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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Woody Allen rodopia no seu próprio encanto

Hugo Gomes, 12.12.17

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Podemos reconhecer, a partir do ano 2000, dois fatores benéficos para a sobrevivência do cinema de Woody Allen. A primeira, Scarlet Johansson impulsionou um novo fôlego e dinâmica na cooperação entre ator/autor. É evidente que um dos melhores trabalhos do nova-iorquino nasceu daí, “Match Point”, um revisitar os temas de adultério e crimes passionais que havia estabelecido no seu “Another Woman” (“Uma Outra Mulher”). E como segundo ponto temos a vinda do diretor de fotografia Vittorio Storaro, cuja entrada no universo Woody enriqueceu esses emaranhados de histórias com uma visão preparada, cuidada, e sobretudo, atribuindo a artificialidade que o seu cinema há muito desesperava.

Nesse sentido, depois de “Café Society”, este “Wonder Wheel” (“Roda Gigante”) é, até à data, o filme que estabelece esse bem cooperativo, a fotografia que se enquadra no ambiente pseudo-fantasioso de Coney Island e que respira por vontade própria. O artificialismo referido assinala-se como uma leitura dessa mesma fantasia, o escapismo visual que indicia uma transformação. Deste modo, a fotografia de Storaro converte-se do dito requinte estético, o clima que nos transporta ao seu ambiente natural, para uma tendência de expressionismo. Os atores respiram através desta mesma imagem, das cores que nos transmitem, enquanto espectadores, uma atitude reativa em relação às suas emoções, pensamentos e, porque não, devaneios.

Mas fora do ponto visual, que nos saliva, “Wonder Wheel'' é um filme que curiosamente esclarece a veia de Woody Allen enquanto, sobretudo, argumentista. O seu apetite pela tragédia e a forma como a nos entrega, um exercício de dispositivos narrativos que maltrata as suas personagens. Estas, indiciadas como cobaias desse mesmo tubo de ensaio – a busca pela tragédia propriamente dita e de que forma atingi-la. Se é bem verdade que encontramos na personagem-guia (um nadador-salvador com apetite pelo dramático personalizado por Justin Timberlake) um espelho do Allen voyeurista, é também indiscutível que essa mesma raiz o condensa num marco de direção para o arranque desta desventura. As personagens vivem uma mentira, insinua a certa altura Timberlake, código genético destes peões que habitam no mais “fraudulento” dos locais, Coney Island.

Existe sobretudo uma rivalidade entre essas “mentiras” que disputam pelo quotidiano dos viventes, a feira que assume o décor e o cinema, constantemente trazido à baila, como uma alternativa aquela matéria algo circense. Estas feiras temáticas eram em tempos a prioridade na distração dos habitantes de Nova Iorque, porém, encontraram-se condenadas pela popularidade crescente das salas de cinema, pelo facilitismo da projeção e pela qualidade da experiência que se poderia experienciar aí.

Apesar da aparente extinção dessa Coney Island levada da breca, o Cinema poupou-o do esquecimento, conservou-o nas suas fitas, um tributo de um entretenimento ao seu antepassado. E acrescento, foi com Coney Island que o cinema norte-americano seguiu em passos na sua linguagem ao encontro do real, com “Little Fugitive” (Ray Ashley e Morris Engel, 1953). Contudo, em “Wonder Wheel”, a narrativa declara o seu fascínio trágico no qual circula ao encontro dessa mesma “ferida”. A tragédia assim proclamada como um substantivo sólido é a combustão dessa mesma trama, e a rainha desta, Kate Winslet, prova ser a maravilha disputada.

Talvez em “Wonder Wheel” deparamos com o início de uma nova faceta de Woody Allen. A ver vamos.

Pago para Esquecer

Hugo Gomes, 23.11.14

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Quem procurava as habituais “caretas” e outros portes simiescos providos pelo ator, bem podem "tirar o cavalinho da chuva", até porque “Eternal Sunshine of a Spotless Mind” (“O Despertar da Mente”) funciona como um veículo da versatilidade que Jim Carrey detém na sua construção de personagens. Completamente subvalorizado pela Academia e pelo público que assume "venerá-lo", mas que somente espera pelo óbvio replicar dos seus êxitos na comédia, Carrey é agora o servo de uma distopia sobre paradigmas de espaços, tempos e emoções.

