Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Com vista a outro ponto-de-vista

Hugo Gomes, 12.01.23

325337356_674324827725271_283596826867881747_n.jpg

Um dos pecados originais do Cinema é a explicitude dada como garantia ao espectador. É falar do que mostra, e mostrar do que fala, há toda uma dependência das imagens à narrativa, prendendo o público àquilo que se encontra representado e não as possibilidades fomentadas pelo seu respectivo imaginário, com isso, o cinema narrativo afasta-se da suas supostas raízes literárias por não conceber tréguas ao seu participante, não requisitar a sua colaboração para o preenchimento do seu universo. O Cinema tende a fazer isso, assim, apoiando-se no “senso comum” que nos incita a acreditar. O efeito-sugestão, o fora de plano, a alusão, o simbolismo, anomalias de uma pretendida e perfeita transfusão do entretenimento narrativo, são escapes que o espectador-refém se poderá refugiar por momentos, acedendo às (im)possibilidades internamente projetadas pelo seu ser. 

Toda esta conversa de “chacha” não deve ser confundida como um “punho cerrado” em direção ao storytelling, nem muito menos à capacidade visual de um filme em “contar a sua história”, mas por vezes sinto falta dos seus momentos “a sós”, daqueles momentos, que tal como nós, que se isolam para expressar os secretamente os sentimentos ou “tapam os olhos” para auto-impedir de ver os horrores no horizonte. O Cinema também deve incitar o nosso imaginário, o que nos repele ou nos cativa, ou até isso, desafiar-nos a reencontrar outras óticas, outros ângulos de observação sem sermos “cães de Pavlov” atraídos pelo striptease visual. Tenho afetividade por filmes que filmam o “não-visto”, ou desviem a “cara” perante o que muitos entenderiam como crucial para o “coração da história”. Entre esses momentos, abriu-se vaga para mais um, Sérgio Tréfaut é o assinante desse efeito-revoltoso à nossa cultura do explícito. 

Em “A Noiva”, o seu novo e, possivelmente, mais arriscado trabalho, seguimos uma jovem lusodescendente (Joana Bernardo) que abandonou a sua vida “confortável” para se casar com um resistente do Daesh, no Iraque. O filme não presta-se a desvendar as origens e causas, nem desculpar-se (ou culpabilizar) pelos atos, ao invés disso, começamos com o encarceramento desta “princesa da torre” e o fuzilamento do seu marido-guerrilheiro. A sequência arranca com uma demonstração - prisioneiros em fila, a serem vendados e esperando pela chamada do seu nome (a última que ouvirão, antes de pisar o reino do Além) e um pelotão de fuzilamento aguardando instruções - a semiótica está feita, o espectador tem a noção do que irá acontecer. 

Porém, ao esperado espectáculo de violência - o “choque” etiquetado na cena como atrativo das curiosas ”massas” -, a câmara foge do “palco” dessa construção cénica, não é a sentença de morte do qual Tréfaut deseja captar, nem sequer a queda do “amante corruptível" que “enfeitiçou” uma ocidental para aquele mundo que não lhe pertence. Nada disso, é a própria mulher, os seus olhos, a única presença humana naquele rosto tapado por vestes negras e opressoras [niqab]. O azul pálido do seu olhar, enquanto a sonoridade do seu redor pouco descanso dá. A punição acontece, sabemos disso porque ouvimos, e não só, porque o sentimos nas poucas manifestações de expressão “desenhadas” numa parcialmente ocultada Joana Bernardo. É o silêncio dela, a comoção discreta, e o brilho acentuado de quem, impotentemente e igualmente cedido ao seu destino, depara com o amor, o seu mais que tudo, a desvanecer perante si. Sem despedidas, sem os derradeiros gestos de afecto, sem a permissão desse luto antecipado. 

Tréfaut negou essas imagens, essa explicitude, provou pelo ato mais simples de que não há uma função-única para a narrativa e que o decreto de “mostrar nada” por vezes torna-se “mostrar tudo”. E esta mesma sequência alicerçada à força do seu fora-de-campo revela-nos a essência de toda “A Noiva”, uma obra que procura vivências e não juízos, enxerta emoções e não psicologias, e é por estas e por outras que somos subjugados a um ensaio pleno de uma mulher voluntariamente acedida a este universo, sem o uso panfletário, sem ativismo, nem martirológias. É uma escolha sem arrependidos, são perdões sem contrições. Um filme sereno e dramaturgicamente simples que só por aquele e mencionado início nos revela mais do que uma mera mostra - um olhar e novos pontos-de-vista para contemplar o mundo, mesmo este, estar ao oposto da nossa ocidentalidade.

Quando Stalin conheceu Cristo ...

Hugo Gomes, 05.01.23

leffest-skazka-fairytale-critica.jpg

Estou cansado, fecho os olhos e só vejo o Futuro.

O cinema de Aleksandr Sokurov ostenta uma veia museológica, não se limitando ao recorrente tema do Museu como espaço e núcleo gerador das suas experiências cinematográficas (a proeza de “Russian Ark” [2002], rodado em um só take, ou até o pouco falado “Francofonia”), e sim, no intuito de envergar por uma vitrine direcionada ao século XX, onde um punhado de “figuras históricas”, ou símbolos (de forma a enaltecer o respetivo lado mitológico de muitos deles), são induzidos em reflexões latentes e toda uma gíria jocosa e analítica em seu redor. 

O russo Sokurov fala da História para lá do senso crítico, sublinhando o sentido criativo possibilitado pela mesma, e “Fairytale” é mais um dos resultantes desses diálogos interiores, a sua colectânea de “achados” históricos ao uso de um “proveito cinematográfico”, porém, desviando-se da forte composição narrativa da sua quadrilogia do Poder [“Moloch”, “Taurus”, “The Sun”, “Faust”], mas conservando o motor da mesma (o período histórico como maquete). 

