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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Equus Ex Machina

Hugo Gomes, 19.08.24

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Em conferência de imprensa em Cannes deste ano [2024], Karim Aïnouz ligava a imagem do motel, brasileiramente falando, com a de um país hipócrita, cujos desejos, muito deles reprimidos só poderiam ser concretizado no refúgio destes lugares, com pouco contacto com o exterior, e sob o sigilo monetário. Será isto a sua representação de Brasil? Uma sociedade vivida com intensidade no oculto? 

Quanto a “Motel Destino”, o filme que o motivou a essa relação, é previsivelmente o encarar dessa metáfora, até porque o estabelecimento do qual título partilha com o filme, revela-se num abrigo “mágico” de Heraldo (o estreante Iago Xavier), que após um noite a tresandar sexo ocasional, acorda, algumas horas depois, roubado pela sua companheira de passagem. Incapacitado de pagar a estadia, pede auxilio a Dayana (Nataly Rocha), funcionário do local (e devido a sua relação com o proprietário, meia-dona daquilo tudo), e prossegue em modo relâmpago para a tarefa pedente, mas atrapalhada pelo lapso temporal. 

Heraldo, juntamente com o seu irmão, Jorge, tinham como plano assassinar um francês residido naquela cidadela cearense, como forma saldar a dívida para com a máfia local. Chegou tarde demais, e como era “esperado”, o francês continuava vivo e o seu irmão morto. A cabeça do nosso protagonista está agora a prémio, tendo como única solução regressar ao motel e pedir asilo. Durante dias, na sombra dos corredores que dão acessos às alas privadas, autênticas montras lascivas, sob olhar atento do gerente, e também esposo tóxico de Dayana, Elias (Fábio Assunção, ex-galã de novela, aqui cedido à decadência que lhe aufere um lúdico antagonista), Heraldo torna-se num “faz-tudo”, até cometer um (outro) erro na sua vida: envolver-se com Dayana

Com uma direção fotográfica assinada pela sua colaboradora habitual, a francesa Hélène Louvart (A Vida Invisível de Eurídice Gusmão e “Firebrand”), “Motel Destino” proclama um certo onirismo suado enquanto retrata aquele cerco agora criado para conter Heraldo e a sua tentação. Um interior que se vai confortando até ser, isso mesmo, o exterior como perigo iminente. Toda a vez que o nosso protagonista sai do seu recinto, tememos pela sua vida, da mesma forma que de fora para dentro, de clientes sarados a “fantasmas do Natal passado”, até aos acidentes animalescos (a cobra como carga simbólica bíblica evidente - “problemas no paraíso!”), tudo chega-lhe sob um toque de aviso ou sinal xamânico. 

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Aïnouz regressa aos guetos de mística e sexualidade ali reencontrados na encruzilhada do ilícito (“Madame Satã” como a sua maior auto-referência), ou dos desencontros, essa nova estância perdurante na sua filmografia, e cujo apogeu repousou na sua adaptação de Martha Batalha (A Vida Invisível, como esquecer?). Aqui, o desencontro não é uma traição do destino, mas antes uma sorte em que o espectador deseja prevalecer. “Motel Destino”, por outro lado, ostentando uma pobreza disfarçada, como pechisbeque se tratasse, com neons e cores obtusas cobrindo as suas limitações técnicas (mais um ponto para Louvart!), mas que nunca atingem a gravidade dramática ansiada por Karim Aïnouz

A culpa? Esta recai sobretudo na fragilidade do protagonista - Iago Xavier - isento de ferramentas performativas para abraçar a sua tragicidade. Há pelo menos dois momentos que a sua emotividade de jardim-escola retrai as ênfases e a dramaturgia que as cenas em questão suplica; uma delas na intenção confessionária do seu passado, algo trágico, não só à personagem de Rocha como também, indiretamente, ao espectador, sendo que a outra, lá mais perto do final, como o Auto da Barco do Inferno numa declaração de resiliente (“Nasci com um alvo no peito”) proclamado com frouxidão. A sua sorte, porém, como a de Aïnouz, é Rocha e ainda mais Assunção (com aquelas vibes à “pornochachada”) a assumirem-se reforços. 

