Passaram-se sete anos desde a última reunião entre o artista Juliano Dornelles e o crítico de cinema convertido em cineasta, Kleber Mendonça Filho, o qual gerou o muito elogiado “O Som ao Redor”. Após uma pausa em que seguiram caminhos distintos, a dupla regressa com um projeto que tinha na gaveta há quase uma década: “Bacurau”.
Filmado na região Pernambuco, captando as vastas planícies secas que evocam os westerns “fingidos” e sobretudo das distopias pós-apocalípticas, aqui, “Bacurau”, uma terra que apela pelas boas intenções daqueles que estão de passagem, é um território ameaçado por forças que os seus habitantes não compreendem, mas que mesmo assim resistem (palavra predileta de Mendonça Filho).
Uma invocação do cinema de género que guarda todo um coração politizado e ativista que conquistou a sensibilidade do júri de Cannes, que recompensou a obra com um Prémio de Júri. Mas “Bacurau” é mais que um amontoado de referências ao serviço do quadro daquilo que lhes convém; é um grito num universo extenso, maleável e convergente com a nossa realidade. Sonia Braga e Udo Kier, os dois veteranos do elenco, traçam essas forças.
Tive o prazer de conversar com a dupla de realizadores sobre este filme, materializado sobre a sua veia política, cinéfila e sobretudo inserido no panorama do cinema pernambucano, um dos estandartes da resistência audiovisual no Brasil.
O vosso filme gerou as mais variadas reações em Cannes, sobretudo um consenso geral de um filme narrativamente não linear. Sempre foi a vossa intenção evitar os lugares-comuns da estrutura narrativa?
Kleber Mendonça Filho: Quando escrevia o meu primeiro filme – “O Som ao Redor” – estava confiante de que conceberia uma história linear percetível a qualquer um. De certa forma, consegui, só que tal dependeria da pessoa que o vê. [risos]
Foi então que descobri da pior maneira que muitos acharam uma experiência impenetrável, demasiado cerebral e difícil. “Aquarius”, foi no meu ponto de vista, um filme bem mais linear e com “Bacurau”, sentimos o mesmo, linearidade acima de tudo. É o que é.
Primeiro de tudo, apresentamos a comunidade … existe aquela mulher, existe aquele homem … e depois tudo se desenvolve até ao clímax. Sim, julgo que fiz um filme narrativamente fácil. É por isso com admiração que ouço coisas como: “é estranho, bizarro ou metafórico“. É sempre uma surpresa deparamos com as reações do espectador.
Mas não será isso um elogio?
KMF: Sim, obviamente que é um elogio. Mas não deixa de ser estranho. É como se eu lhe desse um copo com água e você me dissesse algo como: “esta é a água mais esquisita que alguma vez bebi” [risos]. E afinal é somente um copo com água … por favor.
O que quero dizer é que para nós, “Bacurau” é um filme claro naquilo que quer ser. Possivelmente foi a indústria que nos habituou mal, e que tenta padronizar o Cinema que consumimos.
É inevitável não associarmos Bacurau com o contexto político do Brasil que hoje testemunhamos. Vocês inspiraram-se no que realmente está a acontecer para embarcar nesta aventura?
Juliano Dornelles: É uma coincidência.
Coincidência?
JD: [risos] Acreditem em nós, é uma coincidência. Este projeto tem mais de dez anos de existência, evidentemente que as motivações deste filme são fortemente políticas, mas “Bacurau” é sobre aquilo que acreditamos que deveria acontecer, não no sentido politizado, mas social. Deixe-me explicar melhor. Nós vimos imensos documentários étnicos em diversos festivais e todos eles tratavam essas mesmas pessoas, com curiosidade é óbvio, mas com exotismo e simplismo. Aliás, é muito simplismo.
Aquilo que acreditamos é que o ser humano é tudo menos simples. Consequentemente, preenchemos alguma dessa “simplicidade” com política. Todavia, o que quisemos demonstrar com este filme é um grupo de pessoas aparentemente simples que irá mostrar a outras a natureza por detrás dessa capa. E foi assim que aconteceu "Bacurau".
Mas isto foi há 10 anos. Desde esse momento muita coisa mudou, inclusive o Brasil. Lançamos então o "Aquarius" e só depois de consumado esse filme, sentámos-nos e decidimos terminar o argumento deste “Bacurau”. Nesse processo, a nossa ideia original foi contaminada com imensos fatores e um deles foi a eleição de Donald J. Trump. Poderemos considerar um filme político, mas há mais aqui que somente isso. Como as pessoas que quisemos retratar.
