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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Alice Rohrwacher debate sobre as suas 'quimeras': "o patriarcado é uma escolha histórica, não uma condição natural do ser humano"

Hugo Gomes, 06.06.24

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Alice Rohrwacher e Josh O'Connor durante a rodagem de "La Chimera" (2023)

A estreia de “La Chimera” no Indielisboa serviu de pretexto para a cineasta Alice Rohrwacher revisitar Lisboa, cidade na qual, tal como confidenciou após expor o seu português algo enferrujado mas mesmo assim surpreendentemente bem falado, havia vivido alguns anos e até aos dias de hoje detinha uma faustosa admiração. 

Nesta quarta longa-metragem, a solo deve-se salientar, a realizadora quis fazer um retrato sobre a Itália e a sua relação com o passado, e para isso, o desmonta num olhar estrangeiro, aqui sob o corpo de Arthur, interpretado pelo ascendente Josh O’Connor, maltrapilho e errante, homem de ligações tortuosas com os variados tempos do país. É através das suas apelidadas “quimeras”, transes ou pressentimentos na ordem do sobrenatural, que o protagonista assume-se como cão farejador de túmulos etruscos, descobertos, violados e de artefactos vendidos. Ele faz parte dos “tombarolis”, os saqueadores de túmulos, que sem se aperceberem despertarão vozes do além, maldições ou espíritos interrompidos do seu eterno descanso.

La Chimera”, tal como as obras anteriores de Rohrwacher, é um filme malabarista quanto ao passado, presente e futuro, onde cada peão neste jogo vivente encontra-se refém à sua ilusão, à sua época e à sua Itália.

Como surgiu a ideia para “La Chimera” (“A Quimera”)?

Eu não sei. [risos] Não tenho uma ideia concreta. Só sei que todas as ideias vêm de longe, são como músicas que estão na cabeça, que andam comigo. Na verdade, o que aconteceu é que cresci numa região onde, nos anos 80 e 90, houve a “febre” pela busca de tesouros. Foi um fenómeno social proeminente na altura, mais ou menos como agora em Lisboa, com a compra de casas no bairro de Alfama. [risos]

Acho que isso tem muito a ver com a ideia de vender e comprar coisas que têm uma aura. Nos anos 80, com o mundo materialista, os ricos, que tinham poder de aquisição, queriam comprar a alma. E foi a primeira vez que a alma estava no mercado, e de certa forma, também o passado, algo que tem uma força própria. Estava a comparar, mas acredito mesmo que é o mesmo desejo que se tem agora de comprar uma casa na Alfama, na velha Lisboa, porque é a sensação de comprar não só um imóvel, como também de comprar uma história. Então, quando há uma demanda, há uma oferta, e esta era dada pelos tombarolis.

Os tombarolis começaram a buscar objetos antigos para vender porque havia uma procura por eles, uma necessidade, um mercado. O que eu queria fazer era explorar essa ideia, fazer um filme que não os retratasse como vilões, nem herois, mas como parte do mercado. E nesse mercado, eles eram a engrenagem do mecanismo. Mesmo que se considerem predadores da “arte perdida”, na verdade, eram como hamsters às voltas na sua roda. São os pobres tombarolis! Para mim, era importante contar isso.

Os tombarolis são apenas uma maneira evidente de vender algo sagrado vindo do passado que já não consideramos mais sagrado. Todas as vezes que tentamos fazer isso, somos totalmente tombarolis.

Vou usar essa ideia do sagrado ... Esta demanda dos tombaroli é figuradamente um retrato da Itália atual, onde nada é mais sagrado. Mesmo o passado, o qual estamos praticamente a violar sepulturas para resgatar esses itens e vendê-los sob a forma de outras ideias …

O filme decorre nos anos 80, e talvez seja muito impactante vir a Lisboa agora, porque esse processo está um pouco mais atrasado aqui. Mas, na Itália, isso já aconteceu. Conheço essa transformação, esse processo. Acho que já somos filhos desse processo. A alma já foi consumida pelo comércio e agora, como uma flor, acredito que o invisível vai-se aflorando, que vai regressar.

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La Chimera (2023)

Só que, neste momento, a Itália, a nível político, está a atravessar um genocídio cultural total que começou com Berlusconi e agora estamos a colher os seus efeitos. Mas, o que temos que fazer é acreditar na Humanidade, na inteligência das pessoas, e talvez... esperemos que sim! Este é o ponto principal, porque se pensarmos sempre no mal, acabará por atrair o mal. Devo pensar de forma positiva, acreditar que, embora às vezes me digam, ao apresentar um projeto, que "este filme não tem público", deva opor de que haja “um público que não tem filme”.

