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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Percorrendo um mapa emocional de Hirokazu Koreeda

Hugo Gomes, 01.07.20

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Após 20 anos de carreira no Japão, passando de documentarista televisivo a um dos mais respeitados cineastas nipónicos da atualidade, e depois de cumprir com distinção máxima o Festival de Cannes (Palma de Ouro com “Shoplifters”, em 2018), Hirokazu Koreeda utiliza essa experiência como pretexto de embarque em novas geografias. Aqui (França), um realizador estrangeiro perante um elenco de luxo como este facilmente seria “engolido” pelas diferentes manivelas desta indústria ou dos egos profundos dos seus “novos” atores. Koreeda, tão diluído na cultura-mãe, vê-se obrigado a adaptar-se a um novo ambiente, concretizando com este “ La Vérité” (“A Verdade”) o que aparentemente seria o seu filme mais anónimo, numa ode à resistência autoral.

Face ao egocentrismo de Catherine Deneuve num perpétuo jogo de reflexos (existe na sua personagem, não uma autobiografia, mas uma perceção da sua personificação cinematográfica), o nipónico taticamente opera num registo de engodos lançados à ficção. Desengane-se quem pensar que o realizador encontra-se absorvido nos ambientes de glamour da indústria francesa e das suas respetivas lendas vivas, até porque essas características são peões numa tremenda partida à moda de Koreeda. Poderemos percorrer o seu território em dois pontos.

O primeiro, sendo o mais evidente – a família como vetor de toda a trama. Aqui, Juliette Binoche interpreta uma filha que a passos tenta reencontrar-se com a sua mãe (Deneuve), não através da distância física que se encontra exposta nos caminhos paralelos que ambas seguiram (ela vivendo nos EUA, enquanto a progenitora continuava celebrizada como atriz na França), mas pelos afetos negados, negligenciados e sobretudo desencontrados. “ La Vérité” usufruiu dessa aproximação como cadência própria da sua espessura dramática, esta melosa e sorrateira como é habitual no cinema de Koreeda.

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O segundo ponto, este mais “tricky”, remete-nos à memória ilustrada que a obra do realizador sempre nos pontuou. Quem se lembra da urgência de registar fotograficamente uma separação em “Like Father, Like Son” (2013)? Ou, ainda mais longínquo, o paraíso hipotético de “After Life” (1998), onde as almas recém-falecidas têm de optar por uma das suas queridas recordações como um eterno loop de “existência” (estas, curiosamente, não seriam autênticas, mas encenações de uma equipa de anjos-cineastas). Pois, é através desse trabalho, ainda inédito em Portugal, que deparamos com os propósitos da persuasão de Koreeda na criação da memória através da imagem replicada. O dispositivo requerido é a rodagem de um filme dentro de um filme e a extração emocional de uma invocação memorialista. É o dedo do cineasta, com cumplicidade de uma Deneuve pronta para desarmar-se das suas “armas de resistência”.

Na “A Verdade” (mata-se aqui dois coelhos duma cajadada só) são esses os dois pontos que nos fazem, enquanto espectadores, aproximar do filme em si, demonstrando que o cinema de Koreeda está mais universal que nunca.

O "acting" como demarcação social

Hugo Gomes, 18.04.17

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Bruno Dumont é o senhor do burlesco, a pitoresca caricatura que adquire a absoluta forma cinematográfica, e conseguiu transmitir tal aura em “Petit Quinquin”, uma minissérie que tentou a sua sorte como longa-metragem (uma longa, mas relevante metragem da sua carreira). “Ma Loute”, por outro lado, segue a passos essa marca estabelecida, remetendo-nos a um enredo da Belle Époque, onde o início do século parecia revelar-se num magnífico quadro de aristocracias mecanizadas, porém, iludidas a uma miragem. E essa mesmo, resultando sob ecos da Revolução Francesa, o poço cada vez mais fundo que separa classes. Tema que persegue o espírito “gaulês”, os franceses teimam em focar nas suas fitas a divergência recorrente no Cinema e “Ma Loute” não é exceção. Só que, vejamos, a linguagem é simplesmente outra.

Em 1928, Louise Brooks, atriz norte-americana, chegaria à Europa para se concentrar num novo rumo da sua carreira. Entre os filmes que desempenhou no Velho Continente, destaca-se “Pandora’s Box” (“A Boceta de Pandora”), onde interpretava uma sedutora, os primórdios da crescente imagem da femme fatale. A sua arma de sedução era uma, o seu método de desempenho, algo vincado no realismo dos atos que entra em contraste com o drama teatral dos atores europeus da altura. E foi nesse contraste que soube-se criar uma nova linguagem narrativa, a linguagem derivada da interpretação. Anos mais tarde, Federico Fellini concentrou em atribuir um tom quase alienígena para a burguesia pseudo-cultural representada em “La Dolce Vita”, seres estranhos que se destacavam do resto do Mundo em constante decadência pelos seus respectivos e gravitacionais egos que os isolavam às suas fantasias anteriores.

