Tenho que fazer.” Mesmo sendo um ato de violência, inclusive sexual, onde não podem mostrar prazer, não podem falar, nada. É um tema duríssimo. Mas existe e mexe com o nosso mundo atual. E porquê abordar isso no cinema? Porque é como no Irão: se não tiveres ligação ao Islão, não entendes as regras. Ou na China, se não tiveres ligação ao Budismo. Ou na Índia, sem compreender o Hinduísmo.

O que quero dizer é que, quando tentamos aplicar políticas novas, às vezes criadas por universidades americanas, sem conhecer as realidades locais, não funciona. Por exemplo, o lobby do “não sexo até aos 16 anos” para combater o HIV... Isso é uma política imposta, completamente desligada das tradições africanas. Há choques e isso é uma discussão essencial no desenvolvimento: tens que desenvolver mantendo a identidade. Se não, vais ser sempre uma cópia, e a cópia é sempre pior que o original.

Isso leva-me à outra pergunta: usar a ficção para trazer estes temas sociais. Que são temas difíceis — e fazer filmes também é dispendioso. O “Jardim do Outro Homem”, por exemplo, foi na altura um dos filmes mais caros de Moçambique, mas continua a trazer temas sociais sensíveis, mesmo quando não são fáceis de abordar dentro da própria sociedade moçambicana.

Sim. Cá, em Moçambique, não tenho problemas com isso. Lembro-me de mostrar “O Jardim do Outro Homem” em Espanha, e houve um espectador que disse: “Gostei muito do filme… mas não sei se gosto da forma como usou um caso excepcional para fazer uma denúncia.” E eu perguntei: “O senhor quer mesmo saber? Mais de 70% das raparigas em Moçambique sofrem chantagem sexual.

Ou seja, não estamos a falar de um caso excecional, estamos a falar de um problema estrutural. É o mesmo com o Cuxinga. Há quem diga: “Mas isso existe mesmo?” Existe. Marca vidas. São temas que muitas vezes estão escondidos debaixo do tapete. E eu, como realizador, gosto de tirar essas coisas debaixo do tapete e pô-las à vista.

Lembro que o primeiro filme seu que vi foi por volta de 2013 ou 2014, no Festin, e foi “Impunidades Criminosas” (2012). Tocava a questão da violência doméstica …

Exatamente. Esse é outro caso. Lembras-te da música?

Sim — “Bate, bate, morre, morre.”

[Riso] Pois. E a pergunta que fazia era: Onde é que está o espírito? No filme, o espírito é o marido morto. Está ali enquanto ela está com outro homem. Ele persegue-a. Só quando ela mata o espírito, é que se liberta. Era essa a mensagem que queria passar: não adianta falar de libertação se, na cabeça, a pessoa ainda não se libertou. Isso é essencial. Também no “Impunidades” quis trazer o espírito para o mundo dos vivos.

Impunidades Criminosas (2012)

Volto ao exemplo do “Black Panther” — não para julgar o filme — mas para mostrar a diferença: Se queres pôr um rinoceronte gigante de ferro, arranjas efeitos especiais e fazes, no meu caso, se quero mostrar um espírito, uso a sombra. Se o espírito sai por ali, mas a sombra anda noutro sentido, há algo errado. Então perguntava sempre: Onde é que o espírito dorme?

Em Maputo, quando mostrei o filme, toda a gente respondia com convicção: “Claro que dorme nos crocodilos.”

E já que falamos dos crocodilos... Vou contar uma história engraçada. Os crocodilos do filme eram pequenos, com cerca de um metro. Fomos buscá-los a uma barragem perto de Maputo. À noite, voltavam numa caixa grande, e eu dizia: “Ficam aqui fechados, e amanhã filmamos.” Mas ninguém da equipa queria deixá-los lá à noite! Então, todos os dias fazíamos 35 km para ir buscá-los de novo. E antes de começar a filmar fizemos uma cerimónia para acalmar os espíritos, porque íamos filmar naquela zona.

Acredito nisso? Não. Mas era importante, para que a equipa e a comunidade se sentissem bem. No “Mabata Bata” fizemos o mesmo, a senhora que fez a cerimónia sacrificou animais — é uma festa, um ritual mesmo — e depois disse ao nosso diretor de fotografia: “Esta tarde vai chover. Mas vocês são muito bem-vindos.” Ela sentiu que o tempo ia mudar, e aquilo criou uma ligação: entre nós, a equipa, e a comunidade. Estávamos numa cidade pequena, toda a gente nos conhecia. Correu tudo bem até ao fim.

Essa maneira de fazer cinema com as pessoas… é isso que me entusiasma. Gosto muito disso.

Você tem um cinema chamado Scala e também faz parte da programação dele. Gostaria que me falasse um pouco dessa experiência.

Os cinemas foram todos nacionalizados depois da independência, e, passado algum tempo, quando se regressou à economia de mercado (devia pôr aqui entre aspas "selvagem", porque na verdade esse regresso foi pior do que uma transição normal), os cinemas foram todos privatizados. Na altura, nós estávamos a tomar conta de três cinemas. Não havia filmes, mas estávamos envolvidos, íamos mostrando o que havia, às vezes com filmes trazidos no avião. Então, quando esse processo de privatização começou, solicitámos a compra do Scala. Foi-nos vendido e demorámos 25 anos a pagar … mas pagámos. O Scala pertence agora à nossa empresa.

