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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Uma mulher em pedaços ...

Hugo Gomes, 05.01.21

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Sean (Shia LaBeouf), um construtor civil com apetência para pontes, conta à sua amante em tom de confissão a história da terceira maior ponte suspensa dos EUA, a de Tacoma, e como esta misteriosamente desabou. Segundo ele, após ter verificado toda a estrutura, cabos, pilares, condições atmosféricas, a razão encontrada para a queda foi a ressonância, a energia armazenada que se manifesta de forma natural. Este pedaço de monólogo, aparentemente sem sentido, invoca-se como uma metáfora arquitetónica das “pontes” e as suas vitalidades nas relações afetivas.

No caso de Sean, a relação com a sua mulher Martha (Vanessa Kirby) está prestes a desmoronar-se. Ao espectador é evidente esse gradualmente afastamento entre as duas margens, até porque a ressonância aí encontrada é a de um sonho desvanecido, o de constituir família, que ficou comprometida com uma tragédia. Tal como a personagem de LaBeouf, o húngaro Kornél Mundruczó é um realizador de capacidades dramaturgas com apetência por outras “pontes”, neste caso as dos ensaios performativos, com a intenção de causar uma espécie do "teatro do real".

Obviamente que a encenação, essa farsa ficcional, é o seu trabalho de compostura, mas o que prevalecem são os seus gestos de representação para com essa realidade, através do seu mundo (Mundruczó navega entre o cinema e o teatro) e das ditas e artísticas instalações. Neste caso, o atrativo é a sensação simulada de um parto e toda a agonia trazida por esse trabalho doloroso e demorado, rompido por uma luz de alegria e, subitamente, choque, pânico e luto.

Nesta cena sem cortes e com uma câmara empenhada em captar os momentos num jeito guerrilheiro e aflito, Vanessa Kirby, atriz que o grande público reconhecerá pela interpretação da Princesa Margarida nas duas primeiras temporadas de "The Crown" e das andanças de "Mission Impossible: Fallout" e “Hobbs & Shaw”, impõe-se silenciosamente e torna-se na força motora desta situação extrema. De tal forma que o resto da narrativa ambiciona pela sua dor, muda, incompreensível e oculta.

Pieces of a Woman” é um claro primo cinematográfico de um "Who 's Afraid of Virginia Woolf?” (Mike Nichols, 1966) ou “Blue Valentine” (Derek Cianfrance, 2010). Tal como estes, é um filme sobre rupturas e desejos passados e convertidos em ódios impagáveis. Não sendo um exemplar pleno e consciente do sofrimento que causa às suas personagens (por diversas vezes cede aos lugares melodramáticos de cordel ou da fácil comoção, como a vulgarização do Holocausto, inglória temática para servir uma potente Ellen Burstyn), Kornél Mundruczó consegue em meias estações erguer a sua ponte. E nela, a ressonância, essa força, manifesta-se independente e vigorosa.

Kornél Mundruczó: "A Hungria tem uma relação bastante retrógrada com a situação dos refugiados."

Hugo Gomes, 14.06.18

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Kornél Mundruczó

Aryan Dashni (Zsombor Jéger) poderia ser um dos muitos sírios que arrisca atravessar a fronteira diariamente com objetivo atingir a sua “lua”, a Europa. Porém, ele não é somente um “sírio”, mas sim detentor de um especial dom – o de levitar.

Kornél Mundruczó, cineasta e dramaturgo húngaro, tem querido nos seus últimos trabalhos, quer no cinema, quer no teatro, transformar a atualidade em “contos de fadas” modernos e esta prolongada metáfora político-social é um dos exemplos do seu método cirúrgico de fabular.

Tive o privilégio de falar com o autor sobre o seu mais recente filme, “Jupiter’s Moon” (“A Lua de Júpiter”), que competiu pela Palma de Ouro em Cannes (2016), sobre a condição de ser Europeu e ainda sobre o teatro e o seu futuro empenho.

O tema deste “A Lua de Júpiter” toca-nos muito mais sendo nós europeu. Porém, tendo em conta a atípica abordagem desta temática, a sua visão leva-nos a crer que os Europeus são uns hipócritas conformistas?

Nós somos. Embora mais importante do que ser hipócrita é a desumanização da nossa sociedade como um efeito causado, não apenas, mas também por essa mesma hipocrisia.

Tal como o seu anterior filme [“White God”], “A Lua de Júpiter” possui um elemento fantástico que, por sua vez, é inserido através de uma prioritária credibilidade. É importante acima de tudo criar este conceito de “credibilidade” no espectador?

O filme toca com a fé do espectador. Acreditas no que vês ou não? Tens um tipo de super-heroi que provoca a sua fé num mundo renegado. E quando digo renegado, não penso apenas em termos de religião, mas em algo mais geral, por exemplo, acreditando em si mesmo ou para se posicionar num assunto em que se acredita. Isso é algo que infelizmente perdemos. Perdemos os nossos problemas comuns para representar. É disso que o meu filme deseja falar.