Cai o pano, ou melhor, o cavalo (ao ver o filme entenderão!) e o que fica é um exercício de crítica social que vai em corrente oposta ao muito, e dito, “cinema brasileiro político”, este fraquejado pela sua sobre-literalidade. “Motel Destino”, como faz Kleber Mendonça Filho desde … sempre talvez … utiliza a sua geografia como holofote alegórico. É o motel como espelho do Brasil, esse país que Karim Aïnouz proclama encontrar. Um país a viver loucamente nas suas sombras, só que o tal "sombreado" ostenta tons carnavalesco. Bem haja …

Os Melhores Filmes de 2020, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 31.12.20

Nem sequer vou debruçar sobre o ano 2020 (essa data em que cada um de nós possui uma história particular para contar, possivelmente com desilusões e adversidades no meio) mas, como chegou aquela altura que se torna quase imperativo nomear 10 filmes (com estreia comercial no nosso pais) para os já habituais pódios, eis que, por fim, meto as mãos à obra. E mesmo sob adiamentos, cancelamentos, migrações para streamings, eis um cinema ainda rico de emoções, temáticas e estilos que, por momentos, fizeram-nos esquecer os 'coronavírus' e o mundo de avesso. Aqui, neste leque, o conflito israelita-palestino contínua presente, o Brasil demonstra a sua resistência e urgência, as mulheres tornam-se protagonistas das mais ricas narrativas do ano e a Reboleira é palco de uma das maiores evasões do cinema português. Eis que segue os meus 10 filmes de 2020:

 

#10) The Invisible Man

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“Se haverá sequela, universo partilhado ou "spin-offs" de qualquer natureza ainda é cedo para prever, mas, por enquanto, Leigh Whannell conseguiu um filme que vive por si só e, ao contrário do seu “monstro”, não tenciona mesmo passar despercebido. E com isso temos aqui uma entusiasta surpresa do cinema de género entregue por um grande estúdio de Hollywood.” Ler aqui

 

#09) There is No Evil

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Tido como um dos ditos realizadores iranianos “proibidos”, Mohammad Rasoulof comprometeu a sua carreia a denunciar, o que o levou (e leva) a inúmeras sentenças e consequências em território nacional. Com There is No Evil, vencedor do Urso de Ouro no último Festival de Berlim, prova, além da sua habilidade de “whitlesblower”, uma capacidade narrativa e de extrema sensibilidade (sem maniqueísmos propagandistas). Através do tema da pena de morte, ainda em uso no Irão, Rasoulof expõe quatro histórias sobre contactos diretos e indiretos para com essa questão político-social. Um relato que vai desde as vítimas até carrascos, decisões a dilemas, paz e tormento, passando por um primeiro ato de pulsações arendteanas [“A Banalidade do Mal”] até a um montanhoso e intacto limbo para acarretar culpas e humanismos. Sim, é um filme de tema a demonstrar que é mais do que somente o seu mesmo, é Cinema com causas e efeitos.  

 

#08) Les Miserábles

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“Mais do que tudo, o realizador Ladj Ly prova o seu conhecimento, a sua vivência e a sua humanidade. A sua sede por um cinema de sangue na guelra, imparcial e, ao mesmo tempo, que denuncia sem ser ideologicamente agressivo ou ter alicerces nas tendências do "cinema verité" [cinema-verdade].” Ler aqui

 

#07) Corpus Christi

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““Corpus Christi” revela-se encantado com esses métodos de redenção, na farsa que impõe e prolonga, com frieza técnica e o desempenho visceral do seu protagonista, Bartosz Bielenia, o qual, como Cristo, “abraça” o seu estatuto de mártir em cada missa. Com um olhar atento à imagem do seu Salvador, segundos antes de dar início à sua leitura religiosa para com os demais, (...)  poderia ser um "running gag", mas é uma reflexão da nossa capacidade de superar adversidades, cinicamente ligada ao estatuto que ansiamos ter neste mundo.” Ler aqui

 

#06) O Fim do Mundo

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“O Fim do Mundo” “captura” um universo em extinção e o encara como a sua propriedade, preservado em âmbar, neste caso em filme com as promessas da sua “eternidade”. Uma coprodução luso-suíça que envergonha muitos da sua espécie e da sua nacionalidade pela forma como bravamente utiliza o “know-how”, pavimento de sugestões, fora-de-campos e o “desenrasque” (palavra tão portuguesa) para nunca perder a credibilidade deste quadrante de violência em cada esquina.” Ler aqui

 