Porquê o Scala? Porque é um cinema de 1931, clássico, ainda com as cadeiras originais, foi o primeiro cinema sonoro de Moçambique. No início, fazíamos programações com filmes paralelos, o que aparecesse, passámos até alguns filmes indianos. Depois, uns seis ou sete anos antes da pandemia, criámos a Associação Cultural Scala e entregámos-lhe a gestão do cinema. Aí começámos a focar a programação em cinema africano no geral e moçambicano no particular. Neste momento, somos a única sala que mostra cinema moçambicano regularmente. Todas as quintas-feiras temos uma sessão e fazemos também ciclos de cinema. Em Moçambique, não há praticamente hipótese de ver cinema holandês, argentino, italiano, cinematografias muito interessantes, então estas instituições culturais ajudam-nos a organizar ciclos, como o papel que o Cinema São Jorge tem aqui [em Lisboa].

Agora, claro, não temos tido apoio. A manutenção do espaço é complicada, exige muito, só que somos resistentes. Estamos a resistir enquanto pudermos. Mostramos programação moçambicana e temos agora um projeto para começar uma programação africana mais ampla. Mas não é fácil, há poucos filmes disponíveis online. Temos de contactar diretamente os produtores e estamos a negociar isso.

O cinema também tem uma história cultural rica: já atuaram lá o Gilberto Macuácua, a Amália Rodrigues... Tem teatro, dança, música. O Xiquitsi, que é a companhia que ensina norte-americanos a tocar música clássica, está lá instalado, e temos ainda um restaurante. Portanto, vamos aguentando. Mas não é algo que dê rendimento, fazemos isto mesmo por uma missão: somos a única sala a mostrar cinema moçambicano ponto. E fazemos uma programação constante. Todos os filmes moçambicanos e africanos estão a passar ali, em ecrã grande. Um ecrã de 13, 14 metros.

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Cinema Scala, Maputo

Sem DCP, não é?

Mas com boa projeção.

E passam película também?

Não. As máquinas de película eram antigas, com carvão, projetores enormes. Estão lá, mas ficaram paralisadas, a qualidade já não era boa. Depois recebemos um apoio para montar o sistema de som, mas não temos som 5.1 nem DCP, são investimentos muito caros, e o nosso público em Moçambique é pequeno. Por exemplo, com “O Jardim do Outro Homem”, tive a segunda maior audiência em sala: 3 mil pessoas. Mas tive muito mais audiência com o “Jardim” quando o levámos a todo o país com projetor e jipe — mais de 50 mil pessoas viram o filme assim, em aldeias, ao ar livre.

Em sala, é muito difícil. A massa crítica é pequena.

Sobre isso … sobre a cinefilia e a cinematografia moçambicana hoje … eu, como europeu, noto uma certa ideia de que estamos a evidenciar um “boom” do cinema africano no geral, seja em festivais ou até em plataformas de streaming como o MUBI. Tem sentido isso?

Acho que não estou muito de acordo com essa ideia. Talvez em alguns festivais se veja isso… Houve sim um grande boom nos anos 70, 80, 90. Nessa altura cresceu muito. É importante lembrar que os três grandes apoios ao cinema africano eram: a União Europeia (na altura através do ACP — África, Caraíbas e Pacífico), os franceses e, curiosamente, os portugueses, que tiveram um papel super importante na produção de ficção africana. Sem esse apoio, o cinema de ficção — longa-metragem — está condenado. Os nossos países não têm meios para financiar isso sozinhos.

Digo isto não por diplomacia, porque tenho críticas a Portugal também, mas é um facto: devemos muito ao país. Pelo menos há concursos que ainda permitem fazer um documentário, ou uma ficção, e depois articulamos com a ACP, com a UE, que também dá fundos. Os franceses também dão, mas claro, focam-se mais na francofonia.

E sim, nesses países francófonos há mais desenvolvimento agora, também porque os apoios nacionais lá são mais fortes. No caso do “Ancoradouro”, o primeiro dinheiro que consegui foi do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual], depois fui buscar financiamento noutros lugares, como a Alemanha. Agora, muitos fundos africanos viraram-se (com alguma razão) para o grande desenvolvimento que está a acontecer no cinema asiático.

Veja: faz-se um filme coreano, traduz-se para chinês, e mesmo se for um flop, são 4 milhões de espectadores. E não é só a China, há também a Malásia, Indonésia… Se conseguir entrar no mercado chinês, o filme está pago. Veja bem: 800 mil chineses a pagar 1 euro! … o filme está pago!

Eu não consigo nem 30 mil pessoas a pagar 5 dólares em Moçambique. Fora de questão! E é essa a grande diferença.

Daí que as co-produções sejam tão determinantes...

Sim, só os custos de produção já são um obstáculo. É preciso haver massa crítica … e quando digo massa crítica, não estou a falar só de público interessado, mas de pessoas com dinheiro para pagar bilhete de cinema. Sem isso, não é possível. Tem de haver apoio do Estado, para fazer esse equilíbrio. Houve ali um momento de transição entre a película e o digital, em que surgiram algumas manifestações interessantes. Mas, de resto, o que é que temos em África? Só se for a Nigéria?

Quando referi cinema africano conscientemente exclui a Nigéria, que como bem sabemos é uma indústria à parte.