Neste filme, também como nos outros dois anteriores - "Le meraviglie" (“As Maravilhas”) e "Lazzaro Felice" (“Feliz como Lázaro”) - há quase uma mistura temporal entre o passado, o presente e o futuro, envolvidos numa certa ilusão. Por exemplo, em "Lazzaro Felice", há uma personagem, a marquesa [interpretada por Nicoletta Braschi], que vivia num passado forçosamente estagnado, no seu latifúndio, e usava tudo à sua volta para sustentar essa ilusão, com medo de confrontar uma realidade corrente que verdadeiramente não corresponde.

Sim. Como a conversa entre Flora [personagem de Isabella Rossellini] e a arte, que permanece na ilusão. Os filmes são muito conectados, embora muito diferentes, mas são, de qualquer forma, partes da mesma tapeçaria.

Há uma conexão profunda: o que fazemos com o nosso passado? Podemos destruí-lo, como fazem os tombarollis, ou podemos gelificar o passado, congelá-lo, como faz também Flora, que deseja que o passado não seja passado, porque quer pensar na sua filha amada como ainda estivesse viva.

Também existe uma outra perspectiva, que é a da Itália [personagem de Carol Duarte]. O passado como algo que pode ser reabilitado, transformado, as ‘coisas’ abandonadas - como a estação que aparece no filme - podem converter numa outra ‘coisa’, uma casa, por exemplo. Ainda é possível imaginar outras soluções que não sejam nem a destruição, nem o bloqueio... e nem a santificação do passado.

Acho muito curioso que tenha escolhido dois atores que não são italianos, o Josh O'Connor, que é britânico, e a Carol Duarte, que é brasileira. Porquê esta opção? Ouvi dizer que quando descobriu o Josh O'Connor, reescreveu o personagem especialmente para ele.

Reescrevi o personagem porque, inicialmente, ele era muito mais velho, porque é uma personagem em que tudo nele é sem esperança, e normalmente associamos a juventude à esperança. Quando encontrei o Josh compreendi que é um ator sem idade, e que Arthur funcionaria como alguém jovem e mesmo assim, mantendo nada esperançoso. É uma pessoa incrível, com o qual queria muito trabalhar, agora, já não consigo imaginar o filme sem ele.

Quanto à Carol Duarte, a personagem não precisava ser estrangeira, mas o problema é que a única pessoa no mundo que poderia fazer esse papel é a Carol. Confesso que não queria uma brasileira, mas ela, com a sua própria identidade e nacionalidade, tornou-se perfeita. Procurei italianos, franceses, enfim, de todas as nacionalidades, essa era uma questão que não me importava, porque Itália é como uma uma clochard do cosmo. Pode vir da lua, não importa. Podia vir do meu país ou de outro, não importa. Foi com a Carol que deparei-me com essa feminilidade de clochard do cosmo que procurava. 

Quando encontrei-me com ela via Skype, foi amor à primeira vista. De repente, soube que só ela poderia fazer a personagem, e julgo que compreendi isso antes dela. É uma personagem muito difícil de compreender, porque, inicialmente, é quase como uma aranha, depois vira flor. Tem uma transformação muito forte e, sobretudo, é uma pessoa icónica. Mas quando se lê no papel, uma mãe de dois filhos o qual esconde os filhos e que não tem tecto, morando provisoriamente … e meio clandestinamente na casa de uma senhora e age como se precisasse de lições de canto, soa trágico. No princípio, ela imaginou uma pessoa trágica e não, essa personagem é cómica. Então, fomos descobrindo essa personagem e chamamos a Itália de nossa filha.

Voltando à decisão de Josh O’Connor, o facto de ser estrangeiro serviria para que o prisma sobre esta Itália fosse de fora, a de um estrangeiro?

Estipulei que o Arthur teria que ser estrangeiro. Porque foram os estrangeiros, no princípio, tanto para o bem quanto para o mal - mas sobretudo para o bem - aqueles que mudaram o olhar dos italianos sobre a sua própria História e das suas ruínas. Todo o processo arqueológico, por exemplo, na Itália como na Grécia, começou por via da chegada de muitos estrangeiros que olhavam com uma perspectiva diferente a estes países e à sua arqueologia. Eles viam algo que as pessoas sempre tinham diante dos olhos, mas que não davam importância. Então, o estrangeiro é fundamental na descoberta dos nossos tesouros.