Imaginemos o seguinte cenário: Stalin, Hitler, Mussolini e Churchill, inegavelmente as “estrelas” do passado século, despertam do seu ininterrupto sono no Limbo, aí seguem trilho acima por vales e penhascos dantescos em direção aos Portões dos Céus (“os melhores cristãos são os comunistas”, assim vende o soviético o seu “peixe”). Vale a pena ressaltar que pelo caminho depararão com Jesus Cristo e Napoleão Bonaparte, evidentes influências e inspirações que tão bem compuseram estas figuras. Uma premissa para além do surrealista, imaginada literatura de Dante contorcida em vestes de atualizadas políticas, só por este “pitch”, teríamos a merecer um projeto diabolicamente criativo e complexo quanto à concepção e abordagem. Mas Sokurov surpreende, quer dizer, vindo dele surpresa não é inteiramente uma palavra espontânea, visto que o rigor técnico e mais que isso a proeza hercúlea com que encara formalmente os seus filmes leva-nos a isto (ensaios que nos conduzem ao limite das suas forças. 

fairytale-2022-skazka-aleksandr-sokurov-recensione

O cineasta prometeu-nos quatro protagonistas históricos no Além (os delineadores do Velho Mundo contemporâneo), e assim foi, os próprios, possíveis através de uma tecnologia em função de arquivos. Os seus rostos “animados” prevalecem para fora do seu tempo e do Tempo em questão, são personas múltiplas, esmagadas pelos seus "pensamentos", pelos seus feitos desvanecidos enquanto castigos naquele Inferno improvisado, falam de filosofias pessoais, renegam a redenção, pregam aos seus motivando Guerras “Santas” sem uso algum. Sokurov joga-se para os braços destas mesmas “personagens”, eles nos guiam pelos becos da sua Eternidade como Virgil encarregou-se, levando pela mão Dante Alighieri através dos Nove Círculos Infernais em busca da sua amada Beatrice

Neste caso o quarteto procura aquilo o qual incessantemente procuravam em vivos, a sua evangelização (“religião é uma doença psíquica"), o seu pedaço de História marcado a punho de ferro e fogo de trincheiras, mas “Fairytale”, esse conto de fadas, é um jogo cruel, virtuosos e exuberante quanto ao seu conceito, para que no final seja digno de “conversas de urinol” do qual política e belicismo são falados na trivialidade do quotidiano. 

“Não há lugar para melancolia, não ouçam o Sokurov, avancemos.

Retrato de família

Hugo Gomes, 16.12.22

10684A.jpg

Uma rústica janela de pedra é visionada como uma moldura que enquadra um burro num acidentado retrato. Singela e planeada imagem servida de abertura em “Return to Dust”, sexta longa-metragem do chinês Li Ruijun, mantendo-se ativo na sua região-berço, a cidade de Gattai, situada na fronteira da Mongólia, terra de quatro e austeras estações, signos o qual seguimos um casal improvável. A cena-introdutória aqui mencionada não é pura coincidência, essa automaticamente nos dialoga, subtilmente e em mudez animalística a cerne de tudo o que iremos contar neste retorno poeirento, um olhar romantizado, a procura de um embelezamento provisório na rudeza do seu mundo. 

É por estas e por outras, que um camponês é unido a uma mulher com deficiências através de um casamento arranjado. Ela um fardo familiar, ele um solitário como ninguém, convergem numa família “fabricada”, e desse traço, forçosamente ou não, Ruijun filma um afeto a tecer ciúmes à inocência. O carinho dos gestos, o silêncio ou as palavras economizadas numa rotina partilhada como bem entendem, momentos remetidos ao conforto de uma pobreza sem volta. “Return to Dust” é esse “burro emoldurado”, não apenas numa captação bucólica, e sim na transfiguração, algo ilusória, de desgraças, miserabilismo e denúncias político-sociais embrulhadas numa falsa-ingenuidade, ou diríamos melhor na busca de uma beleza qualquer, que apazigua a dor, a nossa, a deles, ou de mais alguém que deseja manifestar empatia. Não se trata de um punho erguido no ar, nem sequer num dedo indicador esticado acompanhado por um olhar inquisidor, ao invés disso um encolher de ombros, uma expressão impotente e um - “é a vida” - libertado num sofrido suspiro. 

O trágico tem a sua beleza, e a pobreza, longe do que se espera, não contém fórmula definitiva para a filmar. É possível "emoldurar" a miséria sem nos sentirmos insensíveis ou exploratórios? Sim, basta ter compaixão e com “Return to Dust” existe compaixão por estes “pobres coitados”.  

"Decision to Leave": Simpatia pelo Sr. Park

Hugo Gomes, 06.12.22

0d754865f85b5b8cd921c57f94f0982b.webp

Para tentar traçar uma trajetória evolutiva no cinema de Park Chan-wook, e talvez desta forma lidar com a minha desilusão para com o “Decision to Leave”, invoco um dos seus sucessos - “Sympathy for Mr. Vengeance” (2002) - primeiro tomo da sua querida trilogia de vingança, e para muitos a introdução do boom do novo cinema coreano no nosso país. 

Nesse filme, uma peripécia em torno de uma não-planeada vingança em lume brando ostenta uma postura ambiciosa ao virtuosismo que é intercalada com uma viscosa sujidade, impregnada em pontos-de-vista ou planos-detalhes, desde as unhas escarnecidas até à tinta de carimbo que salienta as impressões digitais num contrato mefistofélicos, mais tarde; o sangue, as fezes, urina e o suor pontuam como “borrões” numa pintura medida a régua-e-esquadro. Em “Mr. Vengeance” persiste-se em planos-conjuntos que transformam apartamentos minúsculos em autênticas “casinhas de bonecas”, enquanto lida com os calcanhares cortados (“libertando” litros e litros de sangue na fluidez da corrente de um riacho), trata-se de um constante choque entre o belo e o grotesco, sem nunca o fundir numa perfeita utopia, ou onanizando com inteira fascinação pela violência. 

Park Chan-wook aperfeiçoou o estilo no capítulo seguinte [“Oldboy”, em 2003], aprimorando não só a ênfase da vendetta como também na estilização da sua violência (basta relembrar da sequência do martelo, nunca prescindindo o humor negro). Diga-se, por passagem, que o zénite foi atingido pelo desfecho da “saga” [“Sympathy for Lady Vengeance”, em 2005]. Contudo, o grafismo foi-se perdendo, mas o teor agressivo permaneceu instalado nos seus becos, espreitando pelo momento que nunca viria a chegar, em “The Handmaiden” (2016) a sugestão era uma presença inevitável e em “Stoker” (2013), a sua experiência semi-fracassada nos EUA (um flop de bilheteira que merece uma revisão), a psicologia subverteu a ação das suas personagens. 

E é então que chegamos a “Decision to Leave”, e em descrições equativas somos levados a um noir inspiradamente hitchcockiano e romântico (mais “Stage Fright” do que “Vertigo” apesar da mimetizada esquadria), o qual Park deseja “fazer bonito”, rigores de estética virtuosista, sufocando tecnicamente uma intriga com o seu bem-querer de “bom cinema”. Em um momento, admiramos um corpo já sem vida esbarrado na terra húmida de uma encosta, essa massa outrora humana revela-se no foco de atenção às mais rastejantes criaturas necrófagas, larvas e moscas passeiam nas suas retinas sem brilho num espectáculo reservado aos presentes policiais que se amontoam no descampado, mais do que curiosidade, antes, com a missão a cumprir e desvendar quem matou aquele sujeito. Eis o "whodunit" instalado. 

