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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Ratos do Porão ...

Hugo Gomes, 11.09.24

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O trono é um lugar solitário, onde os delírios encaram-no como o momento da sua emancipação, já não “falam”, gritam, desalmadamente nas mentes alucinadas. Ubu, ou antes senhor Ubu, homem dessas fantasias, ansiando pela poltrona real que não lhe pertence, nem dignidade, se é que existe, a possui para o deter, nessa feita, segue pela via “cobarde”, pela baixeza, rastejante conspiração, violência e por fim a morte de uma dinastia. “Rei Ubu”, vagamente inspirado no clássico de Alfred Jarry (adapatado para teatro e para televisão em 1965), é nas mãos de Paulo Abreu (“Alis Ubbu”) uma obra de desvaires e ecos à nossa atualidade, fazendo das traições satiricamente shakespearianas, macbethianas sem classe para sermos exactos, numa caricatura a populismos e à estupidificação no Poder. 

Em feita resulta num filme que se esperneia no detalhe visual, com câmaras em locais exatos, sem nunca perdeu o pio ao seu virtuoso olho, e por outro lado o desencantado graças à sua desarticulação, pelo desenrasque e pela paródia mesclada em crítica de fraturas a um falso épico de sopros anárquicos, de maneirismos mimetizados aos clássicos históricos desenrolados sob os motes espaço-temporais de Tarkovski (é um Andrei Rublev dos pobres à cabeça), das ações shakespearianas de Grigori Kozintsev (“Hamlet”) ou dos postumum objeto-não-identificado Aleksei German (“Hard to be God”). Não são apenas os russos, o exército “inimigo-salvador” por estas bandas, existe também uma tentativa de captar a estranheza soviética dessas produções que tragavam passado como cantigas do presente. No fundo, “Rei Ubu” consente como esse retrato, mas a queda do seu “reinado” permanece em nunca rasgar as suas veste de História refletida nesta modernidade. 

Mas não cuspamos na sua totalidade, Miguel Loureira representa essa loucura balofa e Isabel Abreu (“Os Restos do Vento”) instala-se na excelência da sua variação Lady Macbeth. Um exercício de como a barbárie e o capital, de braços dados, não são fantasmas exclusivamente do presente. 

O mundo acabará num dia qualquer ... a espera é o essencial

Hugo Gomes, 03.05.24

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Nina Hoss em "Do Not Expect Too Much from the End of the World" (2023)

Aproprio-me do seu título - "Do Not Expect Too Much from the End of the World" -, que por sua vez foi apropriado de uma frase do poeta polaco Stanislaw Jerzy Lec (1909-1966), para refletir sobre uma das naturezas de Radu Jude nos seus mais recentes passos: a apropriação, e com isto um caminhar em direção ao possível apocalipse. Ao contrário das fantasias de Fim do Mundo que impregnaram tanto a nossa cultura popular quanto a intelectual, o cineasta romeno despoja essas ideias das suas eventuais distopias e imaginários estabelecidos, concentrando-se num mundanismo com que a Humanidade se vê envolvida, num perpétuo movimento à sua decadência moral onde a selvajaria capitalista reina e subjuga.

Não tão diferente do seu anterior e galardoado "Bad Luck Banging or Loony Porn" [Urso de Ouro em Berlim], Jude continua a fazer uso do presente para expor uma espécie de antologia de empatia ausente, aqui, através da história de uma assistente de produção com condições precárias (Ilinca Manolache), que trabalha estrada fora na concepção de um filme institucional ("todos os filmes são institucionais", como se ouve a certa altura). Nas suas breves pausas, ela filma-se em brejeiros reels de Tik Tok com camadas e camadas de filtro em cima, pregando as lições emuladas de um Andrew Tate e outros "ismos" que isso pode acarretar. É a criação de um alter-ego, Bobita e as múltiplas e imaginárias vaginas com que atravessa, uma distorcida caricatura à moda de Charlie Hebdo como a própria autora orgulhosamente clama em oposição do “putinismo” que a acusam.