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La Chimera (2023)

E acho que isso continua até hoje. Quem somos sem estrangeiros? Nada, apenas pessoas sentadas sobre um tesouro, olhando sem realmente ver. Naturalmente, os tombarolis aproveitaram essa mudança de olhar sobre a própria História, mas os estrangeiros foram importantes na história arqueológica da Itália, trazendo uma perspectiva positiva. Foram eles que iniciaram o desejo de descobrir o passado. Como tal queria prestar uma homenagem a todos esses jovens de Inglaterra, da Alemanha, do Grand Tour, que entretanto chegavam à Itália. Queria que a personagem fosse oriunda do Norte da Europa, para representar isso.

A sua figura tem algo de cómico também, quase digno de slapstick, é esguio, de pernas longas, de andar desajeitado, parece quase Buster Keaton ou um Jacques Tati equivocado ...

Sim, também é uma pessoa muito trágica, porque está fechada no seu sofrimento, mas tem uma pequena evolução de demonstrar um lado cómico do heroi trágico.

O que separa o trágico e o cómico é a perspetiva?

Sim, a questão de perspectiva está presente em todos os meus filmes.

Quanto aos etruscos: elemento que se revelou muito presente na sua obra. Já "As Maravilhas" tínhamos a personagem do pai que referia quando podia o espírito dos etruscos. E em “A Quimera” esse povo, apesar de serem “arqueologicamente violados”, são mencionados como uma alternativa histórica de Itália. Há uma sequência em que uma personagem quebra a quarta parede para provocar o espectador, afirmando que se os etruscos estivessem mais tempo em Itália do que os romanos, seriam uma sociedade diferente, uma sociedade não-patriarcal.

Então, em "As Maravilhas", contei como as pessoas, nos anos 90, começaram a vender a ideia dos etruscos, até o “ar” deles vendiam … uma ideia bizarra. Isso ainda não aconteceu em Portugal, de momento ainda vendem casas, mas quem sabe, pode ser que daqui uns tempos façam perfumes - "ar de Alfama" - e vendem desalmadamente.

Em "As Maravilhas", falo sobre quando, depois de vender os objetos, só restava vender a ideia. Mas "A Quimera" é sobre os objetos, é anterior. É o momento em que se descobrem os artefactos, e de que o mundo é materialista, não comercial a ideias. Não sei se os etruscos eram matriarcais. Não sou arqueóloga. É claro que uma das ideias sobre os etruscos é sobre uma sociedade, pelo menos segundo o que nos contam os romanos, onde na aristocracia, homens e mulheres estavam no mesmo nível. Mas não sabemos a realidade. Só podemos saber através do que os romanos escreveram: "Incrível, vamos ao jantar na casa dos etruscos e as mulheres estão lá falando como pessoas normais." Eles estavam muito assustados com essa normalidade, com as mulheres sentadas à mesa com os homens a falar sobre os seus domínios, não como prostitutas, mas como senhoras. Para os romanos, isso era um pouco desestabilizador.

Mas o que pretendia com essa ideia era lembrar que o patriarcado, por exemplo, é uma escolha histórica, não uma condição natural do ser humano. Houve um momento em que escolhemos esse percurso, essa direção, e isso é um facto.

Gostaria que me falasse sobre a contribuição de Pietro Marcello [realizador de “Martin Eden”] em “La Chimera”?

O Pietro Marcello escreveu o sujeito comigo, no sentido que fizemos a pesquisa juntos, entrevistando tombarolis, porque ele também vem de uma região, Caserta, perto de Nápoles, onde havia um grande mercado de objetos arqueológicos. Não eram etruscos, mas de outras populações. Depois, decidimos que seria muito complicado abordar várias regiões, porque de manhã é Grécia, amanhã na Itália e por aí fora ... Cada região tem o seu passado para vender. Para mim, era mais fácil concentrar-me na minha região, no passado da minha região e também nessa população que admiro muito. E quanto ao Pietro, somos muito amigos.

E trabalharam juntos no documentário “Futura” (2021).