Em “Ma Loute”, a tal linguagem narrativa encontra-se perfeitamente estabelecida nesta diferença de classes, nota-se o “underacting” dos camponeses deste vilarejo costeiro, e o “overacting” da aristocracia que eventualmente surge em cena, com Fabrice Luchini e Juliette Binoche à cabeça. O ridículo das sequências protagonizadas servem, não como um veículo de comédia, mas como uma reflexão de um grupo em vias de se extinguir, portanto perdoa-se os veios oníricos e o paradoxismo que se escuta como brisa marítima neste filme que resiste à sua memória. A memória de um cinema sem medo da reprovação do espectador, um cinema que ergue a visão do seu autor em prol de uma mensagem, do que providenciar um género, neste caso, como fora caído em erro, a comédia como um círculo fechado. Não, “Ma Loute” espelha uma diversidade de tons que desaguam para um exercício de alienação interpretativa, aliás o foco dessa crítica é tão evidente, a burguesia iluminista é somente uma espécie extinta, só que ainda não haviam percebido tal desaparecimento.

Contudo, nem tudo é perfeito. Dumont tende a cansar com o seu registo. Os tons perdem fôlego e a partir daí é óbvio que dialoga cada vez mais alto. É então que, sem conseguir segurar a tragicomédia de gostos nos carris, “Ma Loute” verga-se pela caricatura fácil, principalmente no seu grande comic relief, que à imagem do anterior “Petit Quinquin”, é uma homenagem aos clowns que perpetuam na nossa memória cinéfila. Se em “‘Quinquin” era a alusão dos Irmãos Marx a resultar na autoridade, em “Ma Loute” são os clássicos Laurel e Hardy sob iguais causas. São momentos deliciosos, envolvidos num humor de camadas que vai desde o godardiano acaso de um “Pierrot Le Fou”, até ao inglês non sense e absolutamente metafórico dos Monty Python.

Sim, é um doloroso sorriso que nos faz esquecer por momentos que a tragédia vive em nós, ou será antes, a tragédia num novo tipo de comédia?

Quem espera sempre alcança ...

Hugo Gomes, 14.04.16

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O cinema é dotado de uma linguagem, um dialeto trabalhado e aperfeiçoado por mais 100 anos de existência e que tal esforço se traduz através do seu visual. Tornando-se, segundo a teoria mais básica e prática do funcionamento expressivo da Sétima Arte, no “ingrediente fundamental” da narrativa cinematográfica. Mas por vezes surgem filmes cuja verdadeira história faz-se através dos silêncios, do ausente, do que não é mostrado, nem em campo, nem sequer fora de campo, é a sugestão poética invocada em cada frame, em cada plano, em olhar e obviamente em cada gesto. E são filmes como este - “A Espera” (“L'attesa”) - que nos fazem acreditar que o cinema é muito mais do que imagens, são sentimentos celebrados, neste exemplo, velados no recanto mais obscuro e ao mesmo tempo mais luminoso.

A primeira longa-metragem de Piero Messina recorre a um enredo tão minimalista que persegue em toda a sua duração; uma mãe de luto pela perda do seu filho, agora encarregue de revelar tal morte à namorada deste. Um objetivo constantemente procrastinado como representasse os “cinco minutos de Paraíso” entre uma mãe a fim de conviver com os últimos redutos da memória do seu “rebento”. Messina trabalhou com Sorrentino em duas obras (incluindo o consagrado “La Grande Bellezza”), sendo possível as comparações do seu visual com o seu anterior “mestre”. E que visual apresenta! Como um quadro de Caravaggio, Messina aproveita a luz e as sombras para conceber um palco de ilusão, onde lutos são ocultados mas não desviados da nossa atenção, com efeito disto, o realizador tem na sua mão um exemplar tradicional em consolidação com a sofisticação da fotografia.

O tradicionalismo transmite uma carga poética que aufere uma sensação de “amarcord“, neste caso a nostalgia constantemente referida. Se o “olhar” é importante na tradução narrativa da fita, a música transcreve esse ambiente em seu proveito. Com The Missing, de The XX, a conferir os créditos iniciais como um anunciado velório ou Leonard Cohen e o seu “Waiting for a Miracle” a perpetuar e relembrar o silencioso conflito que afronta a obra, nesta particular sequência envolvida numa dança sedutora como uma serpente e o seu flautista, é ditada por um jogo de olhares, uma envolvência que as duas personagens principais parecem compreender.

Aqui a cumplicidade é dita através do “não visto”, com Juliette Binoche a compor uma mulher sofisticada, abalada pela perda, e cujo luto torna-se no seu lar de emoções, por outro lado, Lou de Laâge (a estrela de “Respire”, de Mélanie Laurent), é uma jovem involuntariamente presa a uma ilusão. As duas atrizes completam-se numa sincronia de gestos, como tal, basta apenas verificar a emocionante cena em que Binoche adia a revelação e a reação sublime de Laâge perante em tão doce e vil mentira.

Como se tudo fosse uma questão de esoterismo, o clímax de “A Espera” é arrostado com a visita de fantasmas, ilusões, memórias, conforme quiserem descrever, operando como verdadeiros “Deus ex Machina” neste autêntico peso da confissão. Mas a verdade é que Piero Messina não possui preocupações com a linearidade da narrativa, apenas implica a forma como esta transcende à sua estrutura. Por outras palavras, existem dois filmes aqui. O orquestrado pelo visual e aquele que é dito por palavras mudas, esse, sim, a verdadeira obra nesta tão sublime pauta.