Em paralelo, segmentos intermitentes da obra conterrânea, "Angela merge mai departe" (Lucian Bratu, 1982), remixados e recontextualizados, uma anomalia de um tempo modelado numa diferente fluidez, emaranhado algures num passado que vai tocando e tocando na narrativa central, posando como uma musa perante o seu pintor, neste caso a Jude que parece induzir como um ensaio, gerando uma recriação modernizada. A nossa protagonista parece confinar-se a essa inovação, visto que o filme intrusivo nos apresenta uma mulher taxista, fazendo da sua viatura mais do que via de passagem, a sua casa ambulante com abraços rotos à condição precária.

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Não só na aproximação com o seu material, Radu Jude parece estabelecer outra ponte com Godard que é o convite-cameo de realizadores de cinema, neste caso o alemão e infame Uwe Boll 

"Do Not Expect Too Much from the End of the World" não esconde a sua inclinação pela experimentação narrativa (acima dos suas estéticas), como é natural do realizador, deparamos com uma fome intensa de abocanhar tudo e todos numa crítica mordaz, que tanto aponta para norte como para sul. No fundo, é como as nossas redes sociais, uma cascata de informações, lixo e conteúdo atropelando-se num ciclo caótico, como sinistralidades rodoviárias, um cemitério de cruzes que se estendem ao longo da estrada,como daquela, em direção à cidade de Buzau, que a protagonista compartilha numa conversa fiada com Nina Hoss (a anterior musa de Christian Petzold), o destino sombrio que todos nós esperamos contra a nossa vontade.

Talvez seja este o fim do mundo medíocre que Jude menciona, sem espetacularidade nem salvação, porque os maniqueísmos resumem-se apenas a perspectivas que se cruzam sem nunca se aliarem, enquanto que essa Empatia, meramente um acidente de percurso. A seu tempo podemos encarar o cineasta fora dos habitués da anteriormente decretada Nova Vaga Romena (salpicando o formalista realista com que uma geração de cineastas mantiveram como manifesto), um homem godardiano com uma visão no mundo, e desse ponto de vista entendido como uma matéria de improvisação fílmica, e ao mesmo tempo, fala-nos de Cinema, de um modo cínico, por vezes falsamente ingénuo, dando conta ao seu óbito e ao renascimento enquanto arte de inquietar.

Inquietante, sem dúvida, mas não esperem muito desse armagedão ou do filme, sem ser a sua viagem interior que nos mantém colados após o seu visionamento. Portanto, temos um filme da nossa modernidade, como Radu Jude já nos familiarizou, porque já não nos espantamos com o extraordinário, apenas residimos ao ordinário.

É mais fácil imaginar o fim da sua vida do que o fim do capitalismo

Slavoj Zizek

A geometria do Mito ...

Hugo Gomes, 03.03.24

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Na véspera da sua exibição no Festival de Roterdão, os jornalistas portugueses, dirigindo-se ao visionamento de imprensa de “Diálogos Depois do Fim” no Cinema Nimas, foram recebidos pela produtora Ana Pinhão Moura que os elucidou sobre um aspecto peculiar da obra. Inicialmente produzida como uma série televisiva composta por 19 episódios, este filme foi concebido e realizado através da "colagem" de 6 "diálogos". No entanto, em Roterdão, o "filme" seria diferente daquilo a que os profissionais de imprensa iriam assistir, tal como indicou a produtora, essa versão seria de uma montagem diferente, uma compilação de episódios previamente selecionados pela comitiva de seleção do festival holandês. 

Assim, "Diálogos Depois do Fim" estabeleceu-se como um filme fragmentado, composto por partes que são construídas pela iniciativa do curador/espectador, nunca detendo uma estrutura original, mas mantendo a sua essência - a adaptação de "Diálogos com Leucó", a obra predileta do escritor neorrealista italiano Cesare Pavese (1908 - 1950), integrado na sua visão de desapropriação do mito grego e igualmente a sua subjugação à natureza mitológica (“O mito é (...) o esquema de um facto acontecido de uma vez para sempre, e retira o seu valor desta unicidade absoluta que o leva para fora do tempo e o consagra como revelação”, citando o próprio).