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Jupiter’s Moon (2017)

Fiquei deslumbrado com as sequências de levitação. Recordo-me de uma determinada cena onde o poder da personagem de Aryan Dashni é evocado no interior de um apartamento, manifestando-se todo o espaço em prol deste. Como foi possível executar tal cena?

Precisávamos de muito trabalho e ainda mais criatividade para tornar a levitação credível, dando uma experiência real, uma jornada emocional para os espectadores. Para isso era necessária a precisão técnica. As sequências de levitação são momentos transcendentes, que não são fáceis de criar num filme. Por outro lado, estamos a concretizar filmes exatamente para esses momentos, para tornar o invisível visível.

Acerca da sua peça ‘Imitation of Life’. O que levou à sua criação?

Em maio de 2005, em Budapeste, um menino cigano foi atacado com uma espada num autocarro. Houve um grande alvoroço nos media e consequentemente manifestações contra o racismo. Do que se descobriu, o atacante era membro de um grupo de extrema-direita e curiosamente também era cigano. Este caso foi uma das principais inspirações para a minha ‘Imitação da Vida’, que criei graças a minha companhia independente húngara, a Proton Theatre.

Qual a importância da sua experiência de teatro na sua carreira cinematográfica?

Para dizer a verdade, nenhuma. São dois géneros independentes e seria um erro querer fazer teatro como cinema ou cinema como teatro. Isso é algo que não funciona. O meu objetivo em ambos os géneros é simplesmente contar uma história, a minha história, já que ambos servem para isso mesmo, contar uma história e eu vejo-me como um contador de histórias.

De volta ao pano de fundo de "A Lua de Júpiter". Como vê a Hungria hoje? E a sua relação com a crise dos refugiados?

A Hungria tem uma relação bastante retrógrada com a situação dos refugiados. É usado para aterrorizar as pessoas, mesmo sendo uma reunião de culturas. Construir uma ponte entre culturas exige muito trabalho, por outro lado, é fácil. Hoje em dia nós destruímos-mos tão facilmente, como se não soubéssemos quanto de energia e tempo custa para construir. E isso não é só em relação à crise dos refugiados, é também no sentido generalizado, por exemplo, em relação à cultura.

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Imitation of Life

Como cineasta, qual é o seu papel em termos políticos? O cinema pode ser político?

Como cineasta, mas também como dramaturgo, acredito que não tenho nenhum papel em termos políticos. Na minha opinião, o cinema não deveria ser político, pois simplesmente não é essa a sua missão.

Quanto a novos projetos?

O próximo projeto com a Proton Theatre é uma instalação para o oratório “The Raft of the Medusa”, de Hans Werner Henze, que tem estreia na Ruhrtriennale 2018. O trabalho de Henze foi inspirado na mundialmente famosa pintura de Théodore Géricault, de 1819. A peça sobre a catástrofe da fragata Medusa, encalhada num banco de areia, será criada como uma estrutura de colaboração com a Bochumer Symphoniker, a ChorWerk Ruhr e a Zürcher Sing-Akademie, conduzida por Steven Sloane.

Levitando ao encontro da sua autêntica voz

Hugo Gomes, 06.06.18

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Há um elefante nesta sala. Para ser mais exato, um elemento fantástico em “Jupiter 's Moon”. Sem ele, tudo isto seria somente mais uma gota nesta chuva de propagandas à mais recente crise de refugiados na Europa. Vanessa Redgrave e Sean Penn, dando exemplos recentes, cumpriram a sua parte, dois privilegiados regidos por “pedagogias” e cedidos ao show off de um intenso “moral high ground”. Kornél Mundruczó saiu mais astuto no quadro. O manuseamento de um elo de ficção científica “barata” atenua qualquer veículo propagandista evidente, mas mesmo assim não evitou a moralidade cristã e redentora, um monocromático maniqueismo que nos atinge sob a forma de bom samaritano.

Esta “Lua de Júpiter”, a Europa, é um paraíso vivente, assim induzido na mente destes foragidos, refugiados vindos dos diferentes cenários bélicos da cintura arábica (a razão porque a Primavera Árabe é uma mera miragem no deserto). Entre o grupo que sonha alcançar a fronteira húngara, está Aryan (Zsombor Jéger), um jovem com um dom muito especial. Dom, esse que descobrirá da pior maneira, quando durante a sua fuga é abatido pela patrulha da fronteira. Contudo, Aryan miraculosamente sobrevive e adquire a habilidade de levitar, um fenómeno que surpreenderá Stern (Merab Ninidze), um médico de um campo de refugiados (as semelhanças com um campo de concentração não são fruto do acaso) que encontra no rapaz a solução para os seus problemas financeiros. A partir daí, arranca uma caça ao homem, e a redenção de outro.