#05) Portrait de la Jeune Fille en Feu

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Jean-Claude Brisseau deixou-nos somente há poucas semanas, mas é um facto que sentimos aqui uma réstia da sua vida no convívio espectral que Portrait de la jeune fille en feu estabelece entre a carnalidade dos corpos das atrizes até às premonições de um fim próximo: “Porque que é que os amantes sempre pensam que estão a inventar o romance?“. Não se fica pela coincidência o nome da realizadora com o filme Celine de Brisseau, ou do referido contrato com as entidades extranaturais, mas também a exploração do prazer feminino, embrulhado sob uma definição de romance platónico, que já por si é um dos temas cada vez mais tabus para direções masculinas.” Ler aqui [texto escrito durante a sua estreia no Festival de Cannes]. 

 

#04) It Must be Heaven

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“Portanto, em “It Must Be Heaven” somos deixados à geopolítica e com isso à globalização da sua mensagem, partindo para Paris até Nova Iorque, reconhecendo as metrópoles como um novo exotismo. Elia Suleiman filma-se a si próprio perante uma narrativa episódica, nada de igualmente novo na sua filmografia, porém, a sua costura autoral é gradualmente entorpecida perante um jogo de vontade. Saindo de Nazaré com um medo transluzente no seu olhar, deixando para trás os limoeiros que observa da sua varanda, as mulheres beduínas que carregam iogurtes pelo olival a dentro e os sacerdotes enfurecidos perante os rituais interrompidos (desta vez sem intervenção divina), e encarando um “Novo Mundo” com quem sente na pele a (desacreditada) Guerra sem fim (até mesmo o seu recorrente “I put a spell on you” entra na festa como uma recordação agridoce).” Ler aqui

 

#03) A Vida Invisível 

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“Este talvez seja, possivelmente, um dos filmes brasileiros mais belos dos últimos anos, que entra em diálogo com o mais belo produzido desta década – Elena, de Petra Costa. Ambos tornam-se cúmplices à melancólica derrota do desejo, o reencontro de um amor que só poucos perceberão a sua dimensão e que é disposto como uma busca à eternidade. A união que se desmaterializa como uma fantasia perante a ausência.” Ler aqui

 

#02) About Endlessness

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““Da Eternidade” nada restará (nem mesmo as ideologias com que abraçamos, aqui de maneira pictórica numa recriação do quadro “O Fim de Hitler”, de Kukryniksy), a futilidade da nossa sociedade que depende do transporte diário que encaminha milhões para as suas respetivas habitações como o seu mais consagrado Deus, marcando oposição a toda aquela matéria que supostamente constitui a alma. A nossa existência é ridícula, e até mesmo mesquinha, e Roy Andersson bem o sabe.” Ler aqui

 

#01) Martin Eden

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“Martin Eden” é, para todos os efeitos, um filme de coração-artista: tumultuoso e inquietante numa sufocante ânsia em criar a todo o custo. É assim a personagem (figura refém do desempenho anárquico e igualmente magistral de Luca Marinelli), é assim a obra que busca livremente os sopros do homónimo trabalho literário de Jack London (de cariz autobiográfico) para proclamarem como seus numa Itália abstrata e enevoada quanto à perceção de século XX.” Ler aqui

 

Menções honrosas - Small Axe: Lovers Rock, Mosquito, Uncut Gems, Da 5 Bloods, Soul

Carol Duarte e os “invisíveis” na vida de Eurídice Gusmão

Hugo Gomes, 12.02.20

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Carol Duarte em "A Vida Invisível" (Karim Ainouz, 2019)

O mundo do cinema é novo para mim“, garante Carol Duarte antes de dar início à conversa.

Tendo vindo do teatro, a atriz que se deslocou a Portugal para promover a sua obra de estreia, A Vida Invisível”, de Karim Ainouz, falou comigo sobre a sua passagem para a sétima arte, os festivais, as telenovelas e, como não poderia deixar de ser, do estado atual do Brasil. Mas garantiu-nos que é “quase portuguesa” enquanto saboreava o seu café, continuando: “o meu pai é português, os meus avôs são portugueses, isso faz de mim praticamente portuguesa“. Curiosamente, a sua personagem, Eurídice Gusmão, é também ela descendente de portugueses.

