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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Na boleia da paternidade, a sensibilidade faz o espectador ...

Hugo Gomes, 06.03.25

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Mantenho a citação de Jacques Rancière no peito — “O Cinema é a arte do sensível” — e o crítico, como bom crítico que deve ser, é devoto dessa mesma sensibilidade. Ao contrário do que se crê, ou do que se vende enquanto ideia absoluta, a crítica de cinema não é a prescrição de uma verdade. O mercado, no entanto, apropriou-se dessa noção para corresponder aos instintos restritos de um público que se mantém na lógica algorítmica do consumo. Há, sim, uma verdade na crítica, mas essa verdade não exclui o próprio crítico, que entre o subjetivo e o objetivo, ostenta uma sensibilidade a ser captada, e utilizar esse resíduos como combustão do seu “julgamento”. 

Estes falsos aforismos servem de pretexto para justificar a minha entrega a “Le Roman de Jim”, da dupla fraterna Larrieu [Jean-Marie & Arnaud], em teoria, um ensaio simultaneamente naturalista e anti-naturalista, mas foi outra coisa que me conquistou. A sua história em quatro tempos, protagonizada por Karim Leklou, um ator frequentemente descrito como um "urso" no próprio filme, apresenta-nos uma narrativa que segue o seu percurso através de uma cronologia fatal e dos afetos que nela se enraízam. Ou, para dizê-lo de forma mais terna, um retrato da paternidade de quem, no sentido biológico, não o é. 

Leklou, premiado com um César e distinguido no LEFFEST por esta interpretação, dá corpo a um homem desamparado, recém-saído do cárcere, que reencontra uma antiga amante (Laetitia Dosch) — uma mulher abandonada por um homem casado sem antes de a ter deixado com uma "semente". Diante desta criança, o protagonista não se limita a apadrinhá-la; assume-a plenamente como pai, proclamando o seu papel com a convicção de quem desafia as convenções. Assim nasce e cresce Jim (Eol Personne), feliz no seio de uma família construída com base na ternura, até ao momento em que o pai biológico (Bertrand Belin, ator e compositor de “Tralala”, anterior obra dos Larrieu), outrora ausente, surge à porta. Enlutado pela perda da sua família “original”, decide agora “reclamar” uma nova.

A partir daqui, o filme desenha um confronto entre o tradicionalismo e o progressismo, sugerindo a paternidade partilhada como solução. Mas, num registo à partida semelhante ao de Philippe Garrel pós-”Le Cœur fantôme” (1996), os Larrieu fintam essa bravura de costumes para dar-nos um sermão, só que ao contrário dele não temos aqui as cantigas de velho rabugento que “Le Sel des larmes” (2020) ou “L'Amant d'un jour” (2017) perfilham. Ao invés disso temos o confronto deste pai suplente em re-atingir o seu posto por direito. O tempo, aqui, assume um caráter traiçoeiro, e curiosamente demarcado pelo fascínio fotográfico do próprio personagem de Leklou (cujo negativo nos chega em forma de introspecção interventiva e invasiva), do analogico até ao à poeira digital, com albuns invisíveis de milhares fotogramas como separador temporal. Mas ao contrário do aceleramento da narrativa, o protagonista dificilmente envelhece, exceto na maturidade em que o seu arco exige. Ele surge quase deslocado do tom naturalista que o filme abraça, mas é com ele que nos guiamos — bravos, ao seu lado — através da sua luta, da sua determinação e, por fim, da sua desistência, o qual não podemos condenar.

Nesta reconquista impossível do direito paternal, mesmo que a biologia lhe seja adversa, há uma noção de “fabrico social” que Koreeda, de forma lúdica, desafiou num Japão preso a um tradicionalismo enraizado. Os Larrieu, por sua vez, não atropelam nada estabelecido, apenas constroem uma situação que ressoa em nós, os tais espectadores sensíveis. Sentimos as dores de Leklou como nossas, e cada epifania nas três sequências dignas de desfecho reverbera no interior que voluntariamente entregamos como nossa sequestrada sensibilidade.

Por isso, agarro-me à definição de Rancière e faço dela a minha desculpa. Que filme delicadíssimo sobre arrependimentos, sobre a morosidade do tempo a corroer-nos por dentro (mesmo que o corpo permaneça intacto), mas, acima de tudo, um hino ao Pai. A essa figura que, em criança, encaramos como herói e, em adultos, carregamos como um complexo ou ferida por sarar.

Atrás do fantasma de Gaugin ...

Hugo Gomes, 20.02.25

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Por essa estrada fora, Hugo Vieira da Silva, depois de citar Joseph Conrad e o Congo colonial no muito apreciado “O Posto Avançado do Progresso”, regressa às adaptações de mato, tendo como farol uma graphic novel — “Loin de la route”, de Christophe Gaultier e Maximilien Le Roy - que por sua vez é inspirada nos escritos de Victor Segalen, médico e poeta que procura o rasto deixado pelo pintor Paul Gauguin no seu refúgio no Taiti, no início do século XX. Dessa mesma busca emergem encontros com fantasmas e uma aura espectral do pintor, do homem e da controversa figura que foi, e que se mantêm, Gauguin

Este projeto coincidiu com um momento delicado na saúde do realizador, levando à requisição da co-realização pelo seu habitual montador, Paulo MilHomens — cada vez mais dedicado a terminar projetos de outros (veja-se também o caso de “Axilas”, o último termo de José Fonseca e Costa) -, numa espécie de coordenação à distância, e o que nasceu dessa colaboração foi um filme de múltiplas vozes e visões, deixando-nos a imaginar como seria caso mantivesse um só maestro. Contudo, mesmo afastando-se por vezes da estrada que lhe fora traçada, a obra acaba por abrigar na sua própria posição: não apenas a de reimaginar os “quadradinhos” de “Loin de la route», nem sequer de reproduzir os escritos de Segalen (aqui interpretado por Antoine de Foucauld), mas também de humanizar Gauguin — figura de mau agouro neste zeitgeist a que convivemos, numa espécie de imposição moral e cancelamentos por via de um cânone ainda por entender. 

O filme faz dessa passagem algo fantasmagórico na sua tese, mesmo subliminarmente implantado à beira-mar, nestes trópicos que oscilam entre a decadência de um império e a mistificação ainda sustentada por crenças de gerações e gerações. Funciona como registo histórico, modesto na sua produção, sem nunca ter o devido golpe de asa. Para Hugo Vieira da Silva, as melhoras. Continuamos interessados na sua nova aventura pelo passado colonialista, seja qual for o prisma.

Corpo de Celeste e sem Alma de Sorrentino

Hugo Gomes, 20.02.25

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O que gosta numa mulher? 

As costas, o resto é pornografia

Seguindo as suas artimanhas visio-sonoras, Paolo Sorrentino mapeia o corpo escultural de Celeste Dalla Porta como se fosse a geografia de uma cidade — precisamente a sua cidade-berço, à beira-mar. O mar, esse, inevitável primeiro contacto com a vida e também com a morte, condensando-se na tragédia desta jovem mulher, de frases prontas, mas cujos seus silêncios a deter uma outra dimensão.