Screen_Shot_2022_11_07_at_11.22.54_PM.jpg

Esse pequeno vislumbre de grotesco, a putrefação visual, é esmagada pelo "bicho-carpinteiro" estilístico que habita em Park Chan-wook. Aquele preciso episódio (que mais tarde irá rimar com o certificado de “frescura” na morte expressa nos olhos de um peixe) que poderia ditar uma regressão à velha forma do realizador, soa-nos a um brinde afagado no artificialismo, essa, que a obra encanta, ou melhor, que deseja enfeitiçar-nos. Os pontos de fuga lá se mantêm, os detalhes no ponto-de-vista das personagens, a preocupação dos objetos nos contornos comportamentais do mesmo (a pausa dada, não apenas à intriga, mas ao filme, com sushi de luxo, saboreando e gesticulando cada pedaço sem pressas nem obrigações) e os twists narrativos que dinamizam o que poderia ser mais um conto entre detetives prodígios vencidos pelo cansaço e pelo afeto (carência que despoleta novos interesses), como “femme fatales” mais astutas que os seus igualmente problemáticos companheiros (aqui, a chinesa Tang Wei, que pensávamos estar esquecida do exuberante “Lust & Caution” de Ang Lee). 

É uma sombra da mestria narrativa no qual Park Chan-wook sempre nos presenteou, recorrendo ao minimalismo extraído da sua história, com isto cobiçando o interior das suas personagens, as vísceras não direi, ao invés disso, as emoções e sentimento reprimidos pela ditadura do dever. Não há que negar que “Decision to Leave” possui a força visual de nos conquistar numa sala de cinema, fazer-nos acreditar em estarmos perante uma obra de portento cinematográfico a suplicar a projeção, e com alguma razão, visto estarmos a vaguear por tempos de atribuída relevância ao streaming e às suas estéticas binárias. Com isto Park Chan-wook comprometeu-se a fornecer material de riqueza técnica para nos diferenciar desse mundo. 

Mas é essa sua obrigação que sufoca, os vislumbres do cinema rude, cru do sul-coreano, submetem-se ao senso-comum da beleza (o filme é belo sobre os padrões consensuais do que é, realmente, “belo”). Eis cinema gourmet, possivelmente.

Quão cronenbergiano é David Cronenberg em 2022?

Hugo Gomes, 11.11.22

crimes-of-the-future-6.jpg

David Cronenberg prometeu - e se prometeu - regressar ao seu “original modelo”, ao “body horror” que implantou como marca sua [cronenbergiano]. Contudo, com “Crimes of the Future”, uma lição deve ser (re)aplicada, o de nunca voltar ao local onde se foi feliz. 

Dito isto, neste filme que partilha o título com outra obra da sua autoria (em 1970, o possível "protótipo" para esta materialização), e com um trio de apelar aos mais salivantes produtores (Viggo Mortensen, Léa Seydoux e Kristen Stewart, e sem deixar de mencionar o nosso Welket Bungué a demonstrar que Portugal é demasiado pequeno para ele), seguimos num futuro ora alternativo, ora distópico, onde a Humanidade perde a sua conscientização da dor e com isso, adquiriu um gosto pela sua “mutilação”. Se bem que a ausência de uma sensação nos leva à procurar de outros como compensação, aqui, como é sugerido, a cirurgia converteu-se no equivalente sexual destes dias “negros” (o filme obtém pouca apetência para a luz e prefere refugiar-se nos becos e galerias), o tal prazer não saciável, vicioso e por vezes desesperante. 

Crimes of the Future” joga a seu favor, assim como a seu desfavor, a imposição de um universo seu onde nada nos é realmente definido, nem nos é garantido, deixando portas entreabertas para as particularidades daquele mundo à nossa mercê. Porém, essa dita sensação de deambulação por esses territórios, sejam corporais ou psicológicos, a violência apaziguada no quotidiano destas personagens, ou a identificável estética visceral (é difícil não pensar em “eXistenz” ou até mesmo em “Naked Lunch” nestas “andanças”), soa-nos a um convite “traído”, após o incentivo, tais “caminhos” nos são bruscamente interditos. 

CF_D28_Sc28_00982.webp

Tudo nos é derivativo, remodelado ou até mesmo influenciado, e o espectador fica-se no meio termo, passeando por um corredor de aberrações e de órgãos descartáveis, humanos que há muito deixaram de o ser, e a evolução prometida como próximo passo. Mas se se trata de um passeio, Cronenberg obriga-nos a percorrê-lo a passo de trote, saindo de seguida pela assinalada porta de fuga. Os devaneios, os desejos freudianos, a mote numa discussão da nossa existência carnal (somos seres do sofrimento, apenas há que abraçar esse propósito), rodopiar-nos ao encontro de um Cronenberg entusiasta. 

Voltando à lição, ninguém retrocede na sua maturidade (sem querer com isto referir o “Crime of the Future” como o filme da maturação de Cronenberg, mas é um Cronenberg maturado sem riscos, nem condição de regressar). Estranho, sabendo que é o próprio que assina a obra, e mesmo assim, ficamos com a sensação de que não fosse esse pormenor acreditaríamos estar perante alguém a tentar ser “cronenbergiano”. Neste momento os “cronenbergianos” são mais “cronenbergianos” que o próprio fundador do “cronenbergiano”.

Ofender é virtude no Evangelho segundo Verhoeven

Hugo Gomes, 24.11.21

benedetta.webp

As histórias de freiras “histéricas”, oferendas diabólicas à Santa Trindade, sempre alimentaram o imaginário da "Idade das trevas" medieval, mais tarde aproveitadas para fomentar um subgénero cinematográfico próprio, muito em voga os anos 70, o "nunsploitation". Mas “Benedetta”, com base num livro de Judith C. Brown, por sua vez inspirado em factos reais, é mais do que a exploração da sensualidade e depravação transmitida pelos hábitos das fiéis: esta é uma produção em permanente posição de ataque aos fundamentos da Igreja.

Se a ofensa é virtude, poderemos considerar que este filme é uma catapulta devastadora, até porque a sua heresia se dilui com uma atitude jocosa pela situação, pelas intrigas, pelas personagens e pela lascividade em símbolos religiosos. Esse efeito 'trash' é um retorno à sua natureza de um velho almirante destas águas, o holandês Paul Verhoeven, o anterior realizador de 'mau gosto' (“Robocop", “Basic Instinct”), agora autor emancipado e celebrado com as graças do Espírito Santo da reavaliação da revista Cahiers du Cinéma.

É nos trajes da Idade Média, no medo constante das chamas infernais e dos prazeres carnais, que o realizador assenta mais uma demanda pela fantasia feminina, uma procissão saída do seu elogiado filme “Elle” e em confronto com a onda de conservadorismo na nossa sociedade (e isso não é só culpa dos círculos religiosos). Contudo, é na marcha contra a Igreja que as trevas de “Benedetta” cercam com uma pecaminosa satisfação, com especial atenção aos estandartes do Cristianismo: mártir e martirologia são destroçados, banhados em humilhação e distorcidos em sacrilégios.