 

Mais que uma atriz de passagem

Carol Duarte pode ainda ser um nome fora do panorama português quanto ao reconhecido leque artístico dos “nossos irmãos”, mas com os seus 27 anos a atriz conseguiu estar no centro dos holofotes em 2017 com a telenovela da Globo, “Força de Querer”, onde interpretava uma transexual.

O seu desempenho motivou toda uma discussão sobre mudança de sexo na sociedade brasileira da altura. Hoje, Carol olha com algum cinismo para essa mesma representação: “o Rio de Janeiro tratado pela Rede Globo é sempre a zona sul, Ipanema, Leblon, etc. Essa elite, na qual a minha personagem Ivana / Ivan nasce e cresce, já tem nele uma percentagem de 80% de aceitação. Se você colocasse esta personagem que interpretei numa favela, negra, pronto! Poderia colocar os variados adjetivos, mas só colocando estes, a história seria bem diferente. O Ivan tinha desde o início a possibilidade de fazer cirurgia, retirada da mama, hormonizar-se. Já o ‘outro’, sem esse acesso, se dissesse que se chamava Ivan, o caso seria bem diferente.“

Depois de prosseguir em outras produções televisivas, a atriz aceitou este novo trabalho de Ainouz, realizador que tem aos poucos deixado marca no cinema desde “Madame Satã” ou “Praia do Futuro”, como coprotagonista de um filme de época, onde o passado dialoga tão bem com o presente: “uma realidade não tão distante“. Carol concorda que o cenário de "A Vida Invisível" é um pré-reflexo do que hoje se presencia no Brasil do século XXI, afirmando que “sempre que avançávamos com pautas mais progressistas, esta onda conservadora afagava e não saia dali. Aquele ‘germe’ permanecia.

 

A visibilidade no romance de Martha Batalha

Em “A Vida Invisível”, Carol Duarte interpreta Eurídice Gusmão, uma jovem carioca de raízes portuguesas que é constantemente desafiada pela sua condição de mulher. Esses obstáculos sociais vão desde o patriarcado entranhado nesse Rio de Janeiro de ’50 que condiciona o papel feminino como meramente reprodutor, e os seus constantes desencontros com Guida, a sua irmã, expulsa de casa e que deambula por entre as ruas cariocas de forma a refazer a sua própria vida. Essa congénere que desencadeará toda uma narrativa amargurada que consolidará com um final emocional sob os signos da grande diva do cinema brasileiro (Fernanda Montenegro), é interpretada por Julia Stockler.Conhecemo-nos um mês antes da rodagem. Admiro muito a Julia, acho que ela é uma atriz incrível e não conhecia nada do seu trabalho. A Eurídice e a Guida funcionam tão bem juntas, muito graças à Julia, e não sei se conseguiria com outra atriz. Ela tem uma inteligência de cena, a sensualidade necessária para a sua personagem, um contraponto para com a minha. No final, Guida era aquilo que Eurídice gostaria de ser. (…) Foi criada uma parceria muito bonita, sem interferência de egos, pois tal não coube a mim, nem à Julia.

O Karim mergulhou-nos a fundo nas nossas personagens. Foi um mês sem conseguir pensar em mais nada. (…) Havia alturas que ele não nos deixava falar uma com a outra [risos].” explica. “A Vida Invisível” é a adaptação do homónimo romance de Marta Batalha, o qual remete a toda a violência diária cometida à mulher, não necessariamente num contexto físico, mas até mesmo social, como a ideia estabelecida do matrimónio. “O Karim escolheu muito bem. A casa da Eurídice tem uma vista bonita, mas tem grades na janela. É uma gaiola. O seu casamento é o enclausuramento (…) A violência dela é o mais silencioso, é o que ocorre dentro de casa, é aquele Natal de família em que ninguém vai falar das violências expostas. Muito angustiante, porque toda a construção da Eurídice não é dita

O filme é muito mais cruel, mais realista”, diz a atriz comparando a adaptação com a sua fonte: “o livro é extremamente diferente, é de um tom meio romântico e até esperançoso. A Eurídice, por exemplo, vai engordando como um método para o seu ‘marido’ não encostar nela. O romance tem algo de poético e literário que é de difícil adaptação. O Murilo Hauser, que foi quem adaptou, fez um trabalho genial. Trabalhou com a essência das personagens e trouxe isso para o argumento do filme. (…) A adaptação foi muito interessante, pois o Karim gosta muito de improviso, mesmo com o guião pronto. Tínhamos a possibilidade de criar algo durante a rodagem.“

