Carol Duarte em "A Vida Invisível" (Karim Ainouz, 2019)
“O mundo do cinema é novo para mim“, garante Carol Duarte antes de dar início à conversa.
Tendo vindo do teatro, a atriz que se deslocou a Portugal para promover a sua obra de estreia, “A Vida Invisível”, de Karim Ainouz, falou comigo sobre a sua passagem para a sétima arte, os festivais, as telenovelas e, como não poderia deixar de ser, do estado atual do Brasil. Mas garantiu-nos que é “quase portuguesa” enquanto saboreava o seu café, continuando: “o meu pai é português, os meus avôs são portugueses, isso faz de mim praticamente portuguesa“. Curiosamente, a sua personagem, Eurídice Gusmão, é também ela descendente de portugueses.
Mais que uma atriz de passagem
Carol Duarte pode ainda ser um nome fora do panorama português quanto ao reconhecido leque artístico dos “nossos irmãos”, mas com os seus 27 anos a atriz conseguiu estar no centro dos holofotes em 2017 com a telenovela da Globo, “Força de Querer”, onde interpretava uma transexual.
O seu desempenho motivou toda uma discussão sobre mudança de sexo na sociedade brasileira da altura. Hoje, Carol olha com algum cinismo para essa mesma representação: “o Rio de Janeiro tratado pela Rede Globo é sempre a zona sul, Ipanema, Leblon, etc. Essa elite, na qual a minha personagem Ivana / Ivan nasce e cresce, já tem nele uma percentagem de 80% de aceitação. Se você colocasse esta personagem que interpretei numa favela, negra, pronto! Poderia colocar os variados adjetivos, mas só colocando estes, a história seria bem diferente. O Ivan tinha desde o início a possibilidade de fazer cirurgia, retirada da mama, hormonizar-se. Já o ‘outro’, sem esse acesso, se dissesse que se chamava Ivan, o caso seria bem diferente.“
Depois de prosseguir em outras produções televisivas, a atriz aceitou este novo trabalho de Ainouz, realizador que tem aos poucos deixado marca no cinema desde “Madame Satã” ou “Praia do Futuro”, como coprotagonista de um filme de época, onde o passado dialoga tão bem com o presente: “uma realidade não tão distante“. Carol concorda que o cenário de "A Vida Invisível" é um pré-reflexo do que hoje se presencia no Brasil do século XXI, afirmando que “sempre que avançávamos com pautas mais progressistas, esta onda conservadora afagava e não saia dali. Aquele ‘germe’ permanecia.“
A visibilidade no romance de Martha Batalha
Em “A Vida Invisível”, Carol Duarte interpreta Eurídice Gusmão, uma jovem carioca de raízes portuguesas que é constantemente desafiada pela sua condição de mulher. Esses obstáculos sociais vão desde o patriarcado entranhado nesse Rio de Janeiro de ’50 que condiciona o papel feminino como meramente reprodutor, e os seus constantes desencontros com Guida, a sua irmã, expulsa de casa e que deambula por entre as ruas cariocas de forma a refazer a sua própria vida. Essa congénere que desencadeará toda uma narrativa amargurada que consolidará com um final emocional sob os signos da grande diva do cinema brasileiro (Fernanda Montenegro), é interpretada por Julia Stockler. “Conhecemo-nos um mês antes da rodagem. Admiro muito a Julia, acho que ela é uma atriz incrível e não conhecia nada do seu trabalho. A Eurídice e a Guida funcionam tão bem juntas, muito graças à Julia, e não sei se conseguiria com outra atriz. Ela tem uma inteligência de cena, a sensualidade necessária para a sua personagem, um contraponto para com a minha. No final, Guida era aquilo que Eurídice gostaria de ser. (…) Foi criada uma parceria muito bonita, sem interferência de egos, pois tal não coube a mim, nem à Julia.”
“O Karim mergulhou-nos a fundo nas nossas personagens. Foi um mês sem conseguir pensar em mais nada. (…) Havia alturas que ele não nos deixava falar uma com a outra [risos].” explica. “A Vida Invisível” é a adaptação do homónimo romance de Marta Batalha, o qual remete a toda a violência diária cometida à mulher, não necessariamente num contexto físico, mas até mesmo social, como a ideia estabelecida do matrimónio. “O Karim escolheu muito bem. A casa da Eurídice tem uma vista bonita, mas tem grades na janela. É uma gaiola. O seu casamento é o enclausuramento (…) A violência dela é o mais silencioso, é o que ocorre dentro de casa, é aquele Natal de família em que ninguém vai falar das violências expostas. Muito angustiante, porque toda a construção da Eurídice não é dita”
“O filme é muito mais cruel, mais realista”, diz a atriz comparando a adaptação com a sua fonte: “o livro é extremamente diferente, é de um tom meio romântico e até esperançoso. A Eurídice, por exemplo, vai engordando como um método para o seu ‘marido’ não encostar nela. O romance tem algo de poético e literário que é de difícil adaptação. O Murilo Hauser, que foi quem adaptou, fez um trabalho genial. Trabalhou com a essência das personagens e trouxe isso para o argumento do filme. (…) A adaptação foi muito interessante, pois o Karim gosta muito de improviso, mesmo com o guião pronto. Tínhamos a possibilidade de criar algo durante a rodagem.“
Eu e Carol Duarte
A histeria envolta do pénis de Gregório Duvivier
Muita da crítica ficou chocada com a nudez masculina, nomeadamente a frontal do ator e comediante Gregório Duvivier (“Porta dos Fundos”), que desempenha o marido de Eurídice. A dita cena acontece na noite de núpcias, o que motivou a uma reflexão de como a nudez feminina está normalizada no cinema e o ‘tabu’ presente quando um homem está nu. Questionada, Carol Duarte responde: “Muita ‘gente’ me perguntava como era o pénis do Gregório mesmo? [riso] É uma coisa meio estranha. Mas antes de fazer este filme tinha uma ideia de que era ‘o porquê de ver violência sexual, um corpo feminino a ser violado?’ Não é agradável. No caso deste filme, ele tem um mise-en-scéne, um propósito que para mim é interessante. Por exemplo, existem pessoas que não acham aquela cena violenta, sexualmente, e eu acho ‘engraçado’ ouvir isso. Eu perguntava, ‘mas porque achas engraçado?’, e respondiam-me coisas como ‘os dois estavam bêbados e tal’. Cheguei mesmo numa entrevista a questionar: ‘quando é que começa uma violação?‘
“O Karim faz algo interessante aqui, porque a sexualização masculina é muitas vezes construida, e acho isso péssimo para os homens, à volta da pornografia. E nesta cena de sexos é ruim, eles batem as costas, ele vira e puxa, e o Karim pedia ao Gregório para arfar que nem um ‘bicho’. Sim, não é agradável de se ver, é muito real, mas o irreal era o facto de que em muitas sessões do filme, as pessoas riam nessa cena. Até podia ser um riso de nervosismo. As pessoas não sabem reagir, possivelmente ficam constrangidas.”