É a profanação representada no corpo de Virginie Efira, que depois disto se torna estrela feita até fora do território francês, e na inocência ambígua da belga Daphne Patakia (“Nimic”), que estão as grandes virtudes deste filme disparatado, provocador, astuto e, sobretudo, respeitoso à velha alma 'verhoeviana' do seu realizador.

Nuno Lopes: "o cinema e a arte entram sempre em discussão na nossa atualidade"

Hugo Gomes, 22.10.19

EasyGirl_002.jpg

Nuno Lopes em "Une Fille Facile" (Rebecca Zlotowski, 2019)

Nuno Lopes passa do Bairro da Jamaica em “São Jorge” diretamente para os ecrãs internacionais em projetos como “Chamboultout” [“Sem Filtro”, de Eric Lavaine] e “Une fille facile” [“Uma Rapariga Fácil”], o mais recente trabalho de Rebecca Zlotowski, onde contracena com a polémica Zahia Dehar.

O filme estreou na Quinzena de Realizadores em Cannes e, desde cedo, tem captado as atenções do Mundo, não apenas pela estreia da “acompanhante de luxo” na atuação, mas pelas temáticas da luxúria, descoberta sexual e os jogos de poder. Nuno Lopes é o amante da personagem de Zahia, um homem que exibe as suas posses para restringir-se a um mundo sexual.

O ator português, que conquistou o prémio de ator da secção Horizontes na obra de Marco Martins, falou sobre a sua experiência no filme de Zlotowski, o seu trabalho além fronteiras, a política e as suas motivações.

Só este ano encontrámo-lo em duas produções internacionais. Foi o prémio de Veneza que o motivou a romper as fronteiras?   

O facto de ter feito o "São Jorge", aliás, o facto de ter vencido o prémio em Veneza, abriu de certa maneira uma porta que abre tudo, porque altera drasticamente a abordagem do meu agente aos produtores. Existe uma diferença na persuasão entre o “ator português que é bom” e o “ator português que é bom e que tem um prémio de Veneza“. Obviamente, que os produtores irão ouvir melhor a última frase [risos].   

Mas acima de tudo, este ano e meio foi também graças à minha ideia de apostar numa carreira internacional, possivelmente motivado pelo prémio. Não com isto insinuar que pretendo ser um ator internacional, mas como filmo muito e em Portugal são produzidos poucos filmes, tenho que procurar lá fora. Um ator de cinema no nosso país tem pouco trabalho, porque não existe uma indústria, mesmo nós tendo filmes maravilhosos. Não posso ficar à espera que surja uma produção com uma personagem que se adequa à minha idade, por mais que ame o cinema português.

A idade é um problema na carreira de um ator? Em 2018, numa conversa com Luís Miguel Cintra, ele referiu essa escassez. 

Para os homens não, para as mulheres sim, infelizmente. Para a minha idade isso ainda não acontece, mas é óbvio que com mais idade os papéis serão cada vez mais escassos. Há uma realidade em que, qualquer filme que tenha visto nos últimos tempos, tem jovens, protagonistas entre os 20 e 30  anos e raramente existem personagens com mais de 60. Mas isto não é um problema exclusivamente português, mas mundial. E acrescento ainda que é sobretudo no mundo ocidental, porque olhamos para as pessoas velhas de uma maneira adversa que, por exemplo, não existe no Japão. Tal, nota-se na cinematografia nipónica.

Mas no Ocidente, a tendência de produção é sempre direcionada aos mais novos.

Exatamente! Nesse caso, as culpas devem também ser atribuídas ao público. No outro dia estava a ter uma conversa em relação ao drama Martin Scorsese e os filmes da Marvel, e disse que a culpa desta enchente de super-heróis é da nossa geração, porque simplesmente deixamos de ir ao cinema e ficamos em casa a ver séries ou filmes no computador. E aí pensamos, quem são os maiores consumidores de cinema nas salas atualmente? Os adolescentes. E é por isso que os estúdios produzem quase somente estes filmes. Por isso é natural que os cinemas sejam invadidos por histórias de teor adolescente sem grande profundidade. Mas volto a frisar, a culpa não é de quem produz, é nossa, e temos que mudar isso. Temos que voltar aos cinemas e demonstrar aos produtores que há público para filmes sem ser de adolescentes.

EasyGirl_020.jpg

Nuno Lopes e Zahia Dehar em "Une Fille Facile" (Rebecca Zlotowski, 2019)

Enquanto isso, num catálogo da Netflix temos propostas bem mais adultas.

Aí está, as pessoas ficaram em casa. E é pena, porque acho que não se deve perder esta indústria cinematográfica. Bem, até me custa referir o cinema como indústria … mas não se deve perder esta ideia de sala, de Cinema para ser visto no grande ecrã, porque existe uma experiência para além da do filme, que é o ritual de sair de casa, comprar o bilhete para aquela mesma sessão e marcares ou não para veres aquele exato filme. É toda uma experiência. Eu, por exemplo, sei exatamente os filmes que vi no Cinema e nem sequer me lembro daqueles que vi em casa. Depois temos a consideração de que um realizador faz um filme para ser visto em sala. Tu nunca ouves alguém afirmar que fez um filme para ser visto numa Netflix.

Fale-me da sua experiência com Zahia Dehar. Como foi contracenar com uma não-atriz?

Estou muito acostumado a contracenar com pessoas que à partida não são atores. Por exemplo, no “São Jorge” partilhava o ecrã com amadores. Quanto tu usas não-atores no teu filme, é porque pretendes que a “personagem” dela seja muito próxima da pessoa que ela é. Isso é a grande diferença entre atores amadores e profissionais. Os amadores podem ser tão ou mais profissionais que os profissionais, mas estes só se restringem àquela persona quase documental. E isso aconteceu com este filme, que aliás, foi escrito pela Zahia. Ela sabia exatamente o que pretendia da sua personagem.

Na questão desta relação entre ator profissional e não-profissional, era a Zahia que me dava conselhos [risos]. Ela é que virava-se para mim: “se vais falar com uma mulher assim, então nada vai acontecer” [risos]. “Por isso tens que falar de outra maneira“. Ou seja, ela é que me dirigia a mim, e eu teria de aproveitar a experiência visto que a Zahia entende mais deste mundo do que eu. Ela é que discutiu e concebeu o filme com a realizadora. Portanto, fiquei mais a ganhar com esta parceria que ela.

Em relação às cenas de sexo, a Zahia tem uma disponibilidade que não se encontra em quase nenhuma atriz, infelizmente.

E sentiu-se desconfortável em relação às cenas de sexo?