 

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Eu e Carol Duarte

 

A histeria envolta do pénis de Gregório Duvivier

Muita da crítica ficou chocada com a nudez masculina, nomeadamente a frontal do ator e comediante Gregório Duvivier (“Porta dos Fundos”), que desempenha o marido de Eurídice. A dita cena acontece na noite de núpcias, o que motivou a uma reflexão de como a nudez feminina está normalizada no cinema e o ‘tabu’ presente quando um homem está nu. Questionada, Carol Duarte responde: “Muita ‘gente’ me perguntava como era o pénis do Gregório mesmo? [riso] É uma coisa meio estranha. Mas antes de fazer este filme tinha uma ideia de que era ‘o porquê de ver violência sexual, um corpo feminino a ser violado?’ Não é agradável. No caso deste filme, ele tem um mise-en-scéne, um propósito que para mim é interessante. Por exemplo, existem pessoas que não acham aquela cena violenta, sexualmente, e eu acho ‘engraçado’ ouvir isso. Eu perguntava, ‘mas porque achas engraçado?’, e respondiam-me coisas como ‘os dois estavam bêbados e tal’. Cheguei mesmo numa entrevista a questionar: ‘quando é que começa uma violação?

O Karim faz algo interessante aqui, porque a sexualização masculina é muitas vezes construida, e acho isso péssimo para os homens, à volta da pornografia. E nesta cena de sexos é ruim, eles batem as costas, ele vira e puxa, e o Karim pedia ao Gregório para arfar que nem um ‘bicho’. Sim, não é agradável de se ver, é muito real, mas o irreal era o facto de que em muitas sessões do filme, as pessoas riam nessa cena. Até podia ser um riso de nervosismo. As pessoas não sabem reagir, possivelmente ficam constrangidas.

 

O futuro de Eurídice, o futuro do cinema no Brasil.

O filme tornou-se no candidato brasileiro aos Oscars de Melhor Filme Internacional, porém, não passou da pré-seleção. Para Carol Duarte, não existem dúvidas: “Parasites”, de Bong Joon-ho, filme sul-coreano que a própria considera “bom”, vencerá a categoria [e venceu]. Contudo, a atriz salientou o valor do prémio conquistado em Cannes, na secção Un Certain Regard: “nenhum filme brasileiro tinha ganho este prémio. (…) Não conheço os critérios para o Oscar, nem muito menos para Cannes. Sinceramente, não sei o que faltou ao nosso filme“.

A Vida Invisível” é visto, tendo à luz o incerto futuro do audiovisual brasileiro, nomeadamente a ANCINE (Agência Nacional de Cinema), como um marco de resistência de um cinema que poderá não mais existir. Na conversa, foi invocado uma outra obra que simbolizou essa mesma luta: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. A atriz faz um paralelismo entre os dois filmes e, sobretudo, dos dois realizadores [Kleber e Karim]: “são dois realizadores nordestinos que não estão nesse eixo Rio/São Paulo, e que surgem após um buraco no cinema nacional, numa época de cortes. No final da década de 90 surgiu toda uma aposta na informação, em cursos de cinema, e os dois são reflexos de um momento de não-movimento cultural brasileiro.

Eu também sou um pouco fruto disso. Comecei a fazer teatro na periferia, no centro de arte do bairro, ou seja público. Hoje em dia, isso não existe mais. Os dois pertencem à mesma leva e o “Bacurau” tem um discurso político muito claro. Não é à toa que o filme teve uma repercussão mundial. Há um tipo de pensamento que se está a difundir no mundo. Não sei como um estrangeiro encara aquilo, mas para um brasileiro todas aquelas referências que o Kleber usa são tão fáceis de identificar (…) “A Vida Invisível” é um filme mais privado, fala sobre aquelas mulheres, mas dentro dessa cultura, desses homens que acercam. Numa estrutura intrinsecamente patriarcal, tem um germe de um pensamento – super-conservador – que salta à vista. E não é por acaso que foram dois filmes tão indesejados pelo atual governo.

Na época do PT, do Lula, claro que existiram problemas seríssimos, mas eles tinham uma visão um pouco mais humanista“, explica Carol Duarte, abordando o já inevitável “hoje” do Brasil, sob a governação de Bolsonaro e o seu leque de ministros. “Estas pessoas não estavam ausentes, elas sempre existiram, a questão é que elas estavam num ‘cantinho’ quietas. Não eram racistas nem homofóbicas tão claramente. Hoje encontram-se legitimadas, por isso, podem muito bem ser o que bem entenderem, mesmo que esses atos sejam um crime. Mas se um Presidente da República fala, porque não falarão [os outros].

