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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

«Roman Porno»: Onde o sexo continua a ter lugar ...

Hugo Gomes, 26.06.20

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 A Noite das Felinas em Shinjuku / Mesunekotachi no yoru (Noboru Tanaka, 1972)

Continuando na nossa viagem pelos sentidos com o “roman porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), a estratégia de produção dos estúdios Nikkatsu nos anos 70 para conseguirem superar a decadência da indústria da altura, no Espaço Nimas. Nesta segunda parte do ciclo, chegamos às “mulheres-gatos” com “Night of the Felines” (“Mesunekotachi no yoru”, 1972), de Noboru Tanaka, e a modernizada versão, “Dawn of the Felines” (“Mesunekotachi”, 2017) de Kazuya Shiraishi.

 

 

- "NOITES FELINAS EM SHINJUKU": SEXO E BANHO A PEDIDO DO FREGUÊS -

 

As noites escaldantes ocultadas pela ferocidade do quotidiano dos hedonistas, empresários e yakuzas disfarçados povoam a segunda longa-metragem de Noboru Tanaka (1937-2006), realizador que se estreou sob o selo da Nikkatsu com “Kaben no shizuku” em 1972 e por lá andou até se converter num dos importantes nomes do movimento do "Roman Porno". Com as “Noites Felinas em Shinjuku” (Mesunekotachi no Yoru, 1972), a inspiração é um dos clássicos do cinema nipónico, “A Rua da Vergonha” / “Street of Shame” (Kenji Mizoguchi, 1956), onde nos era dado um retrato de época da mais antiga profissão do Mundo.

Atualizado e contextualizado no espírito algo libertino dos anos 70, Tanaka reproduz a cumplicidade de prostitutas que se dignam a exercitar a profissão sob o disfarce de “banhos turcos” (de forma a contornar a lei anti-prostituição), negócio movimentado no bairro Shinjuku por todo o tipo de homens, muitos deles ansiosos por escapar das rotinas carrasqueiras dos matrimónios e dos seus percursos profissionais. Por aqui encontramos Masako (Tomoko Katsura), que vive uma relação ainda por identificar com o seu vizinho fura-vidas Honda (Ken Yoshizawa), sendo que este lhe propõe que tenha sexo com o seu amigo Makoto, um jovem gigolo que nunca tivera relação alguma com mulher que se veja.

Nasce aqui uma espécie de triângulo amoroso, sem as ditas arestas reconhecíveis, que irá culminar numa viragem sexual ao som de cantos gregorianos a explorar territórios não-binários da sexualidade de cada um. Digamos que se descobre que as mulheres têm algo de gato dentro delas, independentes, matreiras e nunca devidamente domesticadas, enquanto os homens, meramente ridículos do debaixo das suas propositadas capas de masculinidade (ou como, no caso de Makoto, sensibilidade à flor-da-pele), abrem portas para um universo, ainda que secreto, da homossexualidade da altura em Tóquio.

Este é um daqueles filmes em que o “roman porno” se joga a favor de um retrato social (notamos como o Japão está cada vez mais ocidentalizado), cuidado sem nunca dissipar a sua vertente lasciva de entretenimento para as massas. Mas também é um objeto profundamente cinematográfico que prevalece numa comunhão de referência e ideias abstratas tanto de fora quanto de dentro do país.

Da mesma maneira que se cita o americano “Rear Window” (Alfred Hitchcock, 1954), com um sabor de procrastinação artística e intelectual por parte de um assumido voyeurismo do fura-vidas Honda, também integra uma crítica à contemporânea cultura japonesa dos "pink films" (produções de conteúdo sexual de orçamento ainda mais baixo, normalmente de consumo interior), que aparecem aqui como uma tentativa falhada de excitar Makoto, enquanto Masako reativa os seus sentidos num forçado e perpétuo ato de masturbação (tudo isto sob a musicalidade deliciosamente dessincronizada de Kôichi Sakata).

 

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O Alvorecer das Felinas / Mesunekotachi (Kazuya Shiraishi, 2017)

 

- "O ALVORECER DAS FELINAS": GATAS DE MADRUGADA EM TELHADO DE ZINCO QUENTE -

 

Na homenagem dos 45 anos do “roman porno”, Kazuya Shiraishi transcreve as experiências felinas de Noboru Tanaka com um tributo modernizado e vincado num realismo encenado (a câmara é o mais nervoso dos voyeuristas ou "stalkers"). Aqui o bairro é outro: saímos de Shinjuku e entramos em Ikebukuro, também em Tóquio, acompanhando de “mão dada” três “raparigas de programa”, cada uma delas com os seus dilemas pessoais que diluem com a sua profissão de encomenda. Ao contrário do original de 1972, a narrativa procura uma igualdade no tratamento do trio em vez de afunilar numa só protagonista, mesmo que seja uma demanda parcial.

Acima de um filme que atribui positivismo ou negativismo à prostituição, é uma janela entreaberta para um submundo de prazeres, alguns deles alicerçados aos ensinamentos do Marquês de Sade, que desejam encontrar a legitimidade na sensibilidade dos seus praticantes em vez de estagnarem como pecaminoso desejo a merecer nada mais que a obscuridade. A par do “Noites Felinas em Shinjuku”, este “O Alvorecer das Felinas” (“Mesunekotachi”) é uma obra de múltiplas saídas, descrições e encruzilhadas.

Se falamos anteriormente do sadomasoquismo como espetáculo de cabaret, há aqui outras visões que de certa forma dialogam com o Japão que ultrapassou o período exposto por Tanaka, mas que ainda vive na sua sombra de globalização resistente. Por isso, é impossível não mencionar o regresso do ator Ken Yoshizawa, o Honda oriundo de Shinjuku, que em Ikebukuro é somente um viúvo que se deseja ligar com a falecida mulher através da sua prostituta (Michié, vista em “Silence”, de Martin Scorsese, e no censurado episódio de "Masters of Horrors" assinado por Takashi Miike).

Fora do objeto de estudo de “O Alvorecer das Felinas” (o sexo e a sua relevância no aceleramento social), Kazuya Shiraishi compõe uma obra que, como tantas outras que parecem surgir como “cogumelos” na atual indústria cinematográfica nipónica, esboçam uma metrópole acorrentada à sua permanente solidão e isolamento. Ou seja, antes dos confinamentos impostos pela crise pandémica da COVID-19, os japoneses já enfrentavam a distância com a mais requisitada das normalidades.