Exato. Veja: eles fazem filmes para 120, 130 milhões de pessoas, que noutros contextos, que adoram cinema. Em Moçambique, se tiver 250 pessoas numa sala, mesmo com preço de estudante, já é muito. Porque só para sair de casa já há custos. E é por isso que Moçambique está como está. As pessoas não têm condições para sustentar uma indústria cinematográfica. Não concordo com isso — claro que não — mas tenho de aceitar que é essa a realidade.

Houve um deslocamento dos fundos. Muitos foram para a Ásia, para a América do Sul que também são mercados grandes (o Brasil, por exemplo, já funciona por si só), e há todo um mercado de língua espanhola. O ACP (África, Caraíbas e Pacífico), que era uma das grandes fontes de financiamento, agora lança concursos de 3 em 3 ou de 4 em 4 anos. E ainda se dividiu: há agora um ACP francês e um ACP alemão.

Se quiseres voltar a concorrer, tens de ir bater à porta de todos esses. Depois há uns fundos pequenos da Suíça, da Noruega, dedicados ao chamado “Terceiro Mundo”. Mas nós, africanos, tirando a parte francófona, que tem o fundo da OIF e da Francofonia, temos cada vez menos.

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O Jardim do Outro Homem (2007)

Portanto, isso limita também o aumento da cooperação...

Claro. Há algumas cinematografias árabes com bons apoios … mas isso já é outro universo. A África subsariana, ou “negra”, como se costuma dizer, perdeu importância. Há sempre quem continue a organizar festivais e dar visibilidade, mas não estamos a crescer como devíamos. O nosso mercado é insípido: o dinheiro vai todo para a produção, e não há retorno. Num mundo como o de hoje, é difícil continuar a defender estas ideias, a não ser que tenhas muito dinheiro para queimar.

No mundo em geral já é difícil...

E no nosso caso há ainda outro problema: os hiatos. Houve um falhanço na passagem de testemunho, que tem a ver com educação, formação, e com o boom das televisões. A televisão é produção rápida, com equipas reduzidas, dois ou três numa sala. Costumo dizer que virou a "televisão de excelência". Hoje, mesmo nas grandes indústrias, como as dos EUA, já se discute se vale a pena lançar um filme no cinema ou diretamente nas plataformas, cuja a única vantagem, segundo essas empresas, é de ver num ecrã maior. Na nossa realidade, essa passagem de testemunho entre gerações falhou.

Mas apareceu uma geração nova, cheia de criatividade, gente que faz “leite das pedras”. Por exemplo, conheço um jovem em Quelimane que faz um filme de ficção por ano... com 100 dólares! É polícia de profissão, chama os amigos, filma e *já está*. Faz um, dois filmes por ano, e são trabalhos com impacto, com caráter. Tem sucesso! São filmes muito bons, e estão na internet. Gosto muito dele, incentivo-o sempre a continuar, porque ele faz mesmo sem condições nenhumas, e consegue contar histórias. 

Há vários realizadores que fazem esse tipo de experiências...

E que resultam. Resultam mesmo!

Assim de repente vem-me à memória Fede Alvarez …

Exatamente. Agora, em termos de produção... É como no desporto: a Lurdes Mutola foi campeã olímpica, mas sem estrutura. Depois dela, deixámos de ter representação olímpica. É tudo uma questão de bases e no cinema é igual.

Temos muitos jovens talentosos, criativos, mas precisavam de mais apoio e essa negociação com a Europa também devia ser mais acompanhada. Porque eu, com um currículo de 30 anos, consigo ir lá e ganhar fundos. Mas se for a alguém, com apenas dois filmes, ou que está a começar, vai perder. Porque o currículo conta muito. Devia haver incentivos para primeiras e segundas obras.

Mas não há muito disso. Vamos ver...

O Natal é quando a Roménia quiser!

Hugo Gomes, 06.05.25

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O Natal chegou mais cedo para a Roménia, e mais tarde para Bogdan Mureșanu. O realizador romeno, na sua primeira longa-metragem [“The New Year That Never Came”], expande um dos conceitos da sua anterior curta, "The Christmas Gift" (2018), remexendo novamente na história crucial do seu país: a Revolução de Timișoara para sermos mais exactos, os tumultos em protesto contra o regime de Nicolae Ceaușescu, que levaram à sua queda, execução, e com ele  o fim do comunismo de punho de ferro exercido há mais de 42 anos (1947 - 1989).

É novamente o complexo Titanic, onde a “catástrofe” ou a potência do evento histórico condiciona todo o enredo e a respetiva sua dramaturgia. Desde cedo é perceptível o rumo para onde o filme nos conduz, fechando-se em copas perante a cortina vermelha do The End, com a graça de uma entrada a pés juntos na modernidade (o restante imagina-se como o projeto-futuro de uma Roménia que nunca aconteceu). Mas, para quem desconhece o facto impulsor desta narrativa entrelaçada de personagens frustradas com a sua contemporaneidade (ficções fervorosas de um povo que ainda guarda a memória congelada do regime do “Tio Nick”), o filme nunca se faz maior do que é. Nunca esmaga o espectador com a sua própria ignorância, e, nisso, pode ser visto sem um pingo de consciência, ainda que o final transluz a essência de uma percepção tardia.