 

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"A Vida Invisível" (Karim Ainouz, 2019)

 

Sobrevivência do cinema brasileiro

Todo o filme autoral que vier do Brasil, vai ser uma espécie de resistência. A Netflix vai continuar a produzir, assim como as grandes produtoras. Até mesmo o Karim, o Kleber Mendonça, que são grandes cineastas, vão continuar a produzir. Mas e a próxima geração? Os que estão vindo agora? O realizador que tem a minha idade e que poderia estar a fazer filmes? Isso vai ser mais difícil. Temos que encontrar novas formas de viabilização e de produção, e isso tem a ver com política pública e com estética também. Com a escolha que vamos fazer para viabilizar um filme. (…) Quando tu viabilizas um projeto mais autoral que está na contramão desta vigência louca que é esse conservadorismo, é  resistência. Mas nunca foi tão fácil assim. Anteriormente era mais fácil, hoje ficará mais difícil, porém, é o que temos. (…) No outro dia falava com um colega, da periferia, que me disse: ‘censura sempre houve, principalmente para o ‘cara’ que filma com os negros e produz um cinema algo à margem’. O dinheiro vai sempre para os mesmos, para a elite. Por vezes, os artistas que mais reclamam são de uma classe mais elitista, não com isso insinuar que não devem lutar, até porque todo o tipo de cinema deve ser feito. Mas o cinema mais periférico nunca teve espaço, sempre cavou à procura de formas de produção. E quando é que vai estar em Cannes? Quando é que vai estar no Oscar?” rematou a atriz, sublinhando os que ainda continuam “invisíveis”, com ou sem Bolsonaro no poder.

... porque o tempo é “velhaco” e insaciável para Eurídice Gusmão

Hugo Gomes, 01.02.20

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Já em “Praia do Futuro”, o cineasta brasileiro Karim Aïnouz condenaria um filme inteiro pela promessa de reencontro, mas fá-lo sob a distinção de analisar o tempo como uma memória imutável. Em “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, as passagens temporais são sentidas por entre um ensaio sociológico de um Rio de Janeiro da década de 50.

Baseado no romance Martha Batalha, a nossa “invisibilidade” começa com uma metáfora visual, um denso mato que separa as duas irmãs, desesperadas em reencontrar-se antes da entrada do título que preencherá o ecrã. De seguida, partimos para as duas jovens, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), restringidas ao seu quarto por entre pactos, segredos e afetos vários. São filhas de imigrantes portugueses e vítimas de patriarcado conservador (nada de “surpreendente” naqueles anos). E é através de uma escapadela que por fim acompanhamos essas vidas invisíveis que se vão complementando por cartas nunca respondidas.

Invisíveis por dois termos: primeiro, pelo constante desencontro entre as duas mulheres que, cada uma à sua maneira, vão-se “fazendo” à vida como podem, com os seus infortúnios e com as suas sortes (bem, escassas diga-se por passagem); e pela interpretação, o papel da mulher nesta sociedade verdadeiramente masculina, diversas vezes sob a justificação de tradicionalismo, ou dos bons valores pregados por homens de batina durante gerações. Poderia ser um retrato de época, esse ciclo condenado do sexo feminino (desde as lidas de casa até ao papel matrimonial e fecundativo), mas esses episódios, tão bem concentrados como vinhetas quotidianas ao invés do descaramento panfletista, convertem este anacronismo como uma analogia à nossa atualidade (e não basta apenas restringi-lo ao território brasileiro).

E o tempo passa, aqui, ao contrário da anterior e referida obra de Aïnouz, é mutável, o redor destas duas personagens separadas pelo destino (interpondo-se como duas narrativas paralelas), altera-se constantemente. Mas o esquemático que poderia suscitar, é uma peça ao serviço de algo mais que somente as leis servientes da narrativa, todo ele é um quadro narrativo, porque o Tempo – com T maiúsculo – tem o seu lugar reservado como o centro desta roda.