Aliás, este é mais que um simples exercício de ficção científica ou de romance, como as etiquetas atribuídas pela "esfomeada" indústria cinematográfica tendem a inserir. Não, Michel Gondry, "acabadinho" de sair do seu desastre crítico e financeiro - “Human Nature” (2001) - que porventura fora a sua primeira longa-metragem, oferece-nos um filme sobre a inteligência emocional, e a emancipação desta das recordações e memórias que nos estabelecem. Sob um argumento de Charlie Kaufman, novamente intrometido em assaltos cerebrais (relembramos o seu “Being John Malkovich”, sob a batuta de Spike Jonze), “Eternal Sunshine of a Spotless Mind” revela-nos sob a brisa da habitual fórmula "boy meet girl", tão recorrente a qualquer comédia romântica. Felizmente, não estamos perante um produto deste género ou estilo, como quiserem apelidar, mas sim do arranque para uma aventura que nos leva ao encontro da própria medula do romance propriamente dito.

Aqui o sentido poético e romantizado de catalisar todas as emoções deste foro para as aurículas e ventrículos do coração são descartados, até porque o cérebro comanda a vida e as nossas emoções, ligadas às respectivas memórias, operando como combustões essenciais para um "motor" constantemente alimentado. Imaginem, se alguém ou alguma coisa, tal e qual um "heist", penetrar nessa mesma massa cinzenta e extrair esses pensamentos, ligados às pessoas pelo qual nutrimos de relações afetuosas, sentiríamos defraudados? Pelo que parece existe quem queira esquecer esses "déjà vus" vincados, e Jim Carrey é um deles.

Sob a pele de Joel, o “coração-em-pedaços” contrata uma empresa especializada em "apagar" memórias. O objectivo deste serviço é a destruição de qualquer vestígio da sua antiga relação - Clementine (infelizmente uma desaproveitada Kate Winslet) - uma mulher instintiva, cuja sua ausência tem feito Joel "gato-sapato", e o esquecimento seria, segundo este, um convite para prosseguir saudavelmente na vida que lhe resta … e que muito lhe resta. Contudo, e durante o processo de "erase", ironicamente transformando-se em epifanías, o protagonista se apercebe, por fim, do inevitável … um dia ele foi feliz com essa agora “infelicidade” sinalizada.  

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A luta, literalmente intrínseca, envolve na preservação de qualquer resíduo desta paixão, nas memórias que o enriqueceram e que o tornaram no homem de hoje. A importância emocional é relevante não só para a construção e para as elipses embutidas no protagonista, mas sobretudo para a própria conduta de uma obra que se adivinha fria, sublinho, tecnologicamente fria. Todo o clímax decorre no interior da cabeça de Joel, um confronto visível entre a emocionalidade adquirida pelas ocorrências impostas no filme e o automatismo do enredo. Uma batalha que requisita o melhor de Gondry, no sentido visual, ilustrando toda esta catarse aos pensamentos de Joel e da sua derradeira luta para manter Clementine na sua mente sob um jeito onírico e inventivamente estético. Esta reinvenção torna a experiência fora dos parâmetros do "faz-de-conta" e segue-se no registo do qual o cinema é veterano, atribuindo às ditas imagens um simbolismo de impulso emocional. O uso tecnológico do CGI encontra-se estampado na narrativa, não como uma cobertura autodidacta que muitas produções hollywoodescas de grande orçamento parecem manifestar, mas servido de bandeja para a concepção de tais ideias, eventualmente transmitidas acima do conceito.

“Eternal Sunshine of a Spotless Mind” é um filme independente até mesmo na sua forma de pensar, na instalação da sua narrativa e na recontagem dos parâmetros românticos que Michel Gondry assume odiar. Nesse sentido, temos uma obra que reúne dois futuros artesãos; Kaufman de um lado, a demonstrar a criativa manobragem em intrigas existencialistas e dotadas de um pálido humor, neste caso a existência está na própria natureza da inteligência emocional, e Gondry do outro, como um VJ que tenta preencher as lacunas da sua imagem (curiosamente Lacuna é o nome da empresa contratada por Jim Carrey) e compensar os seus erros anteriores (o realizador enumerou todos os fatores que conduziram o seu “Human Nature” para o conhecido fracasso). Uma dupla que adopta a febril experimentalidade da encarnação do amor platónico no grande ecrã, sucedendo, em certa parte, ao trabalho inspirado de Sofia Coppola em “Lost in Translation''. E como jeito de curiosidade, ambos os filmes vêm no "sussurro" um forma de twist!