Não. Para dizer a verdade, sou tímido por natureza. Não é uma coisa que desejo, assim como não desejo estar num ringue a levar socos, mas se isso ajuda o filme, farei. Neste caso,  se as cenas de sexo eram importantes para o filme, então fazia.

Considera-se um ator de método?

Não, porque os atores de método constroem as suas personagens através do seu próprio passado e das suas emoções pessoais. Eu, por outro lado, recorro mais à imaginação para criação das minhas personagens. Agora, considero-me um ator metódico, e utilizo algumas ‘coisas’ que muitos consideram de método, como o de viver experiências relacionadas com as personagens. Por exemplo, se vou fazer filme sobre boxe, obviamente vou praticar pugilismo. Contudo, não sei se é método ou uma deficiência minha [risos], porque se pudesse evitar isso, na construção das minhas personagens, evitaria. Mas esta é a minha maneira de trabalhar e aquilo que penso funciona.

Na nossa atualidade, um filme com a exposição e temática do “Uma Rapariga Fácil'' seria mais difícil se o realizador fosse um homem?

Acho que nos tempos de hoje, um filme destes não poderia ser feito por um homem. Porém, o filme coloca questões, sendo isso que o torna bastante divisivo. Conheço pessoas que adoram o filme, assim como outras que o odeiam. No outro dia estava a falar com uma pessoa que o odiou, e disse-lhe que é bom sinal um filme ter suscitado essa reação. Hoje em dia, o politicamente correto – não sou contra a ideia, sou contra a forma como muitas vezes se aplica, por vezes sem o bom senso – tem implicado que a diferença entre um filme bom ou mau é consoante o facto se concordas ou não com o que é dito. Acredito que um filme possa ser maravilhoso só pelo princípio de não concordares com o que ele diz e com isso provocar uma discussão. A arte, em última análise, serve para provocar uma discussão. E é essa mesma discussão que fará mover a sociedade. Mais do que um filme que termine e que tu digas: “olha, esta pessoa pensa exatamente como eu“. E vais para casa e não pensas mais sobre isso.

Este “Uma Rapariga Fácil” faz exatamente isso. Provoca questões e coloca o espectador perante os seus próprios preconceitos, a tua própria ideia do que é uma “rapariga fácil”, e de quem é a Zahia Dehar. Por exemplo, olhas para o escândalo da Zahia e tens isso em mente sempre que vês o filme. Este coloca a câmara no ponto-de-vista destas personagens, ou seja, ele joga perante os nossos preconceitos, desafia-os, assim como afronta a maneira como olhamos para mulheres que de certa maneira são estigmatizadas como um corpo sem voz.

A Rebecca constantemente dava-me o exemplo de que ninguém sabe como fala a Kate Moss, porque essa pessoa é uma imagem. Uma imagem mundialmente conhecida, mas que ninguém teve a atenção de ouvi-la. Acho que o filme é feminista nesse sentido, porque pega na dita objetivação da mulher, que é reduzida a uma vaidade, a um símbolo de sex appeal, e resolve abordar isso como uma outra espécie de emancipação, uma maneira de poder. Obviamente, com isto entramos no território do que é mais exibicionista: a mulher que dança seminua numa coluna de discoteca ou o homem que coloca a chave do Porsche na mesa do restaurante? Qual é o nível de exibição? E qual é o primeiro que a sociedade julga?

saojorge.webp

Nuno Lopes em "São Jorge" (Marco Martins, 2016)

Há uma certa ideia de que a luxúria, o sexo explicito e todas essas consoantes são próprias do universo masculino, e nunca do feminino… 

É curioso essa questão das cenas de sexo, porque é muito mais difícil filmar uma cena dessas sob o ponto de vista feminino. Por isso não me importo da minha exposição aqui. Isto é uma maneira da realizadora declarar que também quer olhar para o corpo masculino, que também quer admirá-lo. Não me fez confusão, pois acima de tudo senti que estava a trabalhar por um bem maior.

É sabido que está a rodar com a atriz Beatriz Batarda um novo filme de Marco Martins. O que podes dizer sobre ele?

O filme passa-se em Great Yarmouth [Reino Unido] e irá anexar os temas do Brexit, crise e imigração. Irei contracenar com não-atores, quer portugueses e ingleses, muitos deles trabalhadores daquela região. Sobretudo, será um filme sobre a violência com que os imigrantes são expostos. E irá desafiar-nos a questionar a maneira com que olhamos para os estrangeiros e como eles olham para nós. Sim, focará essa crescente vaga de imigrantes na Europa e na sua crise.

Em jeito de curiosidade, quando aconteceu a polémica do Bairro da Jamaica, o nosso primeiro-ministro António Costa afirmou publicamente que só começou a conhecer a situação dos habitantes desse mesmo bairro através do “São Jorge”. Acredita que com o novo filme de Marco Martins, ele estará ciente dos problemas dos imigrantes portugueses?

[risos] Acho que o cinema e a arte entram sempre em discussão na nossa atualidade. É por isso que nunca me associei a nenhum partido. Não é que eu não tenha nenhum partido ou visão política, mas apenas porque a arte é contrapoder, o oposto do poder. A arte serve para provocar questões, enquanto o poder serve para resolver essas mesmas questões. São duas faces da mesma moeda, mas são completamente distintas.

Mas então o que pensa das associações e procura das facções artísticas em campanhas eleitorais?

Eu percebo o ponto vista deles, não percebo é do ponto vista dos artistas na maior parte das vezes. Também entendo que um artista preocupado, e cidadão, possa não ter a mesma ideia que eu tenho e que deseje o melhor para o país, e que apoie aquela ou outra pessoa. Tem todo o direito.

Em “Sem Filtro”, assim como “Uma Rapariga Fácil”, o Nuno é visto como um galã lusitano [risos]… 

Acho que essa imagem pode mudar [risos]. Entretanto fiz de assassino também num filme francês que ainda não chegou ao nosso mercado.

Na cama com "Sibila" em batalhas em Solferino. Uma conversa com Justine Triet

Hugo Gomes, 29.06.19

SIBYL_5.webp

Virginie Efira em "Sibyl" (2019)

Em 2013, Justine Triet deu nas vistas num enredo de sarilhos parentais num dia crucial das presidenciais francesas. A rua de Solférino tornou-se  num verdadeiro campo de batalha, revelando ao Mundo uma das mais vibrantes captações de multidão no cinema desde as guerras ideológicas de Serge M. Eisenstein. “La bataille de Solférino” proclamou um novo nome da cinematografia francesa.

Mas o que aconteceu em Solférino ficou em Solférino e Triet apostaria em filmes mais contidos e visualmente menos caóticos, pedindo auxílio à atriz Virginie Efira para a conduzir em retalhos da feminilidade no seu esplendor. Com o sucesso de “Victoria” (“Na Cama com Victoria”), realizadora e atriz regressam ao divã com “Sibyl”, filme que relata os dramas existenciais de uma psiquiatra aprisionada pelo passado que parte para a rodagem de um filme (a atriz principal é uma das suas clientes) para se reencontrar com ela própria e completar o seu livro.