Em resumo, é um exercício performativo digno de instalação, onde 39 atores e uma pequena equipa, liderada por Tiago Guedes ("Os Restos do Vento", "Coisa Ruim", "A Herdade"), aventuram-se no arquipélago açoriano para encenar os diálogos totalizados (19 dos 27 originalmente presentes no livro) e extrair as figuras mitológicas e mortais fantásticas de Pavese, em conflito de ideias, orbitadas pelos fascínios declarados pelo autor. Desde a existência à dicotomia entre a morte e a vida, da violência à paz, da utopia à distopia, estas conversas imaginadas com o mar no horizonte e a selvajaria intactamente indomável servem de palco para a teatralidade encontrada.

Embora Straub e Huillet tenham feito destas inspirações muitos dos seus campos elísios, nas mãos do oscilante realizador Guedes, entendemos como uma variação mais digna do seu processo do que da sua própria conclusão. "Diálogos Depois do Fim" é um filme transmutável, sem um lar ao qual possa chamar seu, encaminhado como um gesto produtivo em vez de uma obra finalizada. Os Açores contribuem com o ambiente nesta móvel residência artística, e a sua conjuntura para com o desconhecido apela constantemente à imaginação e crença do espectador. O resto tenta permanecer relevante depois do fim. Não sabemos se resultará com a sua arte ...

Filme das Feias-Artes

Hugo Gomes, 25.01.24

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Numa Lisboa steampunk-retrofuturista, com pasteis de nata em abundância e um fado entoado em cada borda, Emma Stone, aqui a frankensteiniana Bela, criatura de fabricos e remendos, procura nestes lugares “exóticos” um elo que a une à humanização que tanto ouviu discursar na sua residência / esconderijo em Londres. O que vai encontrar, não só na imaginária capital portuguesa, como também algures no Mediterrâneo e numa Paris lasciva e sexualmente libertária, são “pobre criaturas” em vestas humanas, fealdades ou beldades, heroicas ou vilãs, corajosas ou cobardes, somente viventes sem noção. 

A adaptação do  bestseller de Alasdair Gray resulta nas mãos do helénico Yorgos Lanthimos numa comédia negra e algo burlesca com refinações existencialistas, pomposa num desfile de grostecidade e monstruosidades, o filme entra em conflito com a própria definição generalizada do Belo, aliás Bela, esse atalho, o nome, mantém-se na protagonista como uma provocação, e se essa beldade, seja estética ou cromática, validada numa sociedade como a de hoje, que perante tantas obras das mais diferentes artes, definidas em absoluto, caiu numa banalidade ou num axioma embutido. O conceito de Belo, associa-se a uma resposta harmónica aos nossos sensos e sentidos, há uma exaltação desse apaziguamento perante determinada melodia, imagem ou coloração, ou até na esquadra renascentista que surge ordenado pela régua e a sua simetria, o Belo está na ordem (daí um filósofo ultra-conservador como Roger Scruton tentar arregimentar uma validação da beleza e lamentar a sua decadência no século XX e XXI), e quanto ao oposto, a desordem, tendemos em encaixá-lo no desengonçado, no feio, nas feias-artes. “Poor Things” não nos leva a reflexões filosóficas ou esmiuçamento de qualquer género, só que a sua não-graciosidade, a sua não-subtileza, a reação dela extraída, faz-nos conduzir a esse dilema do belo e do feio. Ou será que perante esta modernidade que nos acompanha, o feio torna-se num novo belo e o belo no obsoleto? 