Talvez estejamos perante outra queda - a do movimento do realismo romeno - que fincou e fomentou todo um conjunto de cineastas: Cristian Mungiu, Cristi Puiu, Corneliu Porumboiu e até Radu Muntean (ainda que Radu Jude, outro nome fulcral desta cinematografia, seja de um movimento à parte, talvez mais próprio, mais experimentalista e menos formalista.) Mureșanu parece reconhecer essa decadência estilística, mesmo que erguendo-a por fios como um piñata a aguardar pela sua surra, para que coincida com o seu propósito.

Por exemplo, numa das intrigas, visto que as diferentes narrativas assumem-se como gags prolongadas e humanamente desenvolvidas, a estação de televisão pública apercebe-se de que o seu programa de Natal está comprometido com a dissertação da sua estrela. O realizador e os seus técnicos, perante o ultimato do diretor da estação, procuram uma solução para as filmagens. Ao longo desta projecção, as piadas e os desdéns aos tremeliques da câmara são orientados como um reparo que vai além da ficção, a toda uma estética vejamos. Até porque "The New Year That Never Came" parece beneficiar dessa câmara desestabilizada, quase guerrilheira, simultaneamente desafiando a sua própria compreensão, como se fosse um artifício forçado, necessário ao percurso.

Num tempo em que a Roménia cede à extrema-direita, podemos questionar se o anterior movimento romeno se adequa às novas orientações, persiste num cinema de guerra e afronta ou interioriza-se como ultrapassado? Bogdan Mureșanu não nos dá resposta alguma, mas faz deste Natal da Revolução um distorcido macguffin para a sua arte — cometendo ficção com a História Moderna, numa perspectiva não revanchista, mas vingativa.

Patriarcas à deriva e outras criaturas alpinas

Hugo Gomes, 17.04.25

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Sobre “Vermiglio”, a questão não reside no seu formalismo de falso “filme de montanha”, ambientado nos últimos suspiros da segunda guerra, nem nas extensas ramificações familiares, inscritas numa espécie de “casa da pradaria” em versão italo-alpina. O que sinto — e talvez seja esse o ponto que mais me afastou daquilo que poderia ser o caminho de Maura Delpero ao trazer à luz a sua rica sensibilidade fílmica numa terceira longa-metragem — prende-se, sobretudo, com a forma algo tangencial com que aborda o sistema patriarcal. O patriarcado, longe dos discursos simplistas, posiciona não nos homens como cúmplices directos, mas antes como vítimas cooptadas — sujeitos igualmente capturados por uma lógica que os instrumentaliza, consome e, por vezes, transfigura em figuras monstruosas, moldadas pelos ideais hegemónicos de masculinidade normativa.

Mas vamos por partes. É um facto: a palavra “patriarcado” afasta, desde logo, muitos espectadores das encostas dos respectivos filmes, muitas vezes por estar associado a obras marcadas por um discurso inflamado ou por uma urgência de mudar o mundo com um estalar de dedos. “Vermiglio” não se inscreve nessas revoltas, ou, antes disso, há nele um certo carinho pelos homens, esses, patriarcas professorais, ‘vítimas’ da sua própria precariedade (entra-se classe social nestas montanhas austeras), mas cuja resposta às adversidades desperta esse lado maturado do sistema com que nasceram, sejam elas provindas do ambiente, do foro emocional, ou provocadas por jovens objetores da sua própria vida, ao invés do sacrifício bélico, como também aquele que falha em ser “homem” perante a constante exigência e aprovação do pai.

A polivalente feminista Virginie Despentes [de escritora a cineasta] no seu publicado manifesto, “A Teoria de King Kong” ("King Kong Théorie"), num daqueles parágrafos que esperneia até contra o já chamado senso-comum do feminismo capitalista (o promovida pelas ‘celebridades’ ou por ‘ativistas de redes sociais’), defende que, neste sistema ultra-patriarcal, a vida das mulheres não lhes pertence, pois são concebidas como propriedade estrutural desse mesmo sistema. No entanto, Despentes observa que, para os homens, a ‘sorte’ não lhes abona totalmente, os seus corpos pertencem “à produção, em tempo de paz, e ao Estado, em tempo de guerra".

Dito isto, e recusando a dicotomia simplista do “homem enquanto inimigo comum”, há a proposta de que também este é vítima dessa trituração. “Vermiglio” sugere esse olhar compassivo sobre o universo masculino desta comunidade, impregnados pelo dever de um patriarcado intrínseco. Nascem e crescem sob o conceito de “ser homem”, e assim se tornam. Nesse discurso resulta no melhor da obra, atribuindo-lhe uma visão ampla para mais do que uma mera denúncia por via de um contexto histórico. O seu ponto fraco, no entanto, emerge da negligência em desenvolver os subenredos masculinos, que, embora sugeridos, não chegam a consolidar-se como elementos narrativos autónomos, focando-se apenas no trio de mulheres jovens: a inocente, a pecaminosa e a talentosa. 

São decisões — e o cinema, na sua arte, vivem dessas decisões — que deixam antever um quadro cinematográfico composto, em que o frio — físico e emocional — actua como fissura dramaticamente simbólica. É um cinema do “não-dito”, que encontra na ausência, na contenção e na sugestão a sua forma privilegiada de expressão.

O crítico grito de revolta!