Integrado na Competição do Festival de Cannes, falei com Triet num momento em que o filme é visto como estandarte da representação feminina em diversos festivais mundiais, não conseguindo evitar as questões que dominam o corrupio dos press junkets e conferências de imprensa.

Como surgiu a ideia para este filme?

A minha ideia era ter esta personagem cuja profissão consiste em ajudar os outros, mas que não pode ajudar-se a si. Uma espécie de contradição que a levará a uma vida constantemente repartida e caótica.

Devo dizer que existem muitos meios que apressaram-se em apelidar o seu filme de “denúncia à masculinidade tóxica que condiciona a personalidade das mulheres nos mais diferentes estados da sua vida”. Concorda com estas reflexões?

Não vejo o filme dessa forma, nem completo, nem durante o processo de produção. O que vejo é a história de uma mulher que é confrontada pelo passado, e como tenta lidar com estas suas decisões. Aliás, como consegue superar o peso dessa sua história? Neste caso, decide escrever um livro, o que é uma boa forma de reconciliar-se com os seus “demónios”.

A segunda parte de "Sibyl", a Triet passa a ação para a ilha de Stromboli. Para os cinéfilos, o local é incontornável. De alguma forma é uma referência ao clássico de Rossellini? Será a nossa Sibyl uma espécie de Ingrid Bergman?

Não tentei com isto replicar os passos de Rosselini, nem sequer fazer uma referência direta ao clássico. Stromboli tem aqui um papel quase emocional para com a protagonista, a qual acompanhamos numa primeira parte totalmente focada na prisão da sua mente. Ela tenta buscar inspiração para o seu livro, mas é constantemente cercada pelas sombras do seu passado, o que faz com que a ilha se torne numa inspiração, num regresso à realidade, mesmo sendo um ambiente completamente novo para Sibyl. Stromboli é um lugar saturado de uma sensação de ficção e como cenário é absolutamente cinematográfico, irreal para aquela parte do Mundo. Quando a protagonista embate nesse lugar, entra em ação, numa suposta realidade que a deixa confusa com esta dita ficção do real, desta exceção. Por isso, sim, mais do que referenciar, a ilha tem um propósito de psicanálise.

1558796886565_1000x0702_0x0x0x0_1634200117043.jpg

Justine Triet

Já deve ter percebido que no festival a questão das mulheres no cinema é tema para durar. Visto o seu filme estar presente na Competição, surge uma espécie de “responsabilidade” da sua parte. Como realizadora sente não conseguir atingir os seus maiores objetivos por ser mulher’

No meu caso, sinto-me bastante livre. Sempre pude abordar aquilo que quero e trabalhar com quem quero, mas talvez seja eu, uma privilegiada. Mas nunca me senti presa a nada pelo facto de ser mulher. Contudo, tenho conhecimento de que muito tem que ser feito nesse aspecto, sei que ainda existem diferenças abismais salariais em vários casos, sem falar do acesso à indústria, que sempre foi dificultado consoante o género. Em França, tal cenário não é dos piores, mas ainda existe. Ainda há muito para fazer.

Não só em relação às mulheres, mas também às minorias …

Sobre as questões de cinema feito por mulheres e minorias, só o facto de discutir sobre isso deixa-me infeliz. Eu assinei a petição 50-50 e o que vejo, tendo em conta os números, não é muito confortável. Não consigo dar uma solução para isso, mas faço o que posso, tentando atingir a paridade na minha equipa, porque quando falamos de igualdade não devemos restringir-nos aos cargos de realizador, mas a todo o sistema. Penso que devemos questionar o facto de nas escolas de cinema, principalmente La Fémis, termos este 50-50 e depois o resultado não se vê na indústria. O que realmente se passa? O que aconteceu a estas estudantes? Porque é que não vemos este número de mulheres a chegar à indústria e aos grandes cargos no cinema? Isso devemos, mais que tudo, questionar.

A igualdade não se emprega apenas às mulheres; a indústria francesa ainda tem muito que fazer quanto às minorias. Não temos uma representação justa, dentro ou fora do ecrã. São questões que debatemos constantemente e temos o conhecimento que o percurso ainda é longo.

Mas no seu filme não vemos essa representação.

Sim, tens absolutamente razão, friso, estas questões são importantes e ainda mais temos de lutar por elencos diversificados. O que acontece neste caso é que não houve muita diversidade no casting e nas escolhas dos diretores de castings. Não estou a culpá-los, eu também tenho culpa no cartório, aliás, temos todos culpa de alguma forma. O sistema precisa mudar, é claro.

Por exemplo, eu vi muitos possíveis maridos de Sibyl e até a certa pensei em preencher a lacuna da minoria com este papel. Mas isso é também uma forma de racismo, concentrar as minorias a papéis secundários, como fosse uma espécie de preenchimento de quotas. Não cedi por isso mesmo, eles merecem melhor e a escolha não seria de todo natural.

Os seus dois últimos filmes abordam uma feminilidade longe da farsa vendida pela sociedade. Obviamente, como homem, não sou a melhor a pessoa para fazer estes apontamentos, mas nos seus filmes o sexo nem sempre é bonito e uma noite de copos é da maior parte das vezes caótico. Este desencantamento é uma aproximação do real, do dia-a-dia das mulheres?

Sinto-me livre nesse sentido, o que me garante a possibilidade de representar aquilo que penso. É um ato constante e possivelmente egocêntrico, mas nos meus filmes eu inspiro-me diversas vezes na minha pessoa. Com isto, submeto-me aquilo que gostaria de ver no grande ecrã. Obviamente, como mulher, gostaria – acima de tudo – de ver personagens femininas da forma mais real possível e penso que as espectadoras também o desejam. Quanto às cenas de sexo, tentei replicar o mais credível possível, não só visualmente, mas emocionalmente.

LBDS1-800x533.jpg

La bataille de Solférino(2013)

Gostaria de referir “La bataille de Solférino” ("A Batalha de Solferino"), um filme visualmente de grande escala em comparação com estes seus dois últimos trabalhos, mais contidos e intimistas …

Mas Solférino foi feito sem dinheiro algum.

Sim, não estava a referir ao orçamento, mas na sua conceção. Foi um filme mais trabalhoso?

Ah sim … foi. Entendi mal … peço desculpa.

No caso de Solférino, como eu vim do universo do documentário usei essas mesmas habilidades para conduzir o filme. Filmamos quase sem dinheiro e utilizei a multidão que estava nas ruas durante as eleições presidenciais desse dia. Ou seja, através do documentário entrei na ficção. Em certa parte, Solférino foi uma espécie de conflito dessas duas dimensões. Atualmente, os meus filmes são mais ficcionais, o que lhes garante uma maior liberdade na sua criação.