Sim, trabalhamos juntos e sempre discutindo. Acho que, para mim, é muito importante colaborar, não só com o Pietro, mas também com Jonas Carpignano, Francesco Munzi, e toda uma nova geração de realizadores. Talvez porque o cinema está mais frágil, e a luta não é entre nós.

Precisamos estar unidos, porque a batalha é para salvar as salas de cinema. Talvez uma geração mais velha tenha experimentado um cinema mais forte, com mais contrastes entre autores. Agora, pelo menos na Itália, sinto-me muito próxima de outros cineastas, e não só na Itália, como também do Miguel Gomes aqui em Portugal. Sinto-me muito feliz em partilhar ideias, em colaborar, se possível. De facto, quis incluir o Pietro no argumento, porque começámos a pesquisar juntos.

Acho que é muito importante para as pessoas verem que os realizadores podem colaborar uns com os outros. Antigamente, Fellini trabalhou com Rossellini, e eles trabalhavam juntos. O argumento de "Le notti di Cabiria" foi escrito pelo Pasolini... Eles estavam todos muito conectados e se ajudavam mutuamente. Às vezes, escreviam guiões sem saber quem seria o realizador. Achavam: "Você vai fazer ou faço eu." E depois, passou um tempo na Itália onde tudo era muito "este é o meu, este é o meu", com grandes contrastes.

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Isabella Rossellini em "La Chimera" (2023)

Foi bom referir-se a uma nova vaga italiana, que apesar da frescura artística e um proeminente olhar para o futuro, possuem evidentes  traços com o passado cinematográfico italiano. Não querendo impor influências, mas consigo identificar o realismo mágico e folclórico do Ermanno Olmi no seu cinema. 

Ah, sim!

Julgo que tem uma grande admiração pelo Olmi, certo?

Sim, sim, tenho muita admiração por Olmi, como também pelo Rossellini

Faz uma vénia indireta em trabalhar com Isabella Rossellini … [risos]

O cinema de poesias, neste momento dá-nos maior  liberdade política que o cinema de narração, o de prosa.

Digo isto porque sinto que houve uma ruptura no cinema italiano em termos geracionais. Recordo há uns anos de uma polémica trazida por Gabriele Muccino, que a culpa dessa quebra de legado foi de Pasolini, que houve a quebra da cultura e um “culto ao autor”. Mas sinto que na vossa geração há esse vínculo com o passado, trazer uma herança para a frente.

A herança não é só fazer o seu filme, mas o método de fazer o filme também.

Aproveitando a deixa, tem novos projetos?

Eu queria muito, mas estamos numa altura um pouco trágica na Itália. O que é difícil avançar com qualquer ‘coisa’ em Cinema. O certo, é que trabalhei cinco anos numa antologia de fábulas. 

Algo à semelhança de Boccaccio ou até do “Il racconto dei racconti” [da autoria de Giambattista Basile], que fora adaptado por Matteo Garrone?

Não, nada de mundo fantástico, mais próximo ao real. 

Sabes que o Ítalo Calvino fez uma recolha regional de todos os contos de fadas italianos? São contos populares das diversas regiões italianas, também fez um trabalho bibliográfico, e atrás dele está o trabalho que fizemos.

Queria muito uma antologia de contos de fadas, também para crianças, para o público de amanhã, porque é importante saber o que vão consumir os nossos filhos. Não só o que a nossa geração consome, mas também a geração do futuro. Mas agora não sei se será o meu próximo projeto, porque produzir isso não está fácil. Veremos.

Como vê a indústria italiana nos dias de hoje?

Nós trabalhamos muito com dinheiro público, e isso, para mim, é algo muito bonito. Desde o começo, desde o meu primeiro filme, quando soube que havia dinheiro público para trabalhar, pensei na grande oportunidade e na responsabilidade de restituir algo à coletividade. Agora, o governo cortou a maioria dos apoios públicos.

É possível trabalhar com dinheiro privado, mas isso traz um problema ético, porque o setor privado precisa vender algo.

É um pouco como o último filme de Nanni Moretti, no momento em que ele tenta vender o filme à Netflix e eles exigem um “momento WTF”.

Depois, naturalmente, sei que sempre trabalho com produtores independentes que protegem o meu trabalho. Mesmo quando fiz "Le Pupille" (2022) com a Disney, tive muita liberdade; ninguém me disse o que tinha de fazer. Então, é possível trabalhar com grandes companhias privadas e ainda assim ser-se livre.