O futuro de Eurídice, o futuro do cinema no Brasil.
O filme tornou-se no candidato brasileiro aos Oscars de Melhor Filme Internacional, porém, não passou da pré-seleção. Para Carol Duarte, não existem dúvidas: “Parasites”, de Bong Joon-ho, filme sul-coreano que a própria considera “bom”, vencerá a categoria [e venceu]. Contudo, a atriz salientou o valor do prémio conquistado em Cannes, na secção Un Certain Regard: “nenhum filme brasileiro tinha ganho este prémio. (…) Não conheço os critérios para o Oscar, nem muito menos para Cannes. Sinceramente, não sei o que faltou ao nosso filme“.
“A Vida Invisível” é visto, tendo à luz o incerto futuro do audiovisual brasileiro, nomeadamente a ANCINE (Agência Nacional de Cinema), como um marco de resistência de um cinema que poderá não mais existir. Na conversa, foi invocado uma outra obra que simbolizou essa mesma luta: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. A atriz faz um paralelismo entre os dois filmes e, sobretudo, dos dois realizadores [Kleber e Karim]: “são dois realizadores nordestinos que não estão nesse eixo Rio/São Paulo, e que surgem após um buraco no cinema nacional, numa época de cortes. No final da década de 90 surgiu toda uma aposta na informação, em cursos de cinema, e os dois são reflexos de um momento de não-movimento cultural brasileiro.”
“Eu também sou um pouco fruto disso. Comecei a fazer teatro na periferia, no centro de arte do bairro, ou seja público. Hoje em dia, isso não existe mais. Os dois pertencem à mesma leva e o “Bacurau” tem um discurso político muito claro. Não é à toa que o filme teve uma repercussão mundial. Há um tipo de pensamento que se está a difundir no mundo. Não sei como um estrangeiro encara aquilo, mas para um brasileiro todas aquelas referências que o Kleber usa são tão fáceis de identificar (…) “A Vida Invisível” é um filme mais privado, fala sobre aquelas mulheres, mas dentro dessa cultura, desses homens que acercam. Numa estrutura intrinsecamente patriarcal, tem um germe de um pensamento – super-conservador – que salta à vista. E não é por acaso que foram dois filmes tão indesejados pelo atual governo.”
“Na época do PT, do Lula, claro que existiram problemas seríssimos, mas eles tinham uma visão um pouco mais humanista“, explica Carol Duarte, abordando o já inevitável “hoje” do Brasil, sob a governação de Bolsonaro e o seu leque de ministros. “Estas pessoas não estavam ausentes, elas sempre existiram, a questão é que elas estavam num ‘cantinho’ quietas. Não eram racistas nem homofóbicas tão claramente. Hoje encontram-se legitimadas, por isso, podem muito bem ser o que bem entenderem, mesmo que esses atos sejam um crime. Mas se um Presidente da República fala, porque não falarão [os outros].”
"A Vida Invisível" (Karim Ainouz, 2019)
Sobrevivência do cinema brasileiro
“Todo o filme autoral que vier do Brasil, vai ser uma espécie de resistência. A Netflix vai continuar a produzir, assim como as grandes produtoras. Até mesmo o Karim, o Kleber Mendonça, que são grandes cineastas, vão continuar a produzir. Mas e a próxima geração? Os que estão vindo agora? O realizador que tem a minha idade e que poderia estar a fazer filmes? Isso vai ser mais difícil. Temos que encontrar novas formas de viabilização e de produção, e isso tem a ver com política pública e com estética também. Com a escolha que vamos fazer para viabilizar um filme. (…) Quando tu viabilizas um projeto mais autoral que está na contramão desta vigência louca que é esse conservadorismo, é resistência. Mas nunca foi tão fácil assim. Anteriormente era mais fácil, hoje ficará mais difícil, porém, é o que temos. (…) No outro dia falava com um colega, da periferia, que me disse: ‘censura sempre houve, principalmente para o ‘cara’ que filma com os negros e produz um cinema algo à margem’. O dinheiro vai sempre para os mesmos, para a elite. Por vezes, os artistas que mais reclamam são de uma classe mais elitista, não com isso insinuar que não devem lutar, até porque todo o tipo de cinema deve ser feito. Mas o cinema mais periférico nunca teve espaço, sempre cavou à procura de formas de produção. E quando é que vai estar em Cannes? Quando é que vai estar no Oscar?” rematou a atriz, sublinhando os que ainda continuam “invisíveis”, com ou sem Bolsonaro no poder.