Hugo Gomes, 26.03.25

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Abram alas para um novo incitador político pelas ruas de Teerão. O multifacetado Ali Ahmadzadeh (“Atomic Heart Mother”) fez de "Critical Zone" a promessa de uma nova etapa no cinema iraniano politizador, sem recorrer a metáforas ou reconstituições como se pode, mas antes à montra provocateur que se manifesta num filme sobre dealers que tem como consequência um dos pontos sagrados do seu cinema, agora despejado num comboio de heresias e sacrilégios.

A viatura — e tudo o que se pode fazer no seu interior — é uma marca ininterrupta da cinematografia persa. “Ninguém filma um interior de carro como um iraniano”, ouvi anos a fio nas discussões sobre como mimetizar tal genialidade, sem me aperceber de que é nesse espaço entre quatro rodas que encontramos o confronto e a liberdade fingida numa sociedade repressiva. Perante essas possibilidades, Ahmadzadeh instala um teatro de vulgaridades, daquelas que, para olhos ocidentais, são o “pão de cada dia” … nada de novo, é verdade, mas no seu contexto sociopolítico, cai o Carmo e a Trindade: consome-se droga, há uma masturbação feminina, um grito de revolta com o arrancar do hijab (não há censura que aguente).

"Critical Zone" é o anti-”Taxi Driver”, porque no seu protagonista, condutor em noites longas de ponto a ponto, entregando o seu produto e distribuindo conselhos valiosos, encontramos a sujidade que um dia Travis Bickle quis “limpar” da berma da estrada. Só que aqui, ele é o nosso herói, o marginal convicto de quem, sem percebermos, necessitamos. O “amigo” desta solidão tramada que regimes deste género enfeitam surdamente e emudecido. Fazer de Ahmadzadeh um novo cineasta político iraniano já não é um capricho da nossa confortabilidade, mas a cedência a uma possível nova legião — mais ferozes, menos floreados, soturnos e terrivelmente combativos. Uma criação incisiva de retaliação.

Vencedor do Leopardo de Ouro do Festival de Locarno 2023

Figuras provisórias que devemos escutar ...

Hugo Gomes, 19.03.25

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Há outro tipo de trabalho da psique com o qual Laura Carreira lida nesta relação trabalho-trabalhador, diferenciando-se do catálogo citado sem prudências - "Listen" e "Great Yarmouth" em português, Ken Loach em inglês - e a fabulosa cena da "entrevista de emprego" é exemplo disso, de como perdemos a nossa individualidade para cumprir um mau sonho capitalista ou, neste caso, algo que já ultrapassou essa ideia de sistema. Joana Santos, com grande garra, mostra ao que veio!

"On Falling " estreia dia 27 de Março.

Na boleia da paternidade, a sensibilidade faz o espectador ...

Hugo Gomes, 06.03.25

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Mantenho a citação de Jacques Rancière no peito — “O Cinema é a arte do sensível” — e o crítico, como bom crítico que deve ser, é devoto dessa mesma sensibilidade. Ao contrário do que se crê, ou do que se vende enquanto ideia absoluta, a crítica de cinema não é a prescrição de uma verdade. O mercado, no entanto, apropriou-se dessa noção para corresponder aos instintos restritos de um público que se mantém na lógica algorítmica do consumo. Há, sim, uma verdade na crítica, mas essa verdade não exclui o próprio crítico, que entre o subjetivo e o objetivo, ostenta uma sensibilidade a ser captada, e utilizar esse resíduos como combustão do seu “julgamento”. 

Estes falsos aforismos servem de pretexto para justificar a minha entrega a “Le Roman de Jim”, da dupla fraterna Larrieu [Jean-Marie & Arnaud], em teoria, um ensaio simultaneamente naturalista e anti-naturalista, mas foi outra coisa que me conquistou. A sua história em quatro tempos, protagonizada por Karim Leklou, um ator frequentemente descrito como um "urso" no próprio filme, apresenta-nos uma narrativa que segue o seu percurso através de uma cronologia fatal e dos afetos que nela se enraízam. Ou, para dizê-lo de forma mais terna, um retrato da paternidade de quem, no sentido biológico, não o é. 

Leklou, premiado com um César e distinguido no LEFFEST por esta interpretação, dá corpo a um homem desamparado, recém-saído do cárcere, que reencontra uma antiga amante (Laetitia Dosch) — uma mulher abandonada por um homem casado sem antes de a ter deixado com uma "semente". Diante desta criança, o protagonista não se limita a apadrinhá-la; assume-a plenamente como pai, proclamando o seu papel com a convicção de quem desafia as convenções. Assim nasce e cresce Jim (Eol Personne), feliz no seio de uma família construída com base na ternura, até ao momento em que o pai biológico (Bertrand Belin, ator e compositor de “Tralala”, anterior obra dos Larrieu), outrora ausente, surge à porta. Enlutado pela perda da sua família “original”, decide agora “reclamar” uma nova.