Mas, ao mesmo tempo, gosto da ideia de trabalhar com o Estado, com o Ministério da Cultura, de ter interesse cultural no que fazemos, e não apenas como uma imagem para vender ‘coisas’, ser-se antes um projeto cultural. 

Neste momento, o projeto cultural da Itália está um pouco encalhado.

Itália, como te vejo, como te descubro ...

Hugo Gomes, 04.06.24

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Alice Rohrwacher é, em toda a sua essência, filha de Itália, e é dessa herança que tece a sua carreira sem um olhar defunto, sem um corte com os que antecederam, nem com indiferença a quem a procede. Itália, esse país, mais que isso, instituição, ideia, podendo experimentar como um mote para a reunião dos três tempos [passado, presente e futuro], estabelecendo no seu centro, um quarto, invisível, não estagnado, não morto, apenas vivo e confluido, uma alegoria. 

A partir da sua segunda obra - “Le meraviglie” (2014) - prosseguindo na felicidade do ignorante e quase mudo Lázaro (“Lazzaro felice, 2018) e agora com “La Chimera”, contemplamos um território à deriva nos diferentes estados-terrenos, personagens que equilibram entre os que viveram e os que viverão, na tristeza entranhada no olhar quase vítreo dos protagonistas (seja de Adriano Tardiolo, o nosso referido Lazaro, seja em Josh O’Connor, o Arthur aqui nos presenteado) e o passado, ora representado em memórias trovadas, ora enterrados em artefactos arqueológicos. Há diálogo neste constante trabalho de Rohrwacher ao longo dos seus filmes, e não apenas nos etruscos como alternativa da história italiana ou de marquesas iludidas e reféns da sua época, nos seus “castelos” em decadência, ou do contagiante realismo mágico com “pós” de Fellini a Pasolini

Não, esse tal diálogo (figuradamente falando) encontra-se naquela luz divina, carregada nas palmas da pequena Gelsomina (Maria Alexandra Lungu) em “Le meraviglie”, fingindo beber dela os seus dotes celestiais (curiosamente “Corpo Celeste” é o título da sua primeira longa-metragem), ou aqui, Arthur “salvo” por esse contacto atribuído a algo que ultrapassa a sua existência, o destino talvez. Mas afinal do que se trata “La Chimera”? Um estrangeiro tragicómico, que tem tanto de cavaleiro da demandas de Olmi (uma das paixões cinéfilas de Rohrwacher) como do slapstick desajeitado de Jacques Tati ou Buster Keaton, preso numa miserabilidade cómoda e que mesmo, errante ou simplesmente encalhado, subsiste como talentoso “tombaroli”, termo atribuído a salteadores de tumbas de etruscos, ou violadores de sepulturas como bem entenderem apelidar, que saqueiam os objetos fúnebres para depois vender no mercado. 

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Arthur, de dom (ou maldição, conforme a perspetiva) subaproveitado, convive na companhia dos desesperados, dos trafulhas e dos espirituais, ele é uma Itália invadida e perdida, mas não é a Itália que Rohrwacher anseia como modelo. Essa, uma dádiva que partilha igual nome do país, aqui incorporada por Carol Duarte, atriz brasileira potente em “Vida Invisível” de Karim Ainouz [belíssimo filme devo destacar], outra estrangeira portanto, mas é na sua intenção para com os três ditos tempos que nos apoiamos. O desejo, a reabilitação, a transformação, o respeito pelo sagrado, pelo profano e pelo memorialismo, a Itália hoje renegada para se chegar a outras oposições. 

Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um “Martin Eden” desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em “Futura” faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. “La Chimera” é somente a sua Caverna de Platão

E a tua Zendaya também ...

Hugo Gomes, 24.04.24

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Talvez estejamos a caminhar numa tendenciosa vontade por interpretações sem apego, presos a uma certa indiferença para com as suas emoções, reveladas ou ocultadas para bom intérprete entender. Nesse aspecto, Zendaya lidera uma multidão esfomeada pela sua presença, essa que basta, manifestada como a eterna adolescente em plena repulsa para com o seu meio (será uma resposta atual aos anos e anos de desempenhos rompantes e eruptivos por parte de Hollywood?). 