Parthenope, nome que partilha com o antigo batismo de Nápoles, é um símbolo desse povo, sobre o qual recai a incumbência de carregar uma tristeza entranhada e corrosiva — um quê de existencialismo, outro de bovarismo, sem certezas absolutas, talvez na busca de um tempo perdido. Aquele em que a sua carruagem, oferenda de um oligarca que a "moça" apadrinhou, representava o seu idealizado mundo, luminoso e, sobretudo, belo. A beleza — a sua arte, a sua estratégia, o seu mistério, a sua tão proclamada "grande beleza" — numa tentativa de “matar dois coelhos numa cajadada só”: a demanda pelo que a vida ainda guarda a sete chaves e a réplica estética com que Sorrentino cita e recita o seu próprio êxito.

A "pilhagem", diria Pedro Mexia sempre que tivesse oportunidade de destilar o seu ódio sorrentiniano, muitos o seguirão nesse fel, sem dúvida, mas aqui não há saque aos tesouros alheios, apenas a exibição das velhas pratas da casa. Sorrentino conhece a lição de cor: os tons fellinianos, o circo montado, a alienação burguesa levada ao extremo. Não desbrava caminho nem sobe um degrau, apenas recolhe os restos da juventude de que tanto se queixa ter perdido.

Nápoles, sim, o canto onde Celeste "Diva" Portadiva ou divina, como quiserem — se entrega ao mistério, à fantasia e, sobretudo, ao líbido implantado nos homens ressabiados. Um simples toque traz consequências — a mão de Deus ou a fatalidade da ardência que desperta nos outros. E é dessa pulsão que nasce um enredo desfigurado, desorientado, cansado no seu misticismo pasoliniano de terceira rodagem.

Sorrentino é capaz de notas mais altas. Fala aqui um dos poucos defensores de “La Grande Bellezza" neste meio, até porque de Fellini se conhece e se vê retratado num distanciamento possível, mas em “Parthenope”, mesmo que por vias de sketches, concentra-se numa exatidão identificável: "Para onde vão as conversas das noites de bebedeira?", chora Gary Oldman, e choramos também nós ao perceber que o tempo não retrocede, não se entrega de mansinho, não nos estende a mão para uma segunda oportunidade — seja qual for — e que o ideal que projetamos de nós mesmos nunca se cumpre.

Cairá quem quiser. Talvez porque Sorrentino seja um homem de desejos masculinos e frustrações à medida, e porque aqueles que partilham essas inquietações se reveem nas suas dores, mesmo quando debitadas por uma protagonista — donna com título inquirido e olhos tristes a condizer. Um exibicionista ensaio com vida lá dentro — a vida maquilhada de Sorrentino —, mesmo que o velcro seja de uma pobreza franciscana perante a aristocracia das suas imagens. E já agora, Nápoles… viva Nápoles!

Quem quer vendar os cineastas de intervenção?

Hugo Gomes, 29.01.25

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Mohammad Rasoulof, O cineasta político iraniano? Hipocrisia, tendo em conta que o Irão fervilha nessa corrente de cineastas em inversão aos interesses do Estado. São vozes, maioritariamente silenciadas, que, para contornar a censura e as consequências agravosas, estabelecem pacto com a alegoria e a subtextualidade. Contudo, cada vez mais assertivos na mensagem. O Ocidente alimenta-se dessa fúria, emoldurando-os numa vaga de cinema iraniano difundido por festivais e escolas. Rasoulof lidera, sempre a pisar nos calos do sistema, essa provocação, esse ativismo urgente de punho mais do que cerrado e peito aberto às balas, conduzindo um cinema que não mata, mas, parafraseando o saudoso Raul Solnado, desmoraliza e muito a escadaria do Poder.

Talvez o crescente interesse sobre o realizador e a sua ascensão nesse estatuto de cineasta de intervenção se deva sobretudo ao anterior invicto Jafar Panahi, agora encostado ao meio rural, saboreando as suas parábolas de reinante obscuridade (“3 Faces”, “No Bears”). Porém, nessa linha, devemos salientar o nome de Ali Ahmadzadeh — cujo "Critical Zone" abocanhou o prémio principal de Locarno em 2023 —, e já apontado como um avançado na quebra de tabus estabelecidos.

Entre os filmes do momento, absorvido pela atenção ocidental, "The Seed of the Sacred Fig" insere-se na sua alegoria familiar. Laureado com o Prémio Especial do Júri em Cannes, enraíza-se no terreno fértil da indignação coletiva, solo nutrido pelos protestos desencadeados após a trágica morte de Mahsa Amini, em 2022 — jovem arrancada à vida pelas mãos da Polícia dos Costumes, numa punição que refletia o peso insuportável das normas do "hijab". Imagens amadoras e clandestinas dessa indignação intercalam a narrativa, induzindo um senso de zeitgeist que arrasta tanto espectadores como personagens para a atuação do contexto político-social.

Enquanto isso, no seio de uma família — não uma qualquer, mas a de um juiz do Tribunal Revolucionário de Teerão, recentemente promovido —, Iman (Misagh Zare) vê-se encurralado por um acontecimento “banal” e perturbador: o desaparecimento da sua arma — símbolo inequívoco do poder estatal — dentro de casa. Essa ausência, sombra corrosiva, ameaça não apenas a reputação profissional, mas também a estabilidade do lar. Na tentativa de resgatar o objeto perdido, Iman torna-se uma figura inquisidora, tensionando a relação com a esposa (Soheila Golestani) e as filhas (Mahsa Rostami e Setareh Maleki), estas últimas profundamente envolvidas no turbilhão das revoltas.

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É na pele da esposa que o filme adquire intenção. Não persuadir uma verdade, mas usar o seu estatuto de cônjuge, mãe e doméstica como ponto de partida para a alegoria, equiparável à Caverna de Platão. O primeiro choque com a realidade humana dá-se na sua descrença, plena confiança nos meios comunicacionais — a televisão, aqui instrumento propagandista estatal, alterador da verdade — e na função do marido, que vindo dele apenas e somente a “verdade inquestionável”. Neste papel de estabilizadora doméstica, insurge-se contra verdades e mentiras: manter a paz dentro das quatro paredes, mas a que custo? O filme avança através desse questionamento, dessa resistência, culminando na entrega e combate à Ordem estabelecida. Iman converte-se no catalisador bruto da ordem e da tradição opressora, e a arma, o macguffin simbólico, concentra o peso de um Poder destituído e a procura da sua restituição, num conflito silencioso desembocado num último ato de completa anarquia familiar. Mulheres unidas para derrotar a essência de uma ordem patriarcal encarnada num pai que se revela tirânico.

Esse jogo de tensões, elástico prestes a romper, culmina numa extraordinária potência imagética. As imagens, meticulosamente arquitetadas, transcendem o literal, insuflando um imaginário revolucionário que ecoa muito além da tela. A arma, a poeira, a mão hirta do defunto / derrotado — assim dito para evitar revelações excessivas — constroem uma gramática visual que é, simultaneamente, um statement e um grito abafado, e igualmente libertador. Uma observação de um regime sustentado não apenas pelos pilares do patriarcado, mas pelos véus densos de um fundamentalismo que tudo encobre.