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Contudo, há aqui conflito devido à escola de Lanthimos, realizador e argumentista dotado em distorcer a sua realidade em semi-distopias várias (basta ver o caminho percorrido de “Canino” a “The Lobster” e assim sequencialmente para entendermos essa marginalização das leis básicas da “narrativa física”, diremos) e igualmente aproximando duma estética kubrickiana, perfeccionista e imperativamente esmagadora com tudo o resto. “Poor Things” tem essas tendências que nos levam a uma igualmente liberdade cénica ou de uma fantasia molhada borisviana com cruzamentos de um vitoriano orgásticamente feliz. Só as opções de como filmá-la leva-nos a essa bizarra aliança ao grotesco da sua narração e argumentação, a cor, perde ocasionalmente, tentando, previsivelmente criar um espaço temporal (e mimetizando os 'passos' de uma criança que vai reconhecendo gradualamnete a coloração do seu redor), e cujas as angulares histriónicas, a profundidade vertiginosa e embriagada, tendem em incentivar uma repudia imediata. Lanthimos está encarregue de repudiar-nos, e não falamos do “body horror” bastardamente cronenberguiano que por vezes sugere nestas imagens da bestialidade ou da Bela [personagem] a caminho da sua empatia (ou o pragmatismo que leva à sua anulação), mas na sua concepção enquanto filmica. 

Estranhamente, esta obra do realizador espiritualmente vai ao encontro de um dos propósitos de “Canino”, que é o de desejar não ser amado, portanto acredito que nesse sentido, “Poor Things” é mais desafiante do que se propriamente se vai inferir na cinefilia ainda detida desse conforto visual. Se isso é bom ou não, cabe ao espectador posicionar-se nesta questão de belo ou nada …

Um homem em fúria

Hugo Gomes, 04.01.24

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O que mais fascina em “Le procès Goldman” é, primordialmente, o seu descasque narrativo, o corte atrás de corte da suposta biografia esquemática hoje normalizada no cinema (e nas suas vertentes televisivas), reduzindo uma vida a um resumo episódico, e através dele, o mise-en-scène encenado na sua magistralidade.

Estamos em novembro de 1975, no segundo julgamento de Pierre Goldman, carismático ativista de extrema esquerda que, apesar das suas nobres origens, entregou-se ao banditismo, segundo ele mesmo, como atalhos para uma vida de excessos. Condenado em 1969 pelo assalto e homicídio voluntário de duas mulheres, é novamente julgado por causa de um livro que escreveu durante o seu cárcere, clamando a sua inocência. A audiência, quase tribal, transforma-se num espectáculo divisório, com uma plateia emocionalmente expressiva: “Goldman inocente!”, “Goldman assassino!”, ouve-se gritar ocasionalmente nos intervalos de cada intervenção. Um processo longe do kafkiano, pelo contrário, recebendo contornos dostoievskianos, como menciona o seu advogado de defesa, atribuindo uma aura de mártir arrependido a um sempre explosivo Goldman, aqui inteiramente incorporado por Arieh Worthalter (“Douze Mille”, “Girl”), que através da sua fúria inerente tenta descortinar uma conspiração policial.

A estrutura narrativa de “Le procès Goldman” resume-se maioritariamente a este julgamento, raramente saindo da sala de audiências (e quando o faz, como na cena intercalada de Goldman aguardando na sua sala, adquire uma imagética bressoniana), escutando atentamente os testemunhos, advogados, juízes e jurados, sem nunca ultrapassar o espectador na sua imbricação moral, nem sequer aludir a Goldman como uma figura heroica (mesmo que Kahn demonstre respeito, leia-se também admiração, pelo mesmo).

É um filme que extrai vampiricamente do caso mediático a sua clássica performance, ora teatral, transformando o tribunal num anfiteatro de última hora e os réus num palco de interpretações naturalistas. Remete-nos aos cânones desse mesmo subgénero, com os Lumets “saidinhos da casca” ou o Fleischer isento da sua perversão. Cédric Kahn une o clássico hollywoodesco com o desenrasque e apelo imaginativo que só a dramaturgia teatral revelaria, sem jamais atropelar o intelecto do espectador, nem sequer fazê-lo refém de ideologias ou declarações de qualquer género persuasivo. É somente a capacidade de reproduzir (História morta, porém, sem subjugação pálida) e daí esperar que os mesmos efeitos sejam levantados como “ratos de porão”. 