Por exemplo, como fã do Shyamalan, reconheço que “The Visit” tenha sido um filme mais complicado de concretizar que as outras suas produções, tudo porque o realizador trabalhou sem dinheiro e teve que usar a criatividade para superar essas dificuldades. Contudo, não percebo como é que alguém pode afirmar que “sem dinheiro, não se pode fazer filmes“. Essas dificuldades só servem para desafiar-nos enquanto realizadores e procurar alternativas quanto à sua produção.

Falando com Corneliu Porumboiu, a vanguarda romena nas ilhas Canárias

Hugo Gomes, 21.05.19

4770732.jpg-r_1280_720-f_jpg-q_x-xxyxx.jpg

Corneliu Porumboiu dirige os atores Vlad Ivanov e Rodica Lazar em "The Whistlers" (2019)

Corneliu Porumboiu é um dos nomes reatores do chamado Novo Cinema Romeno, donde surgiram cineastas como Cristian Mungiu, Radu Muntean, Cristi Puiu ou Cãlin Peter Netzer, que perpetuaram uma vaga de filmes formalmente realistas, desencantados e ambíguos para coa vangm as diversas questões políticas e sociais que assombram a Roménia. Ao longo dos anos, esse dispositivo narrativo e estético começou a dar os seus sinais de desgaste, sendo Porumboiu um dos primeiros a abandonar esse percursoc e afastar-se dos  conterrâneos ao requisitar um cinema mais próximo dos códigos hollywoodescos. Já o havia tentado em “O Tesouro” (“Comoara” / “The Treasure”) e agora fê-lo com maior plenitude com “A Ilha dos Silvos” (“La Gomera" / “The Whistlers"), um thriller noir minado de humor e ironia, onde um polícia corrupto (interpretado por Vlad Ivanov) terá que aprender uma linguagem à base de assobios para executar um elaborado golpe.

Um filme de traições, cumplicidades e muitos assobios que fizeram Corneliu Porumboiu regressar à Riviera Francesa, ao mais mediático festival de cinema do mundo, Cannes, e desta vez na Competição Oficial. Conversamos com o realizador sobre os seus métodos e processos e sobre este seu projeto que é encarado como um atalho para uma nova veia artística e criativa. 

Deixe-me iniciar esta conversa para informá-lo que desde a estreia de ontem à noite [première no Festival de Cannes], começaram a chover artigos sobre o seu filme “pedir uma versão americana”.

Sinceramente, acho que isso é bom [risos].

Porventura, aceitaria realizar um remake deste seu filme?

Não sei não, não me sentiria à vontade para contar a mesma história novamente.

Em A Ilha dos Silvos evidenciamos uma constante desconstrução dos códigos de cinema americanos. Talvez seja isso que fez com que o seu filme seja apetecível para esta “suposta versão americana”.

Eu via imensos filmes quando era criança, desde os filmes de Bruce Lee até aos clássicos canónicos: Hitchcocks, Chaplins e Buster Keatons. A razão foi mais porque vi imensos filmes na minha vida .., não só americanos. Aprecio também o Melville, nomeadamente o jogo de gato-e-rato criado em “Le Cercle Rouge”.

Como surgiu a ideia para este filme?

Este filme estava pensado já há imenso tempo, esta história de um polícia que segue para uma ilha para executar um golpe, aprende uma língua à base dos assobios e essa mesma linguagem torna-se muito mais pessoal que um mero estratagema, tudo foi calculado e trabalhado pacientemente. Desde os capítulos até ao seu ritmo, foi todo um processo que demorou o seu tempo.

Quando trabalhava no Politist, adjectiv, há 10 anos, vi uma série televisiva onde demonstrava esta linguagem, e foi então que me interessei pelo tema e iniciei uma investigação. Escrevi um rascunho, porém, avancei no “When Evening Falls on Bucharest or Metabolism” (…) julgo que depois de “O Tesouro” lancei-me num segundo rascunho, ou seja, regressei a este universo com um guião tão diferente do primeiro.

Foi um processo longo e quando senti que a estrutura estava, por fim, completada, comecei a refletir o tipo de personagens e que atores poderiam encená-las. Para isso, regressei ao noir, um subgénero que não assistia há bastante tempo, e de lá tirei algumas ideias do que poderia ou não reutilizar neste meu projeto.

MV5BYWU5ZGJlNjUtY2FkMS00YmM1LWE2ZTUtM2RiZGJlYTg0Ym

Catrinel Marlon em "The Whistlers" (2019)

Esta ambiguidade apresentada em todas as formas no seu filme, reflete um pouco o estado social e político do seu país [Roménia]?

Quando faço um filme obviamente que reflito no meu carácter e a natureza ao meu redor, até porque vivemos num mundo em que tudo motiva uma história. O facto de eu vir de um país ex-comunista e que ainda hoje encontra-se assombrado, gere este tipo de filme de ambiguidades rodeado de personagens ambíguas e sobretudo envoltos na temática da corrupção.

Fale-me do seu trabalho com o ator Vlad Ivanov e o porquê da sua escolha no elenco?

É a segunda vez que trabalho com ele. Este filme nasceu envolto dele, construi a personagem com base nele e o resto do elenco foi também baseado, o qual demorei cerca de um ano a formá-lo. Para mim é um excelente e dedicado ator. Por exemplo, neste papel, o Vlad teve que perder “coisa” como 14 quilos em um mês e meio.

Gostaria que me falasse sobre a seleção de músicas que escolheu para formar a banda-sonora deste filme. É que temos aqui uma coletânea bastante diversificada!

A banda-sonora, em certa maneira, é a representação de uma personagem, de um estado de espírito, um cúmplice emocional destas personagens e da narrativa. Porém, o meu maior objetivo neste filme foi materializar a ilha de “La Gomera” através da música. Era importante para mim transformá-la numa espécie de personagem. Adicionei a música enquanto editava as cenas, desta forma pude encontrar o ritmo pretendido. Por exemplo, o Passengers do Iggy Pop que toca no início transmite-me um certo surrealismo e travessia, visto que a cena que a acompanha é a passagem num túnel.

O facto de “A Ilha dos Silvos” ser um thriller noir definido foi também uma forma de apelar a um público mais vasto?

A questão de género surgiu depois do processo de criação. Nasceu da maneira como estava a tratar da temática, aliás, partindo do princípio que chamava a este sistema de assobios de linguagem teria que procurar uma linguagem para este filme. É óbvio que as audiências se identificarão mais com o género, e isso garantirá um filme mais aberto para um grande leque de público.