No fim de contas, um thriller sem suavizações politizadas, um megafone que brada bem alto a sua mensagem, com direção ao Mundo, aproveitando a sua globalidade enquanto ainda pode, e nessa linguagem, como digamos universal, o cinema, as imagens, a suas causas-efeitos. O Ocidente aplaude, premeia, Rasoulof arriscou o pescoço... mais uma vez, no seu gesto mais gritante desde o clandestino "Manuscript Don’t Burn" (por cá, apenas exibido no encerramento de uma edição do Doclisboa). A sua estirpe como realizador da revolução ainda está por vir, mas, por agora (e ainda), é apenas um fazedor de cinema como ato de resistência.

O encontro da ficção com o documentário ... ou será o oposto?

Hugo Gomes, 07.01.25

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Não é a primeira vez (nem sequer a segunda) que o cineasta cambojano Rithy Panh se aventura nas densas “florestas” da ficção, mas será legítimo questionar se é realmente ficção de que estamos para aqui a falar? Em termos estruturais, formais ou até mesmo semióticos, “Rendez-vous avec Pol Pot" é uma ficção nessa lógica de mercado ou do tratamento narrativo, mas é por via dessa encenação (chamaremos assim para o representar adequadamente) que o realizador recita a sua longa “tese” documental.

A trama segue a chegada de três jornalistas franceses (Iréne Jacob, Grégoire Colin e Cyril Gueï) à Kampuchea Democrática, em 1978, a convite de Pol Pot, líder do Khmer Vermelho faz-se com a mesma precisão que o género documental inteiramente instalado, conectar-se com uma vivência nunca escondida do realizador, da sua intenção com a verdade que tão bem conhece e as vozes silenciadas o qual incentiva a berrar para “romper” os seus cativeiros memorialistas. É nessa bravura que se enverga por terrenos conhecidos, temas comuns, Panh como o Panh que de tão familiarizados estamos. 

O filme narra essa jornada desde a cena inicial, em que os jornalistas estrangeiros esperam numa pista de aterragem desolada — rotas-fantasmas, por assim dizer — pela “comitiva de boas-vindas”, carregados de suspeitas no goto. Mais tarde, diante de um teatro de políticas encenadas “para francês ver”, de aldeias artificialmente compostas e quintas utópicas, tudo serve para reforçar a ilusão de uma realidade idealizada. Contudo, um desses visitantes (não tão convidativos, comenta-se à parte), um fotógrafo de câmara em punho (Gueï), atravessa os limites do permitido. Ao chegar ao ponto mais distante e próximo da fantasia vermelha, num clique, capta uma realidade antípoda, a sombra emitida por detrás da fachada. O filme não faz uso dessa mesma representação, substitui a ficção por outros efeitos, sejam imagens de registo, horrores arquivados, seja pela igualmente reconhecida maquete “panhiana”, a tal “imagem que falta”, irreproduzível, despida da sua forma mas nunca do seu significado, os atores viram bonecos, os cenários viram simulações, a ideia resiste à imposição de uma estética farsesca, mas nunca a falsidade das declarações.

Retornamos, então, à pista vazia, não à "imagem inicial", mas à sua réplica-ideia de agressiva solidão. Quando finalmente a entrevista acontece, de maneira intermitente e sempre adiada, o vazio empático permanece. O diálogo é irregular, inatingível e incomunicável. Pol Pot (cuja voz é do próprio Rithy Panh) fala para si mesmo, enquanto os tradutores transmitem as palavras já moldadas pela máquina ideológica. No encontro mais íntimo, entre o ditador e o seu 'pen pal' equivocado (Colin), a conversa embica violentamente, a unilateralidade domina e as convicções inabaláveis de um homem trancado nas suas próprias ideias sufocam o espaço e reforçam o medo que este Poder moralmente corruptivo impõe.

“Rendez-vous avec Pol Pot" é um objeto fantasmagórico que, como os melhores filmes políticos contemporâneos, transforma o passado numa história do presente. Pol Pot foi um ditador de fantasias, e este mundo que ele criou foi moldado pelas suas ambições desmedidas. Hoje, sem mencionar nomes, não é difícil encontrar quem deseja criar a sua soberania com ou sem convicções. 

Quanto à sua essência, Rithy Panh preserva um outro poder, o da imagem, também ela, com ou sem convicção.

Living Room

Hugo Gomes, 11.12.24

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Robert Zemeckis nunca desiste em colocar a tecnologia e os seus experimentos ao serviço da narrativa, mesmo que tais façanhas lhe tragam um dissabor financeiro, mesmo assim o sistema ainda se aposta nele nesta corrida entre estúdios e o alcance das bilheteiras. Comecemos então com o seu novo projeto - “Here” - com base na excepcional graphic novel do artista Richard McGuire (editado em Portugal pela Cavalo de Ferro), obra que posiciona-se num só espaço, um canto que atravessa a pré-história até a uma América ante-colonizada, virando uma sala de estar, a “living room” que o inglês tão bem se adequa. 

A narrativa parece estagnar nesses saltos formidáveis entre tempos e prossegue na história de uma família, indicando três gerações, e como já devem ter entendido se mantém rígidos na sua assoalhada. Zemeckis acaba por adaptar fielmente esse estilo dos “quadradinhos”, concretizando um plano fixo prolongado no qual a decora por via de uma estética de conversão e transposição tecnológica, há um artifício notável e notado que desliza ocasionalmente para o seu quê de artificial. Dessa feita são os dinossauros e a sua iminente extinção a abrir o pano do espectáculo, seguindo pelos nativos norte-americanos numa espécie de romance intemporal, dando a vez a uma Guerra Civil para dar um aroma específico de tragédia familiar e o final do século XIX com a aviação enquanto sinal de progresso. 

“O futuro é o único caminho a seguir”, declara o aspirante a aviador perante a sua esposa desconsolada com a moradia que irão adquirir em conjunto, o filme, por outro lado passeia por esse futuro, contornando, recuando, e incentivando, diminuindo a cadência temporal nas proximidades da nossa contemporaneidade. A narrativa estilhaçada, com pontas geracionais a dialogar com o próximo, indicam a criatividade visual de Zemeckis em apresentar o seu storytelling consoante as regras estabelecidas do tal “plano fixo”, funcionando num teatro de exercícios e virtuosismos. Depois, Zemeckis não deixaria de ser Zemeckis se não existisse esse “bicho carpinteiro” com a tecnologia e as suas possibilidades, Tom Hanks e Robin Wright, o “casal maravilha” de “Forrest Gump” (1994), são as cobaias desse de-aging e aging, da adolescência à velhice, ao serviço de uma fidelidade com os maneirismos e a carne, mesmo que ela nos apresenta em jeito de ”bonecos de cera”. 

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É o problema destas tecnologias, e o IA prestes a integrar o cardápio dos técnicos, o de nunca transmitir uma verdadeira textura, carnalidade e dimensão, a quem chame facilitismo, neste caso é pura carolice. Porém, não cede ao espalhafato digital porque Zemeckis é um artesão dramático de uma já considerada “velha guarda” em Hollywood, conseguido captar em cada quadro uma carga emocional, como também uma tese submersa ao longo deste joint - somos nada neste universo, indo contra a própria regência da produção. Momentos zeitgeist ali e acolá: George Floyd e o COVID a serem invocados com uma subtileza de génio em historietas anexas, e uma rigidez formal neste metamorfoseado “plano fixo” a revelar o detalhe da sua arquitetura dramatúrgica. 