Um episódio acima do seu lado episódico, Goldman respirou de novo, nem que seja por uma hora e cinquenta num Cédric Kahn revitalizado.

Com Nuri Bilge Ceylan, vi o Além por um travelling ...

Hugo Gomes, 27.12.23

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Da Anatólia, na cadência de “Era uma vez” [2011], o turco Nuri Bilge Ceylan reinventou-se e fez a partir daí um cinema enquanto seu universo. Não repetiu mais atores e tornou a sua obra de longa duração, de passo lento e cuidado, onde a temática central é diversas vezes descurada e deixada à margem para que as personagens possam dialogar, debater, vivenciar, seja de que forma for. Há um ritual de passagem; as personagens agem como se a sua existência não se resumisse àquele filme, àquele episódio, ao invés disso, elas iniciam do nada e terminam para o nada, o incógnito que irá trazer novas aventuras, longe do olho do espectador porque o narrador (Ceylan) decreta o fim da sua narração. Em “About Dry Grasses”, somos (novamente) levados à região da Anatólia para “perder-nos” por entre duas estações, e apenas duas, como salienta o protagonista, um professor de arte designado a uma escola rural (Deniz Celiloğlu), donde surgem boatos sobre uma alegada “aproximação indevida” para com algumas alunas.

Porém, não é só as personagens e os seus conflitos morais (os personagens são sempre ambíguos e nunca exemplos máximos da moralidade) que nos surgem de passagem, o vento, esse elemento tão característico neste cinema ceyleano, que manifesta delicadamente nos cabelos longos das mulheres, interesses românticos dos tais “indivíduos passageiros” - como aquele testemunhado num acidental encontro, da mesma forma que, cinco anos antes, o arrogante aspirante a escritor (Dogu Demirkol) deslumbrava com a face acariciada por estas forças naturas debaixo da pereira selvagem - retorna à sua execução. Porquê que refiro o simples vento? Porque é nele que encontramos a “mão do realizador”, a sua presença afigurada e transformada, e porque é na sua vinda que o realismo bruto e sujo adquire os seus contornos sobrenaturais: o realizador enquanto um deus, onipresente e interveniente. 

O que “About Dry Grasses” distingue dos demais exercícios de tempo de Ceylan é que pouco tempo depois deste “vento-presença”, algo acontece e desafia-nos a "descodificar" o universo do realizador, a Anatólia não como um cenário mas como um território imaginado e pré-fabricado ao ritmo de um "travelling". É uma fuga a essa coerência, a esse simulacro de realidade, um “vai-e-vém” corrompido à nossa credibilidade, antes de enchermos o nosso peito de ar e submetermos a teorias de “meta-linguagem”, ou simplesmente “meta” como corretamente se refere, de forma abreviada e rapidamente indolor. Regressamos ao filme como se a tal quebra fosse um intervalo na lógica, mas mais que isso, a prova de existência desse «deus-realizador», mesmo que invisível, abençoa com convicção, para que tudo siga naturalmente. 

Cinema ao natural, cinema transcendental, Nuri Ceylan Ceylan renova a capacidade dos seus demais quadros, revelando, porém, ânsia em transgredir o seu já acostumado território.

Fechar os olhos para abri-los sob um novo olhar

Hugo Gomes, 07.12.23

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Mesmo que Nanni Moretti e a sua trupe circense, aparentemente exuberantes, desfilem pouco antes da entrada dos créditos finais no seu "Il sol dell'avvenire", toda aquela "festividade" é-nos dada como um disfarce de uma certa derrota, a de um homem vencido e enraizado no passado, pronto a ceder para se dirigir, possivelmente enquanto subsistência, ao Amanhã. Mais do que claramente o choro do "Cinema Morreu", como os mais "progressistas" destas esquinas reduziram a obra em prol de um artifício ultra-produtivo e despejado nas plataformas de streaming (um alvo que Moretti não deixou ir sem lesões), é um adeus ao seu Cinema para que possa usufruir a vida tal como ela é; por outras palavras, o conforto na resignação. A invocação de Moretti do seu falso-estado de graça entra em confronto com o muy antecipado regresso do cineasta espanhol Victor Erice, naquela que é a sua primeira longa-metragem em 30 anos de distância com o formato. 