A partir daqui, o filme desenha um confronto entre o tradicionalismo e o progressismo, sugerindo a paternidade partilhada como solução. Mas, num registo à partida semelhante ao de Philippe Garrel pós-”Le Cœur fantôme” (1996), os Larrieu fintam essa bravura de costumes para dar-nos um sermão, só que ao contrário dele não temos aqui as cantigas de velho rabugento que “Le Sel des larmes” (2020) ou “L'Amant d'un jour” (2017) perfilham. Ao invés disso temos o confronto deste pai suplente em re-atingir o seu posto por direito. O tempo, aqui, assume um caráter traiçoeiro, e curiosamente demarcado pelo fascínio fotográfico do próprio personagem de Leklou (cujo negativo nos chega em forma de introspecção interventiva e invasiva), do analogico até ao à poeira digital, com albuns invisíveis de milhares fotogramas como separador temporal. Mas ao contrário do aceleramento da narrativa, o protagonista dificilmente envelhece, exceto na maturidade em que o seu arco exige. Ele surge quase deslocado do tom naturalista que o filme abraça, mas é com ele que nos guiamos — bravos, ao seu lado — através da sua luta, da sua determinação e, por fim, da sua desistência, o qual não podemos condenar.

Nesta reconquista impossível do direito paternal, mesmo que a biologia lhe seja adversa, há uma noção de “fabrico social” que Koreeda, de forma lúdica, desafiou num Japão preso a um tradicionalismo enraizado. Os Larrieu, por sua vez, não atropelam nada estabelecido, apenas constroem uma situação que ressoa em nós, os tais espectadores sensíveis. Sentimos as dores de Leklou como nossas, e cada epifania nas três sequências dignas de desfecho reverbera no interior que voluntariamente entregamos como nossa sequestrada sensibilidade.

Por isso, agarro-me à definição de Rancière e faço dela a minha desculpa. Que filme delicadíssimo sobre arrependimentos, sobre a morosidade do tempo a corroer-nos por dentro (mesmo que o corpo permaneça intacto), mas, acima de tudo, um hino ao Pai. A essa figura que, em criança, encaramos como herói e, em adultos, carregamos como um complexo ou ferida por sarar.

Atrás do fantasma de Gaugin ...

Hugo Gomes, 20.02.25

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Por essa estrada fora, Hugo Vieira da Silva, depois de citar Joseph Conrad e o Congo colonial no muito apreciado “O Posto Avançado do Progresso”, regressa às adaptações de mato, tendo como farol uma graphic novel — “Loin de la route”, de Christophe Gaultier e Maximilien Le Roy - que por sua vez é inspirada nos escritos de Victor Segalen, médico e poeta que procura o rasto deixado pelo pintor Paul Gauguin no seu refúgio no Taiti, no início do século XX. Dessa mesma busca emergem encontros com fantasmas e uma aura espectral do pintor, do homem e da controversa figura que foi, e que se mantêm, Gauguin

Este projeto coincidiu com um momento delicado na saúde do realizador, levando à requisição da co-realização pelo seu habitual montador, Paulo MilHomens — cada vez mais dedicado a terminar projetos de outros (veja-se também o caso de “Axilas”, o último termo de José Fonseca e Costa) -, numa espécie de coordenação à distância, e o que nasceu dessa colaboração foi um filme de múltiplas vozes e visões, deixando-nos a imaginar como seria caso mantivesse um só maestro. Contudo, mesmo afastando-se por vezes da estrada que lhe fora traçada, a obra acaba por abrigar na sua própria posição: não apenas a de reimaginar os “quadradinhos” de “Loin de la route», nem sequer de reproduzir os escritos de Segalen (aqui interpretado por Antoine de Foucauld), mas também de humanizar Gauguin — figura de mau agouro neste zeitgeist a que convivemos, numa espécie de imposição moral e cancelamentos por via de um cânone ainda por entender. 

O filme faz dessa passagem algo fantasmagórico na sua tese, mesmo subliminarmente implantado à beira-mar, nestes trópicos que oscilam entre a decadência de um império e a mistificação ainda sustentada por crenças de gerações e gerações. Funciona como registo histórico, modesto na sua produção, sem nunca ter o devido golpe de asa. Para Hugo Vieira da Silva, as melhoras. Continuamos interessados na sua nova aventura pelo passado colonialista, seja qual for o prisma.

Corpo de Celeste e sem Alma de Sorrentino

Hugo Gomes, 20.02.25

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O que gosta numa mulher? 

As costas, o resto é pornografia

Seguindo as suas artimanhas visio-sonoras, Paolo Sorrentino mapeia o corpo escultural de Celeste Dalla Porta como se fosse a geografia de uma cidade — precisamente a sua cidade-berço, à beira-mar. O mar, esse, inevitável primeiro contacto com a vida e também com a morte, condensando-se na tragédia desta jovem mulher, de frases prontas, mas cujos seus silêncios a deter uma outra dimensão.

Parthenope, nome que partilha com o antigo batismo de Nápoles, é um símbolo desse povo, sobre o qual recai a incumbência de carregar uma tristeza entranhada e corrosiva — um quê de existencialismo, outro de bovarismo, sem certezas absolutas, talvez na busca de um tempo perdido. Aquele em que a sua carruagem, oferenda de um oligarca que a "moça" apadrinhou, representava o seu idealizado mundo, luminoso e, sobretudo, belo. A beleza — a sua arte, a sua estratégia, o seu mistério, a sua tão proclamada "grande beleza" — numa tentativa de “matar dois coelhos numa cajadada só”: a demanda pelo que a vida ainda guarda a sete chaves e a réplica estética com que Sorrentino cita e recita o seu próprio êxito.