Ficamos felizes com o exercício e a sua ginástica, só que o truque é revelado naquele final consolidador, um travelling mais que spielbergueano a desmascarar a sua sobriedade formal. Robert Zemeckis, o eterno comparsa de Spielberg, cita como sempre citou uma incidência quase capriana, aqui, por exemplo, Tom Hanks a ser uma espécie de George Bailey sem anjos da guarda para o interceder. 

Vá … confessemos, este é um dos melhores Zemeckis em muito tempo, mesmo com a sua rigidez e performance tecnológica. 

Os mortos entre nós

Hugo Gomes, 07.12.24

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O ‘almodrama’, que, segundo consta, é um termo cunhado por Caetano Veloso (ouviu eu de um colega carioca; ficou, como se entranhou), é uma receita confortável como canja para os tempos cinzentos e frios. Só que as cores a consolidar as estações o tingem, desviam-no para lá do cinzentismo. É Almodóvar cheio de si e pronto para conquistar a América em ponto grande… “El Conquistador”… Havia ‘bicado’ aqui e ali, com Jean Cocteau trinchado em tela (primeiro contacto com o inglês) ou o western de passados e de feridas reencontradas (Almeria, como sempre, sonha a Oeste). Aliás, (re)encontro será sempre a palavra de ordem do seu cinema. Agora, prossegue para Nova Iorque, dá duas voltas e sai em direção à periferia, depara-se com o silvestre outonal (signo tão nova-iorquino!), refugia-se e reflete sobre a morte.

Pelo meio, existem alguns apontamentos sobre a América que visita. Para que ela é, serve ou como se constrói? Junta-se o pessimismo, um tom fatalista para salgar e voilá: é o Pedro a ser Pedro, não mudou, a receita mantém-se, apenas seguiu de viagem. “The Room Next Door” é Almodóvar, e Almodóvar se mantém até à última estância: um filme sobre a morte, como lidá-la, como encará-la, como dignificá-la. Com Tilda Swinton, atriz camaleónica ao toque almodovariano, do estético à extravagância, do pastiche ao plastificado, ela é a lide perfeita desta imigração fílmica. Julianne Moore, por outro lado, impecável como sempre, é os nossos olhos, a nossa perceção enquanto espectador que espera, que anseia pelo final marcado a ferro e fogo desde o primeiro pedido.

Swinton quer morrer; a vida, para ela, não possui continuação. Solicita à sua velha amiga um trato, um retiro, convida-a a aguardar até a porta do quarto se fechar — código entre amigas para o derradeiro desfecho. Há uns flashbacks ‘sacados’ para distorcer o certinho da narrativa económica, nada de espantoso no cinema de Almodóvar, já estamos habituados. E depois o tal (re)encontro, como toque de hortelã à tão confortável ‘canjinha’. John Turturro abana os braços, alertando sem especialidade para o Apocalipse, como também para o desvairo moral deste mundo mais umbiguista (Oliveira já se prestava a esse individualismo egoísta em “Mon Cas”, 1986). O ócio reina. Almodóvar, através da pele das atrizes, deleita-se por prateleiras de livrarias de bairro, a salas de cinema sem malefícios de multiplex, explora Airbnb com coleções de DVDs — filmes requintados até, com “The Dead” de John Huston a ser a quadra espectral de um último suspiro.

The Room Next Door” é um Almodóvar em língua de Shakespeare, mas não é um Almodóvar aprisionado nem exportado, apenas vivo no seu já característico melodrama. Vivo? Sim, mesmo que a Morte puxe os seus lençóis e se aconchegue para um prometido descanso eterno. 

Snow is falling. Falling in that lonely churchyard where Michael Furey lies buried. Falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living, and the dead." The Dead (John Huston, 1987)

O Livro das Imagens

Hugo Gomes, 05.12.24

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C'est pas moi (Leos Carax, 2024)

Preciso de descarregar… deixem-me lançar o pedregulho ao charco antes que seja tarde demais … eis o “Livro das Imagens” que Godard nunca conseguiu fazer! Agora sim, podem arrancar cabelos “godardianos”, acusar Carax de ser um enfant terrible, um trapaceiro imitador que se encosta à sombra de Jean-Luc para o sugar numa (des)pretensiosa autobiografia. Ou, por outro lado, podem procurar-me, ameaçar-me, ou declarar-me morto no oitavo círculo da cinefilia. Quem sou eu para vos persuadir de tal realidade? Aquela que, através dos meus olhos, encontra em Carax o que Godard não alcançou nas suas últimas voltas neste espaço terreno chamado Vida: a humildade perante a mortalidade. Não é preciso responder a Joan Crawford em "Johnny Guitar” (Nicholas Ray, 1954) para esvaziar o cinema da sua arte ilusória, onde cada filme é um truque de ilusionismo com segundas intenções. Carax não se coloca no intuito de sobrepor-se a esses trabalhos, a essas histórias, ou a essas cinefilias com um ar de absoluto eruditismo.

O cineasta de "Les Amants du Pont-Neuf" (1991) responde para lá do Cinema à pergunta implícita pelo Museu Pompidou: “Por onde anda?”. E, por sua vez, dirige-se ao seu próprio “eu”, numa tentativa de encontrar uma resposta definitiva nos leitos de um filme-testamento. Talvez seja de um encontro com Godard, do qual o realizador não é definitivo quanto a essa certeza, mas a intenção da reunião é clara ao longo do filme: manejar as imagens, despi-las, recentrá-las na sua reflexão ou colecionar a parafernália que as acompanha — uma fórmula profundamente godardiana.

Carax sente o tédio nas veias e, tal como o pombo de Roy Andersson, decidiu “pousar no ramo e reflectir sobre a sua existência”. Sobre o que significa e como se recoloca neste Mundo … e que Mundo, de facto! “C'est pas moi”, como o título jocosamente sugere, soa como a inversão do cliché da ruptura amorosa: “Não és tu, sou eu”. Aqui, porém, é: “Não sou eu, és tu”. E quem é esse “tu”? O Mundo? Talvez. Porque, desta existência, o Mundo ferve… fervilha em ódio de várias colorações políticas, atravessando épocas e bailes. Putin, Trump, Netanyahu (“Porquê ele?”, pergunta um membro da plateia. “Porque não?”, responde Carax do outro lado da sala perante o público do festival), e, obviamente, Hitler. Os agentes do caos, os semeadores do ódio e dos odiáveis, e, nesse quadro, cabe também a vítima, Roman Polanski, sobrevivente do Holocausto, que por sua vez se converte no que sempre fugira: um homem de ódio. Será o ódio parte da nossa natureza humana?

Ao longo de 40 anos de carreira, Leos Carax autobiografa as imagens da sua autoria — de “Mauvais Sang” (1986) a Annette (2021), passando por “Pola X” (1999) e “Holy Motors (2012). Denis Lavant, o seu guia espiritual, permanece presente como o autêntico Monsieur Merde, que dialoga com a loucura enquanto solução para a sanidade e progressão humanas. Por via dessa retrospectiva, satura-se, a televisão é o símbolo desse excesso imagético, a mão do autor promovido a sombra perante o ruído branco transmitido pelo pequeno ecrã, Godard tinha postura idêntica [“Prénom Carmen”, 1983], um abraço à ferramenta frente do seu tempo, hoje, o televisivo, como a estagnação do mesmo. A televisão foi só o paciente zero, o Cinema virou o sintoma seguinte, a sua banalidade, a corrói, revira as suas entranhas e estabelece um fio condutor da própria imbecilidade.