A atriz entra assim, na igual classe de Timothée Chalamet - o qual contracenam na sequela do épico interespacial “Dune 2” - concorrendo com a sua respectiva legião de fãs e num mediatismo insuflado pelas novas plataformas de criação estrelares, interagindo nos resquícios de um moribundo “star system” americano. Por um lado, Zendaya, crescida e aparecida das séries da Disney Channel, reavaliada no seriado “Euphoria” à boleia de Sam Levinson, e novamente projetada às massas pelas aventuras do aranhiço modo disnesco [“Spider-Man”], é agora produtora e protagonista do novo filme do realizador habituadíssimo (e algo vampiresco) a jovialidades e como abordá-las em modo efervescente na espuma dos nossos dias, o, nada mais, nada menos que Luca Guadagnino

Trata-se de “Challengers”, ensaio sentimentaloide que contempla um campo de ténis como alegoria vivente: a história de outrora amigos (Josh O’Connor e Mike Faist) agora rivais de raquete, e de pénis, que lutam pelo interesse da sua “miúda de sonho”, se não fosse essa projeção Zendaya e o seu inquebrável ar descomprometido. O nosso Luca, “padrinho” de Chalamet na obra literária de André Aciman virada à tela - “Call Me By Your Name” (2017) - do qual extraiu do solarengo norte italiano em pleno verão, um esboço, não só romances estivais longe de olhares atentos, como também de exercícios de naturalismo, e aí, nesse campo, julgamos ter encontrado um realizador chamativo, mas o fruto proibido deu-nos um darling, um querido da indústria yankee impregnante do cinema com sangue negativo oriundo do universo videoclippeiro (a banda-sonora assinada por Trent Reznor & Atticus Ross nunca desmancha a sensação). 

Neste caso “Challengers”, o uso e abuso da sua estética revela-nos um filme mais preocupado em ser visualmente dinâmico e “cool” do que inteirar-se numa narrativa coerentemente liberal. Pois é, falando na imposição de storytelling, é por essa via que o filme de Luca Guadagnino (com guião de Justin Kuritzkes) falha, e falha pela reutilização de universos que o cinema já tem como “lugar-comum”. O ménage-a-trois, seja pelo sexo sem orientação e de descobertas calorosas [“Y tu mamá también”, de Alfonso Cuaron], seja pelo simbolico número 3, relações do arcabouço da Nouvelle Vague [“Jules & Jim”, “Bando à Parte”, “La maman et la putain”] ou o passivismo politico e burguês estampado por Bertolucci [“Dreamers”]. É nesse “Trio de Odemira” e as promessas de sensualidade que o filme adquiriu, desde o seu cancelamento no Festival de Veneza do ano passado [forçado pela greve de argumentistas e atores], um mediatismo próprio e orbital na sua estrela. 

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É óbvio, que quem “nasceu ontem” ou pouco dado a cinema fora das margens hollywoodescas encarar-o como a quintessência da ousadia em espaços imaturos, nada contra à reutilização, mas chegamos a um ponto em que necessitamos o reaproveitado pela transgressão e em “Challengers” tal factor é zero, para além de impor uma amnésia dos signos que o cinema albergou desde tempos e tempos. Tal como aconteceu no seu “Suspiria”, há uma atitude de Luca Guadagnino em refazer a História do Cinema a seu favor, ora refilmar clássicos (e o caminho aponta para essa continuação) ou pegar em velhos símbolos do cinema e banhá-los numa contemporaneidade inconsequente, retirando o naturalismo e avançando na estética barulhenta, nos slow motions como alternância ao close-up, nas salta-pocinhas narrativas (quebras e baralhos que Nolan enfatizou como moda da complicação / falsa-complexidade), disfarça-se uma mediocridade reluzente, e Zendaya é esse brilho para atrair audiências domesticadas. O ténis, que tão bem cinematográfico lugar havia tomado, desde o fascínio expressado pelo crítico Serge Daney e as suas trabalhadas teses (e tecidos) temporais (biblioteca alexandrina essa que gerou um dos melhores filmes sobre o desporto e cinema igualmente - “L'empire de la perfection” de Julien Faraut), é aqui poesia macaqueada para servir de tensão sexual, ideia curiosa, execução, como havia referenciado desde então, refém a um excessivo e desnecessário pleonasmo visual. 

Challengers” poderá encontrar razão e expressividade nos últimos minutos de filme, uma ênfase dramática e interrompida pela imperatividade dos atos, mas o seu trajeto, num constante serviço de raquetadas, é objeto glamouroso e de dramaturgias de zinco. Uma prodigalidade.