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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Abram alas para ... Lav Diaz

Hugo Gomes, 11.08.22

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A Tale of Filipino Violence (Lav Diaz, 2022)

A cinefilia é também uma constante descoberta, nunca adquirindo o cinema por garantido, nem sequer esgotá-lo até à exaustão. Como tal, prossigo na busca de novos nomes e até mesmo o preenchimento de lacunas, sejam filmes ou sejam autores, sabendo de antemão que nunca completarei o tal e imaginário catálogo. Sobre esse “Prazer da Ignorância” [ler texto de Rui Alves de Sousa para o “dossiê”15 Anos de Cinematograficamente Falando … Escritos de Resistência”], lancei-me pela primeira vez num realizador há muito adiável por estas bandas, longe de ser um total desconhecido ou corresponder a um marginalizado nicho, visto estar sempre integrado nas programações dos festivais de cinema por este mundo fora - refiro ao filipino Lav Diaz

Bem, não era um completo ignorante quanto à sua pessoa, devo dizer que deparei com muitas suas produções e excertos dos seus filmes em diferentes análises, ensaios audiovisuais e as constantes dissertações de Mark Cousins, porém, assistir a um filme inteiro desta parte, não tem sido uma opção prioritária. Confesso que a duração é por si que me tem afastado, juntando a isso a sua prolificidade, duas características que juntas acentuam um certo ar de desleixo (nesse campo penso automaticamente em Hong Sang Soo e a sua estética sem teorias), ou simplesmente numa falta de direção / seleção / edição dos seus projetos. Poderia estar enganado na altura, e tenho confrontado com isso desde então. A leitura das suas entrevistas tem-me conquistado graças à sua ideologia e aproximação do dito e vendido rótulo de “slow cinema”, o qual sempre negou dizendo tratasse apenas de Cinema. 

Quanto à tão badalada duração (recordo que a longa-metragem mais “pequena” tem “somente” 2 horas e meia), tal diz mais sobre mim, enquanto espectador ocidental amontado de informação, do que propriamente dos filmes, e se bem que hoje assistimos um desdém por “cinema longo”, enquanto comumente nos “deslumbramos” pelo binge watching de temporadas completas de séries. Já Jean Eustache para explicar as quatro horas da sua obra-prima “La Maman et la Putain” / “A Mãe e a Puta” (1973), referiu uma apropriação de tais “tempos” para os épicos e as grandes produções, com isto “abrindo a porta” para o drama e consequentemente as verborreias não serem escravas do senso comum de divertimento / aborrecimento ou simplesmente dos mercados. 

Portanto, esta foi a minha “primeira vez” no universo de Lav Diaz, mais precisamente na programação do FID Marseille com “A Tale of Filipino Violence” (título original: “Isang Salaysay ng Karahasang Pilipino”, 2022), uma busca pelas memórias do violento regime de Ferdinand Marcos e a sua lei marcial que vigorou anos 70, enquanto reflete nas dicotomias desse mesmo tempo (e com tempo) sem deixar de barato o sintoma da colonização. Com cerca de sete horas de duração, a preto-e-branco e composto por múltiplas narrativas que desaguam numa uniformidade, Lav Diaz extrai da história escrita de Ricardo Lee (um importante artista filipino) um relato de denúncias de um passado que ainda persegue, instalando-se com acidez, discurso modernizado e constantes metáforas visuais politicamente instrumentalizadas na mão deste realizador (a plateia militar, por exemplo, a sintetizar um temido panóptico). 

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A Tale of Filipino Violence (Lav Diaz, 2022)

Apesar de tudo isto, a (minha) estreia não foi de todo impressionável (e pelos comentários, críticas e impressões de outros, nomeadamente de experiente em territórios “lavdiescos”, este nem é de perto o seu melhor trabalho), mas pela “amostra” consegui deparar-me com a natureza deste realizador, um cinéfilo lúdico (que sonha realizar um 007) e eclético que cita Cinema e arredores nas suas peregrinações cinematográficas. Nem sequer refiro aos gigantes posters rompantes do breu da noite, anunciando um novo filme da personagem Pedro Penduko [a versão dirigida por Jose Wenceslao] ou o clássico de David Miller (“Midnight Lace”, 1960) como alternativa, contemplados quer seja pelo agredido, quer seja pelo agressor, ou do dispositivo doppelganger que poderia tão bem caber nos enésimos “contos” do período expressionista alemão.

Poderia abordar tais como claros exemplos, porém, é na medula que achamos um espírito de quem brinca com o cinema da mesma forma como brinca com a realidade, apercebendo da dimensão que o seu filme tem ao se aproximar do campo camp (associação propositada, não foi preguiça), como evidencia aquela sequência em que o improvável hitman entra numa instituição adentro, disparando em pessoas como quem disparasse em tordos, sem precisão alguma, apenas acreditando na realidade alterada graças às leis inabaláveis de um cinema descomprometido. 

Resumindo esta minha viagem (não pela viagem em si, mas a iniciativa da mesma), é de entender que a cinefilia continua a ser um continente desconhecido, e continuamente desconhecido será.