Mas no seio deste confronto de egos artísticos e sede de criação, Jim Carrey a batalhar por um lugar na reminiscência do espectador, possivelmente fazendo-o esquecer que foi em tempos o denominado sucessor de Jerry Lewis. Apesar da sua estrutura anárquica aos modelos do romance estabelecido e estagnado, “Eternal Sunshine of a Spotless Mind” tem tudo para ser considerado um dos mais ricos do seu tempo.

Dia do Trabalhado e tartes passionais!

Hugo Gomes, 13.02.14

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Baseado num romance homónimo de Joyce Maynard, “Labor Day” (“Um Segredo do Passado” como título português) remete-nos à depressiva Adele (Kate Winslet), que sofre com um inesperado divórcio, e o seu filho adolescente Henry (Gattlin Griffith), que parece viver somente para compensá-la do amor perdido que vivem na pacífica Holton Mills, Nova Hampshire, onde os dias de ambos são meramente rotineiros e solitários. Porém, em vésperas do Labor Day, um feriado nacional, Adele e o  filho são abordados num supermercado por um misterioso homem, Frank (Josh Brolin), um fugitivo à polícia que pede auxílio e abrigo de forma persuasiva, soando toda esta situação inicialmente como um sequestro. Depois de integrado e barricado na casa destes, aguardando o melhor momento para fugir, Frank começa a efetuar tarefas diárias para ocupar os seus dias e aos poucos começa a corresponder às necessidades matrimoniais, eventualmente perdidas, de Adele. Ambos envolvem-se, cedendo à paixão que os tornam decididos a lutar pelo futuro, mesmo que o trágico passado de Frank assombre o casal. Mas quanto mais tempo passa, mais difícil se torna para o ex-recluso ir-se embora.

É fácil para o espectador identificar os elementos de romance cor-de-rosa nesta intriga, a síndrome de Estocolmo agradavelmente recebida pelos contos amorosos de bolso é uma das cartas da obra literária e um forte trunfo da versão cinematográfica, se estivermos a confundir “Um Segredo do Passado” com o pseudo-romantismo “à la Nicholas Spark”. Mas decidido em contornar tal subgénero, Jason Reitman (realizador e argumentista) exerce um enorme esforço em conduzir o filme para um território mais autoral. Para isso reuniu um elenco capaz de transformar personagens aprisionadas a gestos e práticas em “personas” com o qual merecem a preocupação do espectador. Nesse aspeto, Kate Winslet e Josh Brolin compõem um trabalho individualmente fascinante, a primeira a corresponder aos balanços da sua composição e o segundo a transmitir mistério e aura paternal.

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Outro ponto transposto por Reitman é a tentativa de preencher “Um Segredo do Passado” com certo tom lírico, o qual podemos evidenciar em algumas sequências adversamente cinematográficas, com a tentativa de percorrer os territórios mais sensoriais descritos no livro (entre os quais o longo cozinhado da tarte, como exemplo). Ou seja, sente-se em toda a fita essa ambição de a tornar mais pessoal que mainstream, mais lírico que visual e por fim a conversão de material visto e revisto em dramalhões com fartura em algo sentido e dedicado. Nesses termos, Jason Reitman vinga-se em concretizar um filme denso e sim, multifacetado, equilibrando a vertente mais romântica com um suspense não convidativo no livro mas simbiótico no cinema.

Assim, temos material que chegue para nos sentirmos esperançados e na maior das hipóteses ingênuas quanto ao desdobramento do romance no cinema. Contudo, "Um Segredo do Passado" não é de todo uma obra finamente orquestrada, notando-se tiques nervosos em transmitir tal irreverência autoral – a sobreposição de Reitman a Joyce Maynard – como a falta de química entre Winslet e Brolin (uma das arestas mais promissoras) e o desempenho insonso por parte do jovem Gattlin Griffith, tendo em conta a relevância do seu papel. Apesar deste ser até à data o mais fraco filme do seu realizador, Um Segredo do Passado continua mesmo assim como uma preservação dos mais variados elementos do cinema de Reitman, filho do célebre Ivan Reitman, que cada vez mais se afirma como um sólido autor. Aliás, como se pode verificar nas sequências onde os jovens protagonizam a solo, Reitman é um primor a filmar tramas adolescentes e todas as suas convicções.