A "pilhagem", diria Pedro Mexia sempre que tivesse oportunidade de destilar o seu ódio sorrentiniano, muitos o seguirão nesse fel, sem dúvida, mas aqui não há saque aos tesouros alheios, apenas a exibição das velhas pratas da casa. Sorrentino conhece a lição de cor: os tons fellinianos, o circo montado, a alienação burguesa levada ao extremo. Não desbrava caminho nem sobe um degrau, apenas recolhe os restos da juventude de que tanto se queixa ter perdido.

Nápoles, sim, o canto onde Celeste "Diva" Portadiva ou divina, como quiserem — se entrega ao mistério, à fantasia e, sobretudo, ao líbido implantado nos homens ressabiados. Um simples toque traz consequências — a mão de Deus ou a fatalidade da ardência que desperta nos outros. E é dessa pulsão que nasce um enredo desfigurado, desorientado, cansado no seu misticismo pasoliniano de terceira rodagem.

Sorrentino é capaz de notas mais altas. Fala aqui um dos poucos defensores de “La Grande Bellezza" neste meio, até porque de Fellini se conhece e se vê retratado num distanciamento possível, mas em “Parthenope”, mesmo que por vias de sketches, concentra-se numa exatidão identificável: "Para onde vão as conversas das noites de bebedeira?", chora Gary Oldman, e choramos também nós ao perceber que o tempo não retrocede, não se entrega de mansinho, não nos estende a mão para uma segunda oportunidade — seja qual for — e que o ideal que projetamos de nós mesmos nunca se cumpre.

Cairá quem quiser. Talvez porque Sorrentino seja um homem de desejos masculinos e frustrações à medida, e porque aqueles que partilham essas inquietações se reveem nas suas dores, mesmo quando debitadas por uma protagonista — donna com título inquirido e olhos tristes a condizer. Um exibicionista ensaio com vida lá dentro — a vida maquilhada de Sorrentino —, mesmo que o velcro seja de uma pobreza franciscana perante a aristocracia das suas imagens. E já agora, Nápoles… viva Nápoles!

Quem quer vendar os cineastas de intervenção?

Hugo Gomes, 29.01.25

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Mohammad Rasoulof, O cineasta político iraniano? Hipocrisia, tendo em conta que o Irão fervilha nessa corrente de cineastas em inversão aos interesses do Estado. São vozes, maioritariamente silenciadas, que, para contornar a censura e as consequências agravosas, estabelecem pacto com a alegoria e a subtextualidade. Contudo, cada vez mais assertivos na mensagem. O Ocidente alimenta-se dessa fúria, emoldurando-os numa vaga de cinema iraniano difundido por festivais e escolas. Rasoulof lidera, sempre a pisar nos calos do sistema, essa provocação, esse ativismo urgente de punho mais do que cerrado e peito aberto às balas, conduzindo um cinema que não mata, mas, parafraseando o saudoso Raul Solnado, desmoraliza e muito a escadaria do Poder.

Talvez o crescente interesse sobre o realizador e a sua ascensão nesse estatuto de cineasta de intervenção se deva sobretudo ao anterior invicto Jafar Panahi, agora encostado ao meio rural, saboreando as suas parábolas de reinante obscuridade (“3 Faces”, “No Bears”). Porém, nessa linha, devemos salientar o nome de Ali Ahmadzadeh — cujo "Critical Zone" abocanhou o prémio principal de Locarno em 2023 —, e já apontado como um avançado na quebra de tabus estabelecidos.

Entre os filmes do momento, absorvido pela atenção ocidental, "The Seed of the Sacred Fig" insere-se na sua alegoria familiar. Laureado com o Prémio Especial do Júri em Cannes, enraíza-se no terreno fértil da indignação coletiva, solo nutrido pelos protestos desencadeados após a trágica morte de Mahsa Amini, em 2022 — jovem arrancada à vida pelas mãos da Polícia dos Costumes, numa punição que refletia o peso insuportável das normas do "hijab". Imagens amadoras e clandestinas dessa indignação intercalam a narrativa, induzindo um senso de zeitgeist que arrasta tanto espectadores como personagens para a atuação do contexto político-social.

Enquanto isso, no seio de uma família — não uma qualquer, mas a de um juiz do Tribunal Revolucionário de Teerão, recentemente promovido —, Iman (Misagh Zare) vê-se encurralado por um acontecimento “banal” e perturbador: o desaparecimento da sua arma — símbolo inequívoco do poder estatal — dentro de casa. Essa ausência, sombra corrosiva, ameaça não apenas a reputação profissional, mas também a estabilidade do lar. Na tentativa de resgatar o objeto perdido, Iman torna-se uma figura inquisidora, tensionando a relação com a esposa (Soheila Golestani) e as filhas (Mahsa Rostami e Setareh Maleki), estas últimas profundamente envolvidas no turbilhão das revoltas.

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É na pele da esposa que o filme adquire intenção. Não persuadir uma verdade, mas usar o seu estatuto de cônjuge, mãe e doméstica como ponto de partida para a alegoria, equiparável à Caverna de Platão. O primeiro choque com a realidade humana dá-se na sua descrença, plena confiança nos meios comunicacionais — a televisão, aqui instrumento propagandista estatal, alterador da verdade — e na função do marido, que vindo dele apenas e somente a “verdade inquestionável”. Neste papel de estabilizadora doméstica, insurge-se contra verdades e mentiras: manter a paz dentro das quatro paredes, mas a que custo? O filme avança através desse questionamento, dessa resistência, culminando na entrega e combate à Ordem estabelecida. Iman converte-se no catalisador bruto da ordem e da tradição opressora, e a arma, o macguffin simbólico, concentra o peso de um Poder destituído e a procura da sua restituição, num conflito silencioso desembocado num último ato de completa anarquia familiar. Mulheres unidas para derrotar a essência de uma ordem patriarcal encarnada num pai que se revela tirânico.