Bem vistas as coisas, “Jupiter 's Moon” é um filme de uma ideia só e o argumento falha ocasionalmente na sua coerência, do mesmo jeito que indicia em paragens bruscas tecidas na tão dita moralidade, debitada como “lições” gratuitas. A religião, nomeadamente a cristã, entra em conflito com os bons costumes e com a natureza da temática sequestrada. É perigoso falar de crenças num filme que nos remete a um episódio ligado às submissões divinas. Contudo, e tal como aconteceu com White God” (“Deus Branco”), Mundruczó volta a beneficiar da técnica como o “must” de toda esta jornada.

Jupiter’s Moon” usufrui dos efeitos visuais, dessa manipulação, com castidade, sem nunca ceder ao artificialismo digital. A levitação, o “super-poder” do nosso Aryan, é credível e ocasionalmente fascinante para o olhar. Episódios devidamente simbióticos com a sua musicalidade. Por outro lado, Mundruczó, que já havia demonstrado na obra anterior, assume-se como  um rigoroso ilusionista no que concerne a manusear esses campos do fantástico. O visual em prol das longas sequências de fazer “apalpar” a cenografia, os travellings exibicionistas, bem ao gosto de Gaspar Noé, Iñarritu e até Tykwer, tudo engendrado num estado de crescente fúria, com uma música rompante que faz perpetuar a tendência de um vigor aprumado.

Por fim, aquela trabalhada perseguição automobilística em um shot é de fazer inveja a muita produção hollywoodesca (e de géneros estabelecidos). Sim, “Jupiter’s Moon”, apesar dos seus grandiloquentes defeitos, é um filme que entrará num certo estado de graça, nem que seja pelo primor técnico que o serve como andaime. Talvez esteja a ser optimista, mas vejo aqui um futuro culto.

O Apocalipse é canino!

Hugo Gomes, 03.06.15

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Depois dos macacos chega a vez dos cães se revoltarem contra uma sociedade humanamente omnipresente e, de certa perspetiva, totalitarista (perante estes seres de quatro patas). Segundo o filme de Kornél Mundruczó, num futuro próximo, a Hungria será um dos países que decretará uma lei que obriga ao registo de qualquer cão de raça indefinida ou cruzada. Caso não exista esse registo, o destino do animal é o abate.

Tal como “Mommy”, de Xavier Dolan, “White God” brinca com a temática das leis para conduzir-se num cenário de desolação social com graves falhas na concepção das relações afetivas. Talvez seja por isso que a história de fundo, a qual frisa a aproximação entre uma adolescente e o seu respectivo pai, seja tudo menos emocional. De tal forma que a grande preocupação do espectador durante a narrativa encontra-se na infeliz jornada de Hagen, um rafeiro à mercê da sorte num mundo onde os humanos são os verdadeiros selvagens.

Este cão irá mais tarde liderar uma revolta canina, onde os outrora “melhores amigos do Homem” convertem-se nos seus derradeiros inimigos, lutando pela vingança de uma imperdoável traição. Ao chegar a esse crucial ato, “White God” vende-se como um desinspirado filme de terror sob contornos “slasher”, mas antes disso somos dirigidos a um autêntico Oliver Twist canino, numa alusão à exposição dos imigrantes nas sociedades que desejam integrar.

Nesse aspeto, Kornél Mundruczó consegue uma (des)ventura feroz e agressiva que contrai inesperadas emoções. A coordenação dos “atores” caninos, assim como o seu realismo, tornam “White God” num exemplar cinematográfico visualmente arrebatador (a última sequência é exemplo disso). Mas por detrás de um conceito interessante e inédito, evidenciamos falhas a nível de argumento e no propósito das personagens. Falhas essas que são salientadas no seu terceiro ato, a dita rebelião assassina. Uma das consequências desses buracos do argumento é a falta de química entre a estrela canina e a protagonista humana, onde a suposta cumplicidade parece cair de paraquedas nas proximidades dos créditos finais. Por sua vez ,a tão acentuada relação entre pai e filha adquire uma relevância íngreme, pouco justificável em função da narrativa definida.

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A realização por parte de Kornél Mundruczó também não auxilia em nada, embora a intensidade transmitida por uma câmara hiperativa nas sequências mais violentas seja claramente bem sucedida. Porém, os momentos que apelam à captação da linguagem corporal dos seus atores (humanos) tornam-se ineficazes e sem objetividade nos planos. Talvez o resultado deste “White God” (alusão ao filme de Samuel Fuller, “White Dog”) tenha ficado aquém das expectativas geradas pela conceção e pelo visual, assumindo-se como um filme construído em torno de medos sociais enraizados. Profere-se um cinema de veia realista e de carácter violento, mas esquece-se das suas personagens em prol do idealismo da idolatrada revolta.

Já agora, em jeito curiosidade, 274, o número de animais utilizados nas sequências deste “White God”, fez com que a obra entrasse no livro de recordes como o filme com mais cães integrados.