Pelo meio, contou-se a curta "Vidros Partidos" - integrada no quarteto fantástico angariado para o antológico "Centro Histórico" (ao lado de Manoel de Oliveira, Aki Kaurismaki e Pedro Costa) -, onde se verificava um olhar ao passado num jeito memorialista e quiçá, igualmente derrotista perante as ruínas de Ontem. Há nele uma sequência final, a de um acordeão tocado por um intérprete de costas para a câmara e de frente para um painel fotográfico, um recordações de outros tempos, onde vemos "atores", diríamos antes operários, fantasmagoricamente presentes naquela não-fábrica que serve de abrigo à fílmica de Erice. A partir daí, a câmara desliza pela fotografia, tentando enquadrar todas aquelas faces, agora desvanecidas, apenas “eternizadas” pelo arquivo. É um reencontro, um dos elementos pelo qual o realizador faz uso do cinema, e desta melancolia chegamos a "Cerrar los Ojos", novamente focando nessa hipótese de regressar a um tempo, a uma pessoa e a um local. O Cinema enquanto “Perdidos & Achados”.

A história envolve um realizador, ou o foi, Miguel Garay (Manolo Solo), que abandonou o ofício à sua segunda metragem, incompleta e desviada dos olhares do público, tudo porque o seu amigo e protagonista, Julio Arenas (Jose Coronado), desaparecera, misteriosamente, certo dia. Muitas teorias orbitam a sua ausência: suicídio, homicídio, acidente ou simplesmente um desaparecimento, cujo mistério revela-se alvo de atenção para um programa televisivo de investigação, como um mito criptozoológico. "Cerrar los Ojos" arranca com esse falso-filme (o seu início como ilusão ao espectador desatento, ou simplesmente, ao espectador que deseja encantar-se, ingenuamente, ceder ao engano, ao belo engano) em que um auto-cognominado "Rei Triste" solicita os serviços de um detetive privado, um pedido como amenização de um desejo, o de ser olhado com um outro olhar. O tal olhar de reencontro.

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Víctor Erice procura com "Cerrar los Ojos" esse novo deslumbre pelo cinema, pelas velhas ‘coisas’, pelos amores perdidos. O faz, contrariando Moretti, contrariando a sua cedência, puxando lustre ao classicismo bem seu. Em uma das sequências, Miguel visita a filha, agora adulta (Ana Torrent, a 'menininha' de "El espíritu de la colmena" / "The Spirit of the Beehive", o filme-estandarte de Victor Erice), de Arenas, guia do Museu do Prado [Madrid]. Naquele reencontro (mais uma vez), a sua profissão é abordada por via de uma confissão, do tédio acumulado ao longo de anos em "falar do mesmo" sobre “aquela determinada” pintura, banalizando o belo e vulgarizando a obra-de-arte, desprovendo-a de mistério. Claramente, surge a necessidade de um novo olhar, o "outro" inserido no pedido do "Rei Triste". Não é um olhar de ruptura ou o desvio do mesmo, é a renovação do olhar nesses tais elementos de sempre. Enquanto Moretti decide adaptar a sua perspectiva, Erice opta pela re-exaltação para com os mesmos. Não o devemos julgar, e sim, aplaudir.