Tudo muito bem, mas então é um erro nosso considerar “Bacurau” um filme político? Pelo menos eu acredito que tudo é político, até o infame pormenor.
KMF: Claro que tudo é político, o que o Juliano está a tentar dizer é que “Bacurau” não entra no mesmo registo que um Costa-Gavras ou um Oliver Stone integram. Quer dizer, eles fazem bons filmes, o que acontece é que produzem obras políticas de uma maneira frontal. E “Bacurau” não é frontal.
JD: O que estamos a tentar querer dizer é que quando estávamos a escrever o argumento, não tínhamos a determinação de fazer um filme político nessa frontalidade. Tudo é político, sim, mas não de uma forma evidente e chamativa.
Esforçamo-nos acima de tudo em criar um western, um filme de género, um apogeu de violência. Poderemos dizer que “Bacurau” é uma reação a algo. A política apenas surge de forma espontânea, não forçada ou dependente.
KMF: Só o facto de um mapa ser alterado para corresponder às nossas especificidades em relação ao Mundo, é político até à medula. Mas a resistência é a sociedade a dizer-te o que fazer e acreditares que tal não deve ser aplicado a ti. Voltando a frisar, tudo é político.
Tendo em conta aquilo que presenciamos em “Aquarius” e agora com “Bacurau” e o facto de ter mencionado a “resistência” como um ingrediente-chave, pensa futuramente persistir no tema?
KMF: Penso em fazer três filmes bastante diferentes, que de certo serão influenciados com aquilo que está acontecer, porém, todos esses projetos serão sobre a História. À sua maneira, “Bacurau” é uma obra sobre o poder da História, sobre os factos. E principalmente para o Brasil, que não é um país muito velho, que conta com os seus 500 anos de existência, há uma condenação à História, assim como os museus são considerados hobbies de velho por grande parte dos brasileiros. Eu discordo disso, talvez por ser filho de dois historiadores, mas a minha mãe sempre frisou a importância das coisas e porquê elas o são.
E isso está no filme. Aliás, o museu tem um papel importante em “Bacurau”. A certa altura foi proposto a duas pessoas a hipótese de visitarem o museu e ambas recusaram.
Em “Bacurau” existe também uma certa veia anti-colonialista.
KMF: Acredito que a História repete-se vezes sem conta e de diferentes maneiras. Por exemplo, a União Soviética a invadir o Afeganistão, o processo colonialista do Reino Unido ao longo dos anos e até mesmo o Vietname pelos EUA. Aliás, pensamos muito no Vietname quando escrevíamos o guião – os americanos com todo um vasto equipamento que invadem uma região e nem sequer se preocupam em pesquisar antes da operação. Tal provoca uma situação desconfortável. No geral, o que estou a querer insinuar é que este tipo de confrontos tendem a repetir-se e a resistência é uma possibilidade, nem sempre bem-sucedida.
E com isso quisemos fazer uma fantasia, um filme sob os moldes de cinema de género onde as personagens lutam por aquilo que acreditam (que realmente acreditam). Sinto também, que de certa maneira, o facto de conhecermos aquela região e como as pessoas de lá realmente “funcionam” ou como pensam, serviu para que esta resistência embelezada seja credível o suficiente para atravessar a referência de género.
Em “Bacurau”, assim como em “Aquarius”, de certa maneira senti que tentam explorar aquilo que na Psicologia é apelidado de retorno do reprimido. O despertar dessas defesas que surgem quando algo é imposto contra a nossa vontade. Acredita nisso?
KMF: Sim, acredito. O que fizemos é o trabalho estruturalmente clássico, mas o que me interessa aqui é a alusão de alguém a impor-nos a realidade que não nos pertence. No caso de Aquarius é uma senhora de idade que vive num edifício fantasma, e para alguns essa estadia é um impasse de algo. Já em “Bacurau” é a forma de alguém supor que aquelas pessoas nada importam e acima de tudo são estorvos dos seus verdadeiros propósitos. Este tipo de temática encaro de forma intensa, é um forte ponto para iniciar uma história: “supostamente tu não deverias estar aqui“.
Em determinados momentos, “Bacurau” relembra-nos todo um vasto rol de cinema de género, inclusive do western spaghetti, quer na sua decoupagem ou no visual. Qual de vocês é o fã de Sergio Leone?