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C'est pas moi (Leos Carax, 2024)

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Prénom Carmen (Jean-Luc Godard,1983)

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Prénom Carmen (Jean-Luc Godard,1983)

Carax não aponta directamente aos agressores do Cinema, mas está implícito quem são, onde estão, e para onde vão. Marvel não ficará com a culpa toda, mas detém parte desse cartório. extraviaram desse propósito, são apenas umas, e muitas, para tal segue-se às origens, a Eadweard Muybridge, ao cavalo em 12 fotogramas, e corta-se para Lavant correndo feito louco na bravura de “Modern Love” de David Bowie em 24 frames por segundo. Por mais punk e moderno que seja, Carax liga-se diretamente à génese das imagens em movimento. Num mundo de ecrãs cada vez menores, clama-se por um olhar puro, o Olhar de Deus: aquele que observa a vida, o movimento e as mulheres com devoção, acompanhado por “Sunrise de F. W. Murnau (1927), mais um clássico para sobressair essa ideia de pureza em período de hibridez.

Carax declara amor ao plano subjetivo. A nuca de Kim Novak na lente de Jimmy Stewart [“Vertigo", 1958] é a deusa encantatória que o realizador confessa nunca ter conseguido reproduzir: “Nunca fiz um plano subjetivo nos meus filmes…” e continuando nessa jura amorosa, conforma-se com o intitulado “plano déjà vu”. Mas onde fica o coração? O eventual aforismo tem uma contradição, o único dos seus planos subjetivos … e que plano? Porque o único plano subjetivo de Carax… que plano! Em “Mauvais Sang, o rosto angelical de Juliette Binoche aproxima-se lentamente. Cada traço daquela face — os olhos, o nariz, os lábios, o sinalzinho, a pele brilhante — convida-nos à contemplação. Ali, vemos Deus! Ou melhor, olhamos para ele com os tão procurados Olhos de Deus. Mas ainda não acabou. A viagem oferece um brinde: a pequena Annette, que corre — ou melhor, voa — como rima à corrida de Denis Lavant ao som de “Modern Love”, assistida pelos seus kurokos (manipuladores de marionetas no teatro Bunraku). Esta é a imagem que persiste.

“C'est pas moi” são 40 minutos de imagens, sejam retalhados, sejam de origem, em colisão com as imagens banais do nosso redor, prescreve-se como um antídoto mas não se assume totalmente essa responsabilidade supra. Carax, por mais identificável que seja essa ‘viagem’, ele não fala para nós, e notamos isso, porque ao longo destes 40 minutos, a sua voz dita cavernosa aborda uma espécie de auto-psicanálise, há nele o pairar de uma presença paternal, de um “pai ausente” porventura. “O cinema é o lugar dos pais mortos”, da autoria de Serge Daney, e para Carax, o seu fantasma … um pouco banal até. Mas quem não o é nos dias de hoje?

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Horse in Motion (Eadweard Muybridge, 1878)

Mauvais Sang (Leos Carax, 1986)

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Annette (Leos Carax, 2021)

O sonho americano quer-se dorido

Hugo Gomes, 28.11.24

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Is it the end of the world?

É inevitável! Perante um novo western, o florescimento do debate sobre o estado do género, quase como se engavetássemos um género tão bem americano em caixões destinados a diferentes velórios. Ora, se é verdade que a desconstrução soa como destino trágico, é através desse processo que o western ressuscita momentaneamente, apenas para morrer novamente, como um Lazarus pouco ou nada milagroso. No entanto, “os mortos não magoam”, aproveitando a deixa deste título - “The Dead Don’t Hurt” - segunda obra filmada por Viggo Mortensen virado realizador, ou como deseja ser autor, virando-se para o western numa paisagem mais ampla após os espinhosos cercos da sua aproximação paternal (“Falling, 2020).

Aqui, responsável pelo argumento (e da banda sonora!), o ator também é co-protagonista, interpretando um carpinteiro dinamarquês em busca do sonho americano ao lado da também "estrangeira", Vicky Krieps. Casal improvável e mortiço, cita de cor as promessas da Terra das Oportunidades, agarrando-se às suas leituras românticas: “um amor e uma cabana”, parecer ser o jeito de se desenvencilhar no Faroeste americano. Contudo, perante esta América imponente e exigente, a personagem de Mortensen decide responder com gratidão, oferecendo o seu corpo a um Estado ainda em formação: alista-se no Exército da União para combater na Guerra Civil. Decisão que deixará a personagem de Krieps sozinha, à mercê dos espinhos que esse deserto esconde.

Após um início promissor, com enquadramentos virtuosos e uma câmara sólida, embora contida no academismo, “The Dead Don’t Hurt" acaba por não trazer nada de novo ao modelo de western no século XXI. Não é uma desconstrução, mesmo que a personagem de Krieps pareça, a espaços, dar ares de tratado feminino. Mas a declaração se perde pela narrativa intercalada e temporalmente salta-pocinhas, e uma vingança que não é mais do que um “prato de papas de aveia” a servir de “grand final”. O resultado é tão árido quanto os cenários que a história atravessa.

Nesse sentido, “The Old Way” (Brett Donowho, 2023), um semi-direct-to-video protagonizado por Nicolas Cage como um cavaleiro diabólico, conseguiu, de forma mais modesta e menos pretensiosa, honrar o western enquanto género estagnado, desafiando-o num derradeiro duelo ao pôr-do-sol.

Billy Woodberry: "Mário estava consciente de que provavelmente nunca escreveria uma autobiografia"

Hugo Gomes, 27.11.24

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Mário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Mário Pinto de Andrade (1928 - 1990): poeta, ensaísta, político e fundador do MPLA [Movimento Popular pela Libertação de Angola], uma figura de pegada incisiva no século XX, que em Portugal pouco (ou nada) o referimos pelo seu nome. Porquê? Razões ainda por apurar, apesar das teorias, das especulações ou das certezas captadas numa sociedade de traumas e histórias confinadas a alçapões, contudo, é através da curiosidade mórbida de um americano que este homem das mil artes e das mil línguas se posiciona em frente ao holofote. 

Mário”, simplesmente, é a mais recente obra de Billy Woodberry - uma das peças centrais do movimento L.A. Rebellion (o qual fizeram parte Charles Burnett, Zeinabu Irene Davis ou Larry Clark) - que explora o seu percurso e o pensamento que influenciou os mais diferentes estandartes culturais pan-africanos, conduzindo-se por imagens e filmagens de arquivo, colheita de trabalhos seus e um incessante encontro às suas demandas politizadas, dos amigos a inimigos, família a amores, até dar de caras com a morte. A vida de um homem, sem hagiografias, mas com a dignidade declarada. No final da sessão, e mesmo não entendendo o seu apagamento, um “bichinho carpinteiro” e curioso anseia por mais e mais sobre Mário Pinto de Andrade. Woodberry apenas o despertou.

O Cinematograficamente Falando … falou com o realizador sobre Mário’, o filme, o homem, a sua (não)presença na memória de Portugal e ainda sobre fotografia e as suas possibilidades de cinema.    