Faço filmes de 10.000 euros ou 15.000 euros como o “Infinity Football”, por exemplo, mas quando dirigimos filmes de maior escala como este, devemos ter sempre uma noção de marketing, porque o cinema para além de uma arte é uma indústria. Claro que a atitude de entranhar no cinema de género não foi meramente comercial, eu gosto de experimentar ‘coisas’ novas, de me desafiar e explorar novos horizontes. Por isso, encontrei no noir esse novo olhar.

E foi através dele, aliás, os seus últimos filmes têm seguido essa direção, de demarcar sobre o sigilo formal da nova vaga do cinema romeno? Ou seja, afastar-se do estilo que os seus colegas, como o caso de Cristian Mungiu, ainda persistem?

Para ser sincero, não sei responder a isso. Cada um com o seu cinema. Aliás, o cinema é tão grande que cada um pode ir para um trilho diferente. Gosto do Cristian Mungiu, do seu tipo de cinema, das suas personagens, do estudo que faz com elas, dos propósitos com que as retrata. Não vejo porque tem que ser diferente, ou querer ser diferente. Possivelmente, tentei procurar novas formas narrativas, novas estruturas, mas de certa forma sou eu que estou a ir ao encontro das formas clássicas.

Aqui, a minha concentração foi a história acima de tudo, na ação e o mínimo que precisamos para representá-la. São trabalhos diferentes quando temos personagens que se escondem nos seus gestos e que não aguentam close-ups, é uma outra estrutura que nos puxa para uma direção completamente diferente.

rVVsn13An47D2U7S2trVUnT1usZ-scaled.jpeg

Vlad Ivanov em "The Whistlers" (2019)

Mas mesmo andando pelos géneros distintos, a sua filosofia se mantém. Continuamos a evidenciar a corrupção moral das personagens.

O meu interesse é o de fazer filmes, não filosofia. A minha preocupação é tornar possíveis mecanismos que funcionam. Por exemplo, quando escrevo, até mesmo nos documentários, improviso imenso e com isso recuo diversas vezes até ao ponto de partida para perceber o que funciona ou não. Se sigo por um caminho que deparo com algo que não funciona no argumento, volto atrás e percorro outra direção.

E um dos caminhos que seguiu foi o humor. “A Ilha dos Silvos” é rico nisso.

O humor é instintivo, além disso tive que cortar muito no filme e muitas dessas cenas continham diálogos realmente cómicos, mas que sentia que não operavam com o ritmo e atenuavam a tensão. Mas é algo que gosto e que surge naturalmente.

É difícil escrever diálogos de conotação humorística?

Quando escrevo diálogos sou bastante preciso e quanto às situações aqui do filme pesquisei e trabalhei o mais possível. Neste tipo de filme, o da jornada e do protagonista que julga ter tudo controlado mas que há sempre alguém que destrói os seus planos, fez-me requisitar um certo tipo de humor. O quanto a vida pode ser absurda até certo ponto, quando imaginamos ter algo e no dia seguinte não está lá mais, tentei com este mesmo esquema na última parte do Tesouro. Aliás, esse filme foi uma espécie de experiência àquilo que iria tentar com A Ilha dos Silvos.

Diga-me, aprendeu a assobiar após este filme? [risos]

Tentei, mas não consegui. [risos] Devido à minha pesquisa, tenho a teoria mas falta-me a prática.

Quanto a novos projetos?

Não gosto de pensar em novos projetos após terminar um. De momento, não tenho nada planeado.

Sorrentino na mira do populismo num filme-sátiro

Hugo Gomes, 03.12.18

maxresdefault.jpg

Mais que uma sátira, “Loro” (“Silvio e os Outros”) é um filme-sátiro, em alusão à mitológica criatura, metade bode, metade homem corresponde à natureza desta ficção de um dos incontornáveis vultos da política italiana.

E já que falamos em caprinos, porque não passar para uma casa ao lado da taxonomia animal e espreitamos o ovino (ovelha) que abre este filme de uma forma metafórica e crítica a todo um conformismo político por parte do eleitor. Induzido num tom jocoso e satírico (não foi de propósito), o animal hipnotizado pelas transmissões televisivas (a televisão italiana, à imagem de muitas, é forte nessa continência populista) sucumbe face à visível ameaça. Hoje, com a ascensão do populismo e dos partidos extremistas, é evidente decifrar todos os símbolos desta abertura, até porque Paolo Sorrentino (cineasta que motiva amores e ódios, todos eles extremos) não é dos cineastas mais crípticos em relação a mensagens subliminares.

Não sendo um campo estranho, visto que já penetraram na política por via de “Il Divo – La Spettacolare vita di Giulio Andreotti” (2008), o realizador alia-se novamente ao ator Toni Servillo para o “camuflar” em mais um animal politizado, neste caso Silvio Berlusconi. O retrato trazido nesta duologia (em Portugal só nos será disponibilizada a versão norte-americana que une os dois capítulos num só) confere todo o caminho de excessos tão habitués para Sorrentino, a criação de uma fábula artificializada de uma Itália que sonha acordada. Através, e repescado a essência do sátiro, há aqui um gesto anedótico de paródia à própria figura central ao mesmo tempo que incentiva um tom humanista no mesmo.

Servillo funciona com o carisma que nos tem grudado desde então (incrível como o filme melhora a olhos vistos apenas com a sua introdução) para nos trazer esta personagem “mascarada”, nunca cedendo nas complexidades que a esquerda teoriza nem a superficialidade própria do moralismo norte-americano (Sorrentino sempre sonha vingar em Hollywood). Aqui todo um espólio e distorção da realidade em prol de uma desconstrução da personalidade, vetor de um filme que esquematiza, não a ascensão política, mas a queda iminente da mesma. Assim, como o protagonista questiona porque não existe um museu em sua honra, Sorrentino sorrateiramente responde com um filme – Berlusconi é um artefacto de exposição, o espectador é assim o visitante. “Loro” é então esse evento que magnetiza em prol de um homem, e que todo o seu biótopo é essencial na compreensão do mesmo.

Só que nesta obra de Sorrentino, assistimos a essa cumplicidade para com o populismo televisivo italiano, desde as demandas pelo videoclipe e a tendência pop do luxo de poucos, “Loro” enverga-se num híbrido entre o comentário político e a modernização de moda. Sim – como gosto de voltar aos tópicos anteriores! – é o sátiro, o meio, meio, o filme que se desdobra em diferentes vontades e gestos. Se por um lado temos a acidez dos diálogos, com mão aberta preparada para a eventual chapada, por outros temos o exibicionismo técnico e o fascínio do grotesco narrativo para o minar, assimilando a complexidade inexistente que a personagem apontou como falha da esquerda.

Obviamente que não há um vórtice político de caras como outra incursão berlusconiana (“Il Caimano”, de Nanni Moretti). Contudo, "Loro" detém alguma compaixão pela figura o que arrasta e igualmente acelera por territórios vastos. Sim, é o tal meio, meio.