JD: Ambos. [risos]
KMF: Sim, nós dois. Aliás, acho que todos nós somos fãs de Sergio Leone. [risos]
JD: Julgo que no nosso processo de escrita, escrevíamos as cenas isoladamente e como estas iriam funcionar da melhor maneira. Para que pudéssemos perceber com antecedência a melhor forma de filmá-la e com isso encontrar a sua face mais divertida e dinâmica. E só durante a filmagem que descobrimos essas referências, anteriormente adormecidas no nosso inconsciente: “Oh, isto parece um western spaghetti. Oh isto parece pura ficção científica.”. Em oposição, nunca passou pela nossa ideia no estado embrionário do projeto em fazer uma mixagem do western ou outros elementos. Apenas são ideias, e com o nosso vocabulário cinéfilo a transformamos em referências. Apenas nasceu naturalmente.
KMF: Mas há aqui uma observação interessante, do qual não falamos até hoje, que é um trabalho de um nível mais profundo em termos da imagem de cinema, que é o facto de, na realidade, termos tido a posse de caras lentes panavision anamórficas da década de 70. Para nós, cineastas brasileiros, é gratificante termos ao nosso dispor um tipo de equipamento, responsável por um certo aspeto que apenas identificaríamos no cinema norte-americano. Uma determinada identidade.
Nos dias de hoje, tendo em conta a tecnologia digital, se não tivermos o cuidado devido, todos os filmes têm exatamente o mesmo aspeto visual. Com isto não estou a querer difamar a qualidade de uma câmara Alexis por exemplo. Mas quando chegamos a um festival e vemos pelos menos dez filmes de diferentes cantos do Mundo, filmados com o mesmo material, apercebemos o quão idênticos são. O que tentamos com isto foi transportar o espectador para umas décadas atrás, e trazer com o vintage uma sensação de novo olhar.
Não com isto afirmando que fomos totalmente bem-sucedidos em todas as cenas do filme, mas foi com este nosso empenho e recursos que atribuímos uma certa familiaridade a estas imagens. Talvez um pouco de Carpenter, Peckinpah, Vilmos Zsigmond, ou até mesmo Spielberg do tempo de “Close Encounters of the Third Kind”, que é uma espécie de imagem à americana …
JD: … até mesmo “Die Hard” [risos].
KMF: Sim, o “Die Hard” é um ótimo filme em termos de técnica.
Em jeito de curiosidade, a região de Pernambuco tem produzido um rol variado de obras de difícil classificação em comparação com o resto do país. Existe aí uma noção de distopia. Ainda há poucos anos assistimos a Reza a Lenda, de Homero Olivetto, que transformava essas paisagens pernambucanas num estilo pós-apocalíptico. Tendo em conta que filmaram lá “Bacurau”, o porquê desta região suscitar um cinema tão característico e, cada um à sua maneira, futurístico?
KMF: Primeiro de tudo, somos de Pernambuco. Contudo, é uma região com uma forte imagética cinematográfica que tem sido alvo de uma riqueza produtiva nos últimos 15 anos. O curioso disto é que está longe dos centros de produção audiovisual, que são no Rio de Janeiro e São Paulo, e que são mais orientados ao mercado mais comercial, especializado, por exemplo, em produtos televisivos ou comédias formatadas para Cinema.
Pernambuco tem-se tornado numa zona de prestígio, misteriosa e casa de inúmeros realizadores que têm gerado filmes muitíssimo interessantes. Claro, nem todos foram êxitos, muitos menos têm a pretensão de serem sucessos de bilheteira, com raras exceções como “Aquarius” ou os filmes de Gabriel Mascaro que têm sido bem recebidos em Berlim.
Diria mesmo que é um cinema muito estetizado.
KMF: Não diria estetizado, mas antes incomuns, fora de tom.
JD: Fora de tom é uma ótima caracterização!
KMF: Para além disso, são bastante autorais, desligando bastante das narrativas básicas e automatizadas, sem com isto assumir um lado experimental, porque a meu ver, até são obras bastante acessíveis, mesmo que alternativas.
JD: Os cineastas da nossa zona tendem em seguir uma direção autêntica, original. Eles valorizam isso. E valorizam de verdade.
KMF: Eu dei muitas masterclasses no Rio e São Paulo e algo que notei é que existe aí uma noção de agradar. O de tentar agradar o máximo possível. O de tentar ser popular.
JD: Já em Pernambuco é tentar ser diferente.