Começo por lhe questionar sobre qual foi o seu primeiro contacto com o trabalho de Mário Pinto de Andrade?

O primeiro contacto foi, na verdade, através de um artigo que o próprio escreveu, publicado em inglês em Havana [Cuba]. Era um texto sobre cultura e movimentos de libertação nacional e nele, sobre a importância do Brasil e da cultura brasileira, particularmente a literatura, para um país como Angola, ou outro canto na África. Destacava como essa cultura literária ajudava a entender e a refletir sobre a modernidade, oferecendo um exemplo que, de certa forma, lhes parecia próximo.

A importância da literatura brasileira era significativa porque apresentava protagonistas descendentes de africanos, apesar de ter mudado ao longo do tempo, este universo literário sempre contou com escritores críticos e relevantes para o pensamento, eram de facto uma inspiração. Na altura em que li o artigo, já me encontrava profundamente fascinado e envolvido com o movimento brasileiro chamado Cinema Novo, o que me conduziu a descobrir a literatura e a cultura do Brasil. Esse contacto obteve impacto para mim porque funcionava como um exemplo alternativo, uma outra possibilidade. O Brasil, com uma população negra notada, mostrava nos seus filmes uma forma diferente, mais emocionante e interessante, de fazer cinema. Ver aqueles protagonistas negros no ecrã foi muito marcante e emocionante.

A partir daí, comecei a ler mais livros, conheci pessoas e mergulhei nos romances. Ao mesmo tempo, tive também a oportunidade de aprender mais sobre a história em cursos académicos. Quando ele [Pinto de Andrade] fez essa ligação entre a cultura brasileira e os movimentos de libertação, coincidiu com o que aquilo que estava a estudar e a refletir. Isso foi fascinante. A sua presença ativa em muitos movimentos de libertação nacional na África lusófona é indiscutível, estes surgiram após a primeira onda de independências africanas nos anos 50 e 60 e traçavam um caminho diferente, com uma consciência e uma reflexão sobre o que tinha acontecido noutras partes de África. Aprenderam com essas experiências e pareciam desenhar um percurso que integrava as lições do passado.

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Billy Woodberry

Essa abordagem foi crucial para mim e para a minha geração, que pensava sobre África de forma intensa. Mas o desafio era: qual África estávamos a imaginar? Seria a África do mito? A África lendária do período pré-colonial? Ou as versões que conhecíamos dessa África? No meu caso, interessava-me sobretudo o presente e o que estava a acontecer, embora também tivesse curiosidade pela história.

África não era algo alheio ao nosso interesse. Inspirávamo-nos em exemplos para criar um novo tipo de cinema. Nessa procura, tivemos referências como o cineasta senegalês Ousmane Sembène, que porque mantinha uma relação próxima com os militantes e ativistas das antigas colónias portuguesas em África. No filme, vemos fotos de Mário em vários lugares — na China, em Roma —, sempre ao lado dessas figuras, incluindo Sembène. Essa ligação também era muito significativa para se entender a sua aura política e artística.

Além disso, conhecíamos os filmes de Sarah Maldoror, em especial “Sambizanga”, tendo causado um grande impacto quando foi lançado em 1972. Foi uma obra inspiradora. Levou-nos a ler a tradução do livro que serviu de base, o que só reforçou essa influência inicial.

Esse foi o meu primeiro contacto com tudo isso, o tal ponto de partida.

De forma semelhante, o uso da história do Mário permite contar uma história do pensamento em África, dos movimentos, movimentos artísticos e políticos. Então, gostaria de ligar isto a outra pergunta, talvez usando as suas palavras, porque ao ver o seu filme, perguntei-me: por que é que em Portugal não falamos muito (ou quase nada) sobre o Mário? E, como se vê no seu filme, ele é uma figura presente nesses movimentos políticos e culturais.

Sim, concordo plenamente. De facto, é curioso debruçar esse “esquecimento”. Talvez tenha a ver com a forma como o conhecimento sobre este período, sobre este aspecto da história de Portugal e do colonialismo, é transmitido. Pode ser uma questão relacionada com a maneira como a história é contada. É possível que existam lacunas, embora haja pessoas em Portugal com um conhecimento profundo sobre o tema e sobre Mário. No entanto, talvez não sejam assim tantas, e talvez este assunto não esteja no centro do currículo escolar ou das preocupações atuais, por várias razões. Afinal, trata-se de um passado que remonta a 50, 70 anos ou mais, e isso pode contribuir para esse afastamento.

Mas devo dizer que muito do material que encontrei e usei no filme está em Portugal. Por exemplo, existe uma entrevista feita pela RTP em 1985 ou 1986, conduzida por Diana Andringa, que é uma fonte inestimável, uma longa entrevista em que Mário aborda muitos aspectos da sua vida e do seu pensamento. Além disso, há uma entrevista em livro com Michel Laban, um académico literário francês, publicada após a morte de Mário. É um documento extenso e detalhado que também foi muito importante.

Outro exemplo: encontrei cerca de 20 horas de material sobre a Guerra Colonial. Esse arquivo é valioso porque foi produzido na RTP e inclui entrevistas com pessoas de todos os lados do conflito — tanto portugueses como membros dos vários movimentos de libertação. Para Angola, por exemplo, encontramos entrevistas com representantes dos três principais movimentos de libertação. Também há material sobre Moçambique, o PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde] e outros. Este arquivo está organizado por períodos e por marcos importantes na evolução da guerra, desde o início até à cessação do conflito. A certa altura, esse material foi distribuído como parte de uma coleção ligada a um dos jornais, com 14 volumes ou algo do género, que podiam ser colecionados.

mario (1).jpegMário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Além disso, os arquivos de Mário estão em Portugal. O mesmo acontece com os arquivos de Amílcar Cabral, de Marcelino dos Santos e de outras figuras importantes, que estão preservados em instituições como a Fundação Mário Soares e Maria Barroso.

Nos museus históricos, também existe muita informação, se não diretamente sobre este período específico, pelo menos sobre a história do Ultramar como um todo. Portanto, o material existe e está acessível. O que pode estar a faltar é o seu destaque no imaginário coletivo ou no debate público atual.

E acredita que essa distância dos portugueses aos arquivos e à sua história colonial, detém algo de político?

Talvez haja um componente político nessa questão. Tenho ouvido algumas coisas e, claro, devo ser cuidadoso, porque sou estrangeiro e tive a sorte de passar a viver aqui. Mas ouvi pessoas dizerem que isso pode estar ligado a um trauma — termo que, reconheço, é muitas vezes usado em demasia. Pode ser o trauma persistente do fim da era colonial e da perda associada a esse período. Para alguns, foi uma perda; para outros, um ganho, e talvez isso ainda não tenha sido totalmente processado ou amplamente discutido e conhecido. Pode ser essa a razão, mas não tenho certeza.

Nos Estados Unidos, por exemplo, não sei se seria muito diferente. Temos muitos documentários e obras audiovisuais sobre o Vietname. Há cerca de cinco anos, foi feito um grande documentário sobre o tema. Existe um certo distanciamento no tempo, mas também não sei se estes assuntos são fáceis de divulgar de forma ampla, há sempre disputas sobre como interpretar essas questões. Nos Estados Unidos, frequentemente esquecemos que há uma espécie de amnésia voluntária em relação a certos tópicos - aqui, não posso dizer que sei como as coisas são, mas já ouvi pessoas comentarem: “Ah, isso não é ensinado nas escolas.