Portanto, o "Cinema Morreu" não abunda nestas esferas, neste noir degenerado e igualmente classificado, ao invés disso é a Esperança, encontrada, salientada e revalidada. O milagre, conforme o céptico declara inexistentes desde a "morte de Dreyer", é a pretensão do cineasta requer, o de voltar a acreditar no Cinema, no seu Poder (se é que existe, e deste lado, crente yo soy), no seu espírito, na sua conexão. Portanto, a epifania faz-se através do confronto com realidades, como o shakespeareano “Hamlet”, em que a peça dentro da peça incentiva a culpa do velhaco Cláudio, cuja encenação manifesta-se como um espelho de consciências, porém, aqui na "peça" ericieana, espera-se, despertar. Um despertar com contrariedade, porque é no encerrar os olhos que o Cinema vive. É no fechá-los que voltamos a Acreditar. Victor Erice acredita, acreditou e acreditará, a sua persuasão leva-nos a acreditar também.

"Eu sou o Capitão"

Hugo Gomes, 23.11.23

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Em junho de 2023, lamentavelmente comum no Mediterrâneo, mais uma embarcação de migrantes oriundos do Norte de África (maioritariamente) naufragou, resultando na perda de 800 vidas. A notícia, relegada a um rodapé pelos meios de comunicação ocidentais, rapidamente cedeu lugar à busca pelo submersível Titan no Atlântico Norte, operado pela Ocean Gate com 5 tripulantes, abastados entre eles, devemos salientar, com o intuito de observar as ruínas do Titanic. “Morreram todos”, foi desta e criticada forma que o pivô José Rodrigues dos Santos abriu o telejornal da RTP, e é com esta ruptura que desvendamos o desfecho desses “esforços”. Ou seja, enquanto chorávamos por cinco, 800 vidas não obtiveram tamanha solidariedade, apoio nem sequer “buscas incansáveis” do que restava daquela gente. O Mar Mediterrâneo, diante da crise migratória, havia-se convertido num cemitério marítimo, dessacralizado, e distanciado das nossas sensibilidades

Em setembro deste mesmo ano, em plena Competição do Festival de Veneza, Matteo Garrone (“Gomorra”, “Dogman”) apresentava o seu último trabalho - “Il Capitano” - filme que seguia a jornada de um jovem senegalês seduzido pelas “promessas do Primeiro Mundo”. Previsivelmente, a odisseia não será de todo feliz, e o rapaz, cuja inocência torna-se no maior adversário e igualmente aliado, é confrontado com os bastidores do “sonho europeu”, passando pela Níger, ao deserto do Saara e à prisão libanesa até chegar por fim, ao obstáculo marítimo. 

Etapas de sofrimento que Garrone ameniza por via de um tom fabulista (resquícios do seu “Il racconto dei racconti”, 2015), presente em delírios, miragens, sonhos ou escapes do protagonista, mas o pesado daquele cenário mantém-se como pintura de parede, relembrando ao espectador da rota dos infortúnios, dos que tentam alcançar a mundanidade que nós europeus nascemos com direito garantido. Desde o seu primeiro passo, o mesmo “passageiro” [leia-se, espectador], prevê na sua “bola de cristal” os desdobramentos deste sonho, as consequências, os antagonistas e o clímax, esse, justificando o título, o qual, numa estratégia burlona em que o nosso protagonista (mais uma vez, inocência como palavra de ordem) assume-se “capitão” de uma sobrelotada embarcação, cegamente rumo a Itália

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O “caminho marítimo” é desgostoso, sofrido, miserabilista, mas é a partir daí, com “terra à vista”, que Matteo Garrone joga o seu privilégio num imprevisto “conto de privilegiados”. Considerando a narrativa comum, ou a ausência dela,, o destino trágico de milhares de “aventureiros”, o realizador tentou prevalecer uma fantasia, um “happy-ending” abrupto ou inconcluso em jeito de manifesto à miserabilidade que estes “contos” trazem. Poderá ser uma boa intenção, servindo do Cinema como escape da nossa realidade, ao mesmo tempo trazendo consigo uma satisfação burguesa (contra a vulgarização da tragédia) e, consequentemente, uma romantização daquela situação em prol do nosso conforto da sensibilidade. É um italiano a dizer-nos, sobretudo, que “nós” europeus estamos absolvidos da culpabilização da jornada destes “peregrinos”, enquanto que na realidade, nós somos os traidores dos seus sonhos. 