Esse jogo de tensões, elástico prestes a romper, culmina numa extraordinária potência imagética. As imagens, meticulosamente arquitetadas, transcendem o literal, insuflando um imaginário revolucionário que ecoa muito além da tela. A arma, a poeira, a mão hirta do defunto / derrotado — assim dito para evitar revelações excessivas — constroem uma gramática visual que é, simultaneamente, um statement e um grito abafado, e igualmente libertador. Uma observação de um regime sustentado não apenas pelos pilares do patriarcado, mas pelos véus densos de um fundamentalismo que tudo encobre.

No fim de contas, um thriller sem suavizações politizadas, um megafone que brada bem alto a sua mensagem, com direção ao Mundo, aproveitando a sua globalidade enquanto ainda pode, e nessa linguagem, como digamos universal, o cinema, as imagens, a suas causas-efeitos. O Ocidente aplaude, premeia, Rasoulof arriscou o pescoço... mais uma vez, no seu gesto mais gritante desde o clandestino "Manuscript Don’t Burn" (por cá, apenas exibido no encerramento de uma edição do Doclisboa). A sua estirpe como realizador da revolução ainda está por vir, mas, por agora (e ainda), é apenas um fazedor de cinema como ato de resistência.

O encontro da ficção com o documentário ... ou será o oposto?

Hugo Gomes, 07.01.25

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Não é a primeira vez (nem sequer a segunda) que o cineasta cambojano Rithy Panh se aventura nas densas “florestas” da ficção, mas será legítimo questionar se é realmente ficção de que estamos para aqui a falar? Em termos estruturais, formais ou até mesmo semióticos, “Rendez-vous avec Pol Pot" é uma ficção nessa lógica de mercado ou do tratamento narrativo, mas é por via dessa encenação (chamaremos assim para o representar adequadamente) que o realizador recita a sua longa “tese” documental.

A trama segue a chegada de três jornalistas franceses (Iréne Jacob, Grégoire Colin e Cyril Gueï) à Kampuchea Democrática, em 1978, a convite de Pol Pot, líder do Khmer Vermelho faz-se com a mesma precisão que o género documental inteiramente instalado, conectar-se com uma vivência nunca escondida do realizador, da sua intenção com a verdade que tão bem conhece e as vozes silenciadas o qual incentiva a berrar para “romper” os seus cativeiros memorialistas. É nessa bravura que se enverga por terrenos conhecidos, temas comuns, Panh como o Panh que de tão familiarizados estamos. 

O filme narra essa jornada desde a cena inicial, em que os jornalistas estrangeiros esperam numa pista de aterragem desolada — rotas-fantasmas, por assim dizer — pela “comitiva de boas-vindas”, carregados de suspeitas no goto. Mais tarde, diante de um teatro de políticas encenadas “para francês ver”, de aldeias artificialmente compostas e quintas utópicas, tudo serve para reforçar a ilusão de uma realidade idealizada. Contudo, um desses visitantes (não tão convidativos, comenta-se à parte), um fotógrafo de câmara em punho (Gueï), atravessa os limites do permitido. Ao chegar ao ponto mais distante e próximo da fantasia vermelha, num clique, capta uma realidade antípoda, a sombra emitida por detrás da fachada. O filme não faz uso dessa mesma representação, substitui a ficção por outros efeitos, sejam imagens de registo, horrores arquivados, seja pela igualmente reconhecida maquete “panhiana”, a tal “imagem que falta”, irreproduzível, despida da sua forma mas nunca do seu significado, os atores viram bonecos, os cenários viram simulações, a ideia resiste à imposição de uma estética farsesca, mas nunca a falsidade das declarações.

Retornamos, então, à pista vazia, não à "imagem inicial", mas à sua réplica-ideia de agressiva solidão. Quando finalmente a entrevista acontece, de maneira intermitente e sempre adiada, o vazio empático permanece. O diálogo é irregular, inatingível e incomunicável. Pol Pot (cuja voz é do próprio Rithy Panh) fala para si mesmo, enquanto os tradutores transmitem as palavras já moldadas pela máquina ideológica. No encontro mais íntimo, entre o ditador e o seu 'pen pal' equivocado (Colin), a conversa embica violentamente, a unilateralidade domina e as convicções inabaláveis de um homem trancado nas suas próprias ideias sufocam o espaço e reforçam o medo que este Poder moralmente corruptivo impõe.

“Rendez-vous avec Pol Pot" é um objeto fantasmagórico que, como os melhores filmes políticos contemporâneos, transforma o passado numa história do presente. Pol Pot foi um ditador de fantasias, e este mundo que ele criou foi moldado pelas suas ambições desmedidas. Hoje, sem mencionar nomes, não é difícil encontrar quem deseja criar a sua soberania com ou sem convicções. 

Quanto à sua essência, Rithy Panh preserva um outro poder, o da imagem, também ela, com ou sem convicção.