A educação, claro, é influenciada por diferentes correntes de pensamento que tentam definir o que é mais importante ensinar aos cidadãos, às crianças, aos jovens no ensino secundário e superior. No nível universitário, há investigadores excelentes nesta área. Há também jornalistas e figuras como Diana Andringa, que dedicaram a vida a escrever, pensar e partilhar reflexões sobre esses temas. Acho que Portugal tem um serviço público de televisão notável, o Canal 2 [RTP 2], por exemplo, é um dos melhores do mundo no que diz respeito à oferta cultural. Fazem um grande esforço para trazer questões importantes ao público e estimular a reflexão.

Talvez, no passado, tenha havido uma necessidade inicial de debater sobre esses temas, mas com o tempo isso foi desaparecendo, à medida que surgiam novos desafios. Construir uma sociedade diferente, integrar-se na União Europeia, fomentar a democracia, expandir o acesso à educação — tudo isso traz novas prioridades.

Não digo isto de forma leviana, mas devemos sempre questionar porquê que as pessoas não sabem? Talvez, no futuro, as populações afrodescendentes em Portugal sintam mais curiosidade sobre estas histórias e figuras como Mário e queiram aprender e partilhar esse conhecimento. Isso pode ser uma fonte de renovação, um caminho para recuperar e valorizar essa memória.

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Mário Pinto de Andrade e Sarah Maldoror / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Demorou quatro anos para produzir este filme. Gostaria que me falasse sobre a angariação de material, a sua seleção, edição e a construção de uma estrutura narrativa que respeitasse o pensamento e vida de Mário?

Tive a sorte de contar com a colaboração de Teresa Gusmão, minha colega e produtora associada do filme, que esteve ao meu lado praticamente durante todo o processo. Desde o início, quando começámos a reunir o material, até às etapas de pesquisa contínua, esteve sempre presente. Queríamos conhecer profundamente os arquivos disponíveis, entender o seu conteúdo. Com o tempo, começámos a estruturar uma ideia, um esboço de guião, uma linha narrativa: sabíamos o ponto de partida e o ponto final — os 60 anos da vida de Mário.

A partir daí, precisávamos aprender o máximo possível sobre a cronologia dos acontecimentos e identificar os eventos e elementos significativos que poderíamos incluir no filme. Quando chegou a fase de edição, já tínhamos reunido uma quantidade imensa de material de várias fontes: material de arquivo, gravações, documentos relacionados com a história de Mário, as suas conexões, viagens, envolvimento político e cultural.

Entre os materiais descobertos, estavam gravações de entrevistas que ele fez ao longo dos anos. Uma delas, de 1982, foi conduzida pela socióloga francesa Christine Messiant, em Paris. Outra, do final dos anos 80, foi realizada por Michel Laban, que resultou no livro-entrevista publicado postumamente. E, claro, a entrevista feita por Diana Andringa, que sabíamos existir mas que, inicialmente, apenas conhecíamos através de algumas imagens transmitidas na televisão.

Desde o início, pretendia que a voz de Mário estivesse presente no filme. Por isso, focámo-nos nestas três fontes. Tanto Christine Messiant como Michel Laban já tinham falecido, e os seus arquivos foram transferidos para a Fundação Mário Soares, esperando-se, eventualmente, que fossem para Angola. Quando soubemos que estavam na Fundação, tivemos de aguardar autorização para aceder às gravações e fazer cópias digitais, o que conseguimos. Infelizmente, outra gravação feita nos Estados Unidos nunca nos foi disponibilizada. Quanto à entrevista de Diana Andringa, conseguimos acesso ao material completo apenas mais tarde, mas foi extremamente valioso.

Cada uma dessas entrevistas trouxe contribuições únicas. A de Christine Messiant, por exemplo, concentra-se sobretudo nas origens políticas do MPLA, cobrindo o período até 1962. Já a de Michel Laban abrange um arco temporal maior, refletindo sobre a vida familiar de Mário — a relação com os pais, a casa onde cresceu —, mas também sobre o seu desenvolvimento literário, intelectual e político, além das dinâmicas da sua geração em Angola e em Lisboa. Esta entrevista é notável porque Mário estava consciente de que provavelmente nunca escreveria uma autobiografia, por isso, preparou-se meticulosamente para as conversas, com o objetivo de ser-se preciso e rigoroso, oferecendo um relato considerado dos eventos e do seu significado.

Ao integrar essas fontes com o material que Diana Andringa produziu, começámos a delinear a estrutura do filme. No entanto, mesmo com tantas informações, não era possível incluir tudo. Tivemos de tomar decisões cuidadosas sobre o que contar, o que omitir e como articular os eventos para que fizessem sentido dentro do conjunto.

Trabalhei com o editor Luís Nunes, com quem já colaborei em quatro filmes anteriores. Ele é fantástico e tem um conhecimento profundo dos diversos arquivos, pois já trabalhou com realizadores como Manuel Mozos e produziu filmes sobre figuras como João Bénard da Costa. O trabalho com Luís foi essencial para reconstruirmos a narrativa e criarmos uma obra coesa. No final, foi um processo de intenso pensamento, pesquisa e escolhas, mas acredito que conseguimos transmitir o essencial da história de Mário e da sua relevância. Já agora, conhece o trabalho de Manuel Mozos?

mario (3).jpegMário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Sim, conheço e, principalmente, o filme que refere: “Outros Amarão as Coisas Que Eu Amei”.

Voltando … Luís tem sido incrivelmente útil, tem um olhar muito apurado e uma experiência vasta com arquivos.

Durante o processo, surgiam momentos em que identificávamos algo que queríamos incluir. Por exemplo, havia uma passagem em que Mário viajava de comboio para ver a mãe. Queria mostrar essa viagem, mas só tínhamos uma única fotografia do comboio — e era uma imagem miserável. Sabíamos que precisávamos encontrar algo melhor, algo que captasse de forma mais eficaz essa ideia no cinema. E foi assim ao longo de todo o trabalho: procurar o melhor material e pensar na melhor forma de transmitir uma ideia de forma cinematográfica.

Foi um processo que exigiu muito tempo e paciência. Houve períodos em que não podíamos filmar ou em que ainda não tínhamos o financiamento necessário para avançar em certas partes. Então, usávamos esse tempo para aprofundar ou refinar a pesquisa, sempre tentando descobrir algo que pudesse enriquecer o filme. Foi um esforço contínuo, mas nunca cansativo para mim. Pelo contrário, acho fascinante.

O desafio maior foi transformar todo esse material e essas ideias em algo coerente, algo que fizesse sentido enquanto filme, como tal exigiu muita dedicação, mas também foi extremamente recompensador.

Vejo que trabalha muitas vezes com arquivos e fotografias, e isso tem-se verificado cada vez mais nos seus últimos projetos. Diria mesmo que tem sido uma abordagem muito distante em relação, por exemplo, ao seu primeiro filme, a ficção “Bless Their Little Hearts” (1983). Sente-se fascinado pelas possibilidades que uma fotografia pode oferecer ao cinema?

