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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Um "ménage" na Alemanha Zero

Hugo Gomes, 18.04.19

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Em 1945, logo após o fim da guerra, as tropas inglesas depararam-se com um cenário de horror. Não foram concretamente as ruínas das antigas metrópoles alemãs, bombardeadas sem dó nem piedade pelas forças aliadas, mas sim algo ainda mais sombrio e avassalador que fez com que o filósofo Theodor W. Adorno declarasse o “fim da poesia” na era da Humanidade. Essas imagens mudariam para sempre o rumo da nossa civilização, uma consciência que foi gerada após as aberturas das portas do campo de concentração de Bergen-Belsen. Aí, de câmara em punho, foram registadas as primeiras imagens do interior destes terrenos de um só propósito. Falo de “Memória dos Campos” (“German Concentration Camps Factual Survey”), um documentário devidamente “verité”, que seria direcionado para fins propagandísticos por parte do Reino Unido. Porém, o próprio Alfred Hitchcock, contratado para a montagem de tais filmagens, recusou a sua divulgação por acreditar que o mundo não estaria preparado para lidar com aqueles horrores. Durante tempos, o “filme” ficou engavetado, até à sua recuperação e restauro em 2014, pelo Imperial War Museum, sucedido por uma digressão em festivais e outros eventos cinematográficos.

As “carcaças” humanas amontoadas umas nas outras em valas comuns, os farrapos nos quais os sobreviventes se converteram e as condições miseráveis e inimagináveis, são os elementos que fazem parte desta coletânea das atrocidades cometidas nas sombras de uma guerra de seis anos de duração. Mas por entre esse mesmo conceito, o de conscientizar através do choque, era possível ver os guardas alemães alinhados em frente dos “cemitérios sem nome”, de olhar vazio para as “montanhas” de cadáveres, enquanto que uma voz vinda do contingente britânico pregava-lhes o sermão “Vejam o que fizeram. Digam, isto é de um ser humano?”. Todavia, há que referir uma curiosidade mórbida nesta dita sequência. Muitos dos aliados que auxiliaram na pregação da sua moral frente à banalidade do mal sentida por estes, agora, prisioneiros nazis (visto que muitos deles justificaram os atos cometidos com um “apenas cumpri ordens”), encontravam-se no cimo de uma colina em separado dos restantes (quer os inimigos vivos, quer dos danos colaterais). Tal é a imagética perfeita do chamado “high moral ground”, um termo muito britânico de quem possui a exclusividade da ética moral na sua própria ideologia.

Antes de qualquer má interpretação que possa suscitar daqui, a indicação deste estrangeirismo não procura defender o nazismo ou qualquer ideologia do género. Apenas procura explicitar essa tendência que embateu nas crenças de uma Alemanha guiada para um “oásis nacionalista”, tendo consequências macabras, cujos ecos ainda são sentidos por este mundo fora. É esse “high moral ground” que esta adaptação do romance de Rhidian Brook parece inicialmente embarcar. O Dia a Seguir” ("The Aftermath"), literalmente e alusivamente, arranca com o primeiro momento pós-guerra. A Alemanha perdeu e várias cidades são transformadas num jardim de escombros após o intenso bombardeamento dos aliados (“A Alemanha foi mais bombardeada num fim de semana do que Londres em todo o período de guerra”, ouve-se a certa altura). As tropas inglesas estabelecem-se na cidade de Hamburgo para garantir a erradicação da ideologia nazi através de uma intensa doutrinação dos sobreviventes e a caça furtiva aos inimigos restantes.

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Neste período, muitos dos militares, de variados postos, tomavam os edifícios intactos da cidade como as suas provisórias residências, como é o caso do Coronel Lewis Morgan (Jason Clarke) e a sua mulher (Keira Knightley), que são instalados na casa de um arquiteto alemão (Alexander Skarsgård). Porém, nesta intriga, os proprietários originais  não são expulsos das suas habitações para os campos, apenas confinados ao sótão e condenados a partilhar o seu antigo lar com o inimigo. E através desta situação nasce um previsível trio amoroso. Talvez fosse a expectativa de sairmos daqui com um filme-reflexo sobre a Alemanha Ano Zero, seguindo, e ao mesmo tempo traindo a estrutura da homónima obra de Roberto Rossellini, como se adivinhava no seu início. Mas a nova longa-metragem de James Kent engana-nos através da sua verdadeira natureza. Não é uma obra inteligente o suficiente para requisitar esse panorama político-social, apenas é um tarefeiro que cumpre a folha de encargos de qualquer romance de época, com cliché atrás de cliché, por entre beijos, juras de amor e muita melosidade na banda sonora.

Keira Knightley ainda dá um jeito de transpor para esta sua nova personagem a experiência que tem adquirido no género (identificamos outro romance de época como parâmetro de comparação - “Atonement”, de Joe Wright), mas o constante déjà vu em conformidade com um academismo formal limpinho, que chega a anular a ênfase dramática do seu climax, tornam toda esta experiência de "O Dia a Seguir" num produto de qualidade "à lá BBC". Porém, o “high moral ground” está lá, numa maneira desconstrutiva, bastante leviana. Possivelmente, o espectro desse embate moral atinge o seu apogeu quando a personagem de Alexander Skarsgård é confrontada com os “demónios” do seu povo em pleno interrogatório militar. As imagens dos prisioneiros dos campos de concentração, a serem inquisidores de um olhar denunciador por parte dos “nossos inimigos”.

É difícil pedir emancipação pelas cinebiografias?

Hugo Gomes, 14.12.18

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Dentro do universo das biopics, uma das responsáveis pela proliferação da leitura YA (jovens-adultos) e acima de tudo assumidamente feminista que abanou toda uma sociedade, a vida de Sidonie-Gabrielle Colette não iria escapar às tais garras industriais.

Obviamente, que isto seria só visto como preconceito ou até habito destas épocas festivas do Cinema, mas condensar qualquer personalidade ao esquematismo e à rotina das linguagens perceptíveis do filme de época é quase um atentado ou simplesmente manobra para atores mimetizarem sob as promessas de estatuetas. Em “Colette”, seguindo a ascensão e a consciência de uma das mulheres mais influentes do início século XX, deparamos com um filme risonho que transborda preocupação pela sua reconstituição histórica e nas assinalações do percurso artístico e amoroso da homónima personalidade.

Perdoamos ou não a escolha da língua inglesa para um universo tipicamente francês ou da semiótica reconhecível de Keira Knightley (mais nossa culpa do que da atriz), mas nesta nova obra de Wash Westmoreland (um dos realizadores de “Still Alice”), o que está em conta é a sua narrativa quase telefilmíca, as ênfases dramáticas totalmente dependentes de fragmentos episódicos e uma miopia na construção do biótipo de Colette e o seu marido (Dominic West com algum fulgor). É a típica produção que espelha uma tendência, um muito encarcerado filme dentro da régua e esquadro do seu formato, mesmo que por vezes certos rasgos parecem conduzi-lo para outros patamares (a sequência de Moulin Rouge trazia esperança por um lado mais cénico e artificial), tudo culminando ao que se está a espera, trabalho esforçado em prol de um “good job/bom trabalho” (não se consegue apontar nada, nem salientar alguma coisa, nos ramos técnicos e visuais).

A elegância e a classe insuflada prestam como artifícios mascarados do mesmo produto de sempre. Malditas sejam as cinebiografias de hoje!