Il Capitano” é, em todos os aspectos, um filme verdadeiramente competente, seja tecnicamente, performativo ou na descrição da sua “realidade”, distanciando-se da presença branca (não há uma única ‘personagem’ europeia, levando-nos a uma história inteiramente de quem viaja). Contudo, incentiva uma hesitação, à banalização trágica que tanto critica e igualmente à tragédia banalizada que emana enquanto espetáculo de emoções.

O Pub da empatia

Hugo Gomes, 16.11.23

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Podemos encarar "The Old Oak" como uma concessão à irrealidade emotiva por parte de Ken Loach, um cineasta sempre permeado por agendas políticas (falamos do cinema de Loach, uma plataforma para as suas ideias em relação ao mundo), que por vezes tropeça na própria manipulação. Mas, avancemos por partes. Se há algo que devemos extrair desta convergência de lutas - a amizade entre uma refugiada síria e um proprietário de um velho pub, que unem esforços para fortalecer uma comunidade multicultural num bairro decadente inglês - é a sua urgência pela empatia. Aliás, é nesse aspecto que o filme nos parece encontrar o seu principal, e único, motivo de existência, talvez uma afronta ao mundo em que estamos a vivenciar, esse em que a empatia se torna cada vez mais um instrumento, seja manipulatório ou de erradicação (como um maligno apêndice).

Loach sempre se apropriou das narrativas como armas de arremesso; a subtilidade não é com ele, e recentemente tem-se mostrado mais escancarado nos seus propósitos. Em "Sorry We Missed You", a bomba emocionalmente energética encontra-se no seu final-raspanete, e em "I, Daniel Blake", o discurso do homónimo protagonista - “Não sou um cão” - faz uso desse apelo aos sentimentos (citando as duas obras anteriores). Loach nunca esteve ausente desse cariz humano; os seus "panfletos" são dotados de dramaturgia capaz de transcender a ideia-base.

"The Old Oak" é precisamente isso, entendido como um gesto politizado mas floreado, abordando os seus temas recorrentes, a classe operária e as suas constantes (por vezes vencidas) lutas, numa Inglaterra em rápida mudança. Contudo, notamos uma mudança de perspetiva aqui, talvez motivada pelo cansaço do realizador perante o mundo que enfrenta, por vezes, parecendo solitário. Sim, há uma cedência ao esperançoso, à utopia, ao apaziguador, a uma ingenuidade em acreditar nos "amanhãs que cantam". É também a essência de muito cinema político, motivando à revolução através do sentido, da clamor por um cenário a vir. 

"Millions of Us" (1936), de Jack Smith e Tina Taylor, integrado nos movimentos do documentário New Deal, pregava no seio da Grande Crise Financeira, a saída à rua, aos punhos erguidos, aos passos militarmente exercidos, à greve, aos direitos renegados pelo capitalismo predatório, a favor do sindicalismo. Os momentos finais dessa preciosidade cinematográfica balançavam ao mesmo ritmo da montagem soviética contemporânea, aquele cinema concebido para apelar às "massas", incentivando as suas forças, como, anos mais tarde, em 1940 precisamente, Henry Fonda em plena convicção de "I'll be there, too" ("The Grapes of Wrath", John Ford) fizera de modo mais performativo. Às armas, irmãos! Às armas!

No entanto, não nos exaltemos; "The Old Oak" não é tão fervoroso assim. É, como referido anteriormente, um 'produto' gerado como resposta à falta de empatia. Mas estas menções ao cinema americano não são em vão. Ken Loach (novamente colaborando com o argumentista Paul Laverty) reservou-nos um desfecho, possivelmente não consensual (porque aí está, estamos cada vez mais cínicos enquanto espectadores), que emana essa ânsia pela união, ou na fantasia (ingenuidade ao quadrado, mais uma vez), como os finais à lá Hollywood, da clássica, não a que hoje oscila pelo ambíguo ou pelo capitalismo incomensurável, esse que Loach reprova num ápice.