Talvez seja porque comecei a explorar isso mais tarde. No início, fazia algumas fotografias e slideshows, mas não pensava exatamente em cinema. Talvez estivesse lá no meu horizonte, mas ainda não estava a concretizá-lo, era mais uma questão de ter um texto, normalmente não meu, sobre um tema histórico, e de forma obsessiva procurava fotografias que, de alguma maneira, dialogassem com esse texto.  

Foi só depois, ao falar sobre esses começos com alguém há cerca de um mês, que percebi que as pessoas viam nisso algo cinematográfico. Diziam que tinha a ver com a forma como as imagens trabalhavam umas com as outras. Esse processo aconteceu antes de entrar na escola de cinema, mas não o tinha reconhecido como tal na altura.  

Quando comecei a trabalhar com imagens em movimento, a fazer ficção e coisas do género, não pensava em fotografias, nem em imagens individuais. Essa relação com a fotografia veio mais tarde, sobretudo quando comecei a ensinar. Dei aulas num programa de fotografia numa escola de arte, e isso ajudou-me a aprender muito mais sobre fotografia, graças a fotógrafos, escritores e até aos meus próprios alunos. Foi aí que comecei a valorizar realmente a fotografia.  

Também fui influenciado por cineastas como Hartmut Bitomsky e fotógrafos e escritores como Allan Sekula, o qual fizeram-me pensar de forma mais aprofundada sobre a fotografia, e talvez isso tenha aberto mais possibilidades para mim.  

No meu filme “And When I Die I Won’t Stay Dead” (2015, sobre o poeta e ativista Bob Kaufman), não havia tantas imagens em movimento do tema, foi um processo de aprendizagem. Sabia que, nos anos 1950 em São Francisco, havia muitos fotógrafos talentosos, e isso também se devia ao facto de, naquela época, ser mais provável alguém ter uma câmara fotográfica SLR [single-lens reflex] do que uma câmara de filmar.  

Felizmente, encontrei imagens de filmes, mas as fotografias ainda eram predominantes. Conhecia um livro de fotografias publicado por um deles, Jerry Stoll, chamado “I Am a Lover, que é um dos melhores registos visuais do que era viver no bairro boémio de North Beach, São Francisco, naquela época. Trabalhei com essas imagens e outras de alguns fotógrafos importantes, o que me inclinou a usar fotografias de forma mais aberta e reflexiva nos meus filmes.  

p20189702_i_h10_aa.jpgAnd When I Die I Won’t Stay Dead (Billy Woodberry, 2015)

Depois de “And When I Die I Won’t Stay Dead”, eu e Luís fizemos uma curta de 11 ou 12 minutos chamada "Marseille après la guerre”, composta apenas por fotografias. Foi durante a pesquisa para “Mário” que me deparei com a coleção de [José] Veloso de Castro, um fotógrafo militar. Essa descoberta levou-nos a criar uma história a partir das suas imagens de África.  

Este interesse por fotografias não surgiu do nada. Há cineastas que admiro profundamente, como Santiago Álvarez, documentarista cubano. Ele dizia: "Dê-me duas fotografias e um pouco de música, e consigo emocionar-te; consigo fazer um filme." Embora não faça exatamente como ele, a confiança dele em usar fotos inspirou-me. Outro grande exemplo é obviamente Chris Marker, que também começou como fotógrafo. 

Marker dizia que não se tornava fotógrafo porque William Klein era muito melhor. Mesmo assim, usava fotografias nos seus filmes e refletia sobre o que uma fotografia pode ser, em trabalhos como “Si j'avais quatre dromadaires” (“Se Eu Tivesse Quatro Dromedários”, 1966). A sua abordagem ao meio e o seu próprio trabalho fotográfico são algo que admiro muito.  

Mas essa fascinação pela imagem fixa, pelos arquivos e por essa realidade, tem também fascínio na vaga de fotógrafos amadores da América e como a sua transição para o cinema, um cinema underground americano ou alternativo à fantasia vendida pela indústria hollywoodesca?

Sim, tem a ver com isso também. Refere-se a Helen Levitt e outros? Sim, porque os filmes e a fotografia dela foram realmente importantes para mim. Gostava muito do trabalho dela. Dediquei o meu primeiro filme a ela porque o modo como ela trabalhava era livre, interessante e original, especialmente no contexto de East Harlem.

Ela conseguiu fazer filmes dentro de uma indústria que já tinha regras muito estabelecidas. Além disso, colaborou com o escritor James Agee, e juntos fizeram outro filme que é um dos meus favoritos, chamado “In the Street” (1948). A sensibilidade que ela demonstrava na imagem fixa continuava presente quando passou a trabalhar com imagens em movimento.

Ainda que tenha mudado de plataforma artística, ela manteve aquele olhar aguçado para a observação, para os detalhes e para o movimento. Mas o foco nunca era abstrato; estava sempre nas pessoas, nas suas vidas.

Essas qualidades, essa atenção ao humano, ao particular, impressionaram-me profundamente e foram uma inspiração.

E sobre esses fotógrafos, muitas vezes captavam as classes, a classe trabalhadora, as vozes mais silenciosas que não tinham lugar no cinema de massas. Essa foi, como disse, uma das características do movimento LA Rebellion do qual fez parte: o de dar voz aos invisíveis no cinema mainstream?

Sim, exatamente. Talvez como muitos dos movimentos de novo cinema, especialmente o novo cinema latino-americano, que era profundamente radical e convencido da necessidade de tornar visíveis, no cinema e na cultura, as pessoas, as classes populares: como vivem, o que fazem, como se expressam, os desafios que enfrentam. Era uma forma de contrariar a tendência de simplesmente usar o cinema como escapismo.

Sob a influência dessas pessoas e encorajados pelo exemplo delas, tentámos fazer algo semelhante, e havia também uma necessidade, quase uma compulsão: uma vez que tivéssemos acesso ao meio, o que faríamos com isso? Imitaríamos os outros? Seríamos apenas entertainments? Não. Pensávamos que o cinema podia ser mais do que isso. Outros temas e outras subjetividades poderiam ser tão envolventes e interessantes quanto aquelas histórias banais com personagens fictícios, estrelas e narrativas pré-fabricadas.

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"Boys with cigarettes", Nova Iorque / Foto.: Helen Levitt (1940)

Acho que foi assim que esse pensamento surgiu. Havia uma afinidade com as pessoas que mencionei, que se tornaram pilares, referências. Sabíamos que outras pessoas já tinham feito isso, e que era possível fazê-lo, se quiséssemos.

Felizmente, vi essas obras na escola e procurei aprofundá-las. Tinha amigos que também gostavam muito e as consideravam como referência. É quase uma tradição, como Chaplin, que também tinha essa preocupação com os temas humanos e sociais.

Visto chegou “Mário” por via de outras obras, pergunto-lhe como desfecho da nossa conversa, se no seu trabalho e pesquisa para este filme deparou-se com a ideia do seu próximo projeto?

Não tenho certeza. Tenho algumas ideias, algumas ‘coisas’ que gostaria de fazer, mas nada de concreto, como também tenho receio de embarcar em algo só porque preciso fazer alguma coisa. Não sinto que ainda tenha surgido o projeto certo, algo que me convence de forma definitiva. Mas espero continuar a procurar.