“A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” é na sua teoria, um produto melodramático com um quiçá de novelesco, porém, a diferença não se encontra no seu material, mas sim no seu artesão e Karin Aïnouz exibe mais uma vez a sua sensibilidade, a subtileza e sobretudo o seu respeito pelo foro emocional. É sim um filme levado às lágrimas, daquelas tímidas e sorrateiras, que se entrega de corpo-e-alma à dedicação e espírito das suas meninas (Duarte e Stocker) e sob o acabamento de Fernando Montenegro, a “diva” da consolação aos sentimentos que a audiência deseja libertar.

Este talvez seja, possivelmente, um dos filmes brasileiros mais belos dos últimos anos, que entra em diálogo com o mais belo produzido desta década – “Elena”, de Petra Costa. Ambos tornam-se cúmplices à melancólica derrota do desejo, o reencontro de um amor que só poucos perceberão a sua dimensão e que é disposto como uma busca à eternidade. A união que se desmaterializa como uma fantasia perante a ausência.

Para onde irão confluir "criaturas" sentimentais?

Hugo Gomes, 19.09.15

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Constituído por três atos, “Praia do Futuro” centra-se como um conto de libertação para dar lugar a uma reconciliação afetiva. Dirigido por Karim Aïnouz - conhecido pela comunidade cinéfila como o autor de “Madame Satã”, onde a transversalidade sexual serve de pano de fundo a atípico filme de favela - esta é uma obra intimista e extensa nessa intimidade com os protagonistas, mesmo que a câmara tende em reter essa cumplicidade com as respectivas personagens. Mantido de longe, e de uma configuração fria, “Praia do Futuro”, ao contrário do que o título poderia suscitar, é um claro retrato acinzentado, detido por uma melancolia crónica, onde nem as praias de Fortaleza conseguem diferenciar de uma Alemanha subjugada a um gélido clima. Até porque o que muda nessas transições de enumerados capítulos, não são os cenários, e sim os sentimentos como as constantes nuances das suas personagens, com principal atenção ao de Donato (Wagner Moura, sim, o do “Tropa de Elite”), um nadador-salvador brasileiro que indicia um encontro com o seu ser mais profundo.

O primeiro capítulo, intitulado de “O Abraço do Afogado”, envolve-se com uma aproximação de duas figuras desconcertadas, uma delas reivindicada pela tragédia, e a outra pela manifestação pessoal e a consequência dessa. Donato encontra assim a sua "alma" repartida no seio dessa sua fatalidade vivida, quer individual ou profissional. Até aqui, “Praia do Futuro” incendiava como um romance dignamente regido aos lugares-comuns do denominado cinema "queer", mas essa incógnita é evidenciada na transição de tons que se dá pelo avanço de um segundo ato. “Um Herói Partido ao Meio”, como é assim chamado, prevalece como um singelo "coming to age", uma moldagem comportamental do nosso protagonista que se transforma a olhos vistos. Contra os seus próprios sentimentos, a saudade diversas vezes salientada é citada de forma subliminar, Wagner Moura tem o mérito de camuflar a sua figura, utilizando os seus tons camaleónicos para comunicar com a direção sugerida pela fita. O ritmo desvanece no seu todo na medula melancólica, fortemente "apimentada" no primeiro ato, agora entregue a este ato intermediário.

Esta "ponte" dará acesso ao derradeiro ato, “Um Fantasma que Fala Alemão”, onde dá-se o esperado choque temporal, contudo, a obsessão pelo protagonista durante esta jornada narrativa faz dissipar qualquer clímax assim sugerido, e a fraca apelação por personagens secundárias, que poderiam corresponder ao quotidiano de Donato, contribuem para essa amenização. Mas é neste capítulo, que Aïnouz também se liberta, e sob um jeito visual e estilístico. Não com isto dizer que o realizador vira um autêntico V.J., ou experimentalista nesse foro, mas sim demonstrando um gosto apurado no trabalho visual, compondo longos planos, isentos de diálogos, mas recheados de sentimentos puros e múltiplos.

Por entre simbolismos, como a desejada "praia sem mar", que interage com uma elipse que vai desaguar numa comovente declaração de emancipação: "Existem dois tipos de medo e dois tipos de coragem. O meu, fingir que nada é perigoso. O teu, fingir que tudo é perigoso". Pois é, Karim Aïnouz incute um ensaio sobre o quão minado é esse campo das emoções, as consequências que "explodem" e deixam seres repartidos, longe do seu mar. Intrinsecamente poético.