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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Dune": tudo pelo espectáculo e nada contra o espectáculo

Hugo Gomes, 01.11.21

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Afirmar que “Dune” de Denis Villeneuve é um deserto, não se comporta propriamente neste caso como um elogio tendo em conta o seu árido cenário. Bem verdade é que “Dune” é de um cinema seco, homogéneo correspondendo às suas noção generalizadas de espetáculo cinematográfico, e é pena que, mesmo não tendo uma personalidade definida, um realizador capaz e positivamente presunçoso visualmente tenha cedido à labiríntica inexistência. 

A minha cisão com o Villeneuve aconteceu com a sanduíche visual de Arrival”, o que poderia ser um interessante tratado à nossa comunicação e a nossa perspetiva do mundo através da linguagem já por si foi vendida ao artifício malickiano (Max Richter tocou e tocou) de uma definição infantilizada de esoterismo americanizado. Depois seguiu-se  “Blade Runner 2049”, o sacrilégio (para muitos) de uma sequela tardia que se envergava num passivismo para com a matéria-prima. “Saltitando” de ficção científica para ficção científica, chegou-se agora ao culto literário de Frank Herbert, naquela que à partida foi a mais satisfatória adaptação do inadaptável “Duna”, segundo fãs, até ao momento. 

Não é por menos que assim seja, “Dune” é demasiado preso à literalidade do seu texto, e não é preciso ler uma página sequer para perceber essa relação. O entulho amontoa para adiar e adiar clímaxes ou conter eventuais devaneios criativos (a "falhada" obra de David Lynch tinha esse ponto a seu favor, inventar e reinventar). Mas a culpa não é totalmente de Villeneuve - em sentido objetivo há competência nesse seu gesto, o encontro do épico que faltava, e por sua vez, o épico forçado, de fulgor exigido pela sonoridade pompeante de Hans Zimmer e a promessa de um segundo tomo em cima de projeções de trilogia - a culpa (essa que não morre solteira) é das audiências, cada vez mais sedentas pela continuidade forçada (ora MCU, ora as séries que deparam na sua grandiosa idade) e pelo realismo, seja a representação aproximada, em oposição ao artificialismo. 

É certo que toda a campanha para colocar “Dune” no seu habitat natural, a da grande tela ao invés dos ecrãs promovidos pelo streaming e afins, é um ato louvável na crença do cinema enquanto espaço de comunhão e apreciação de espetáculos, e em comparação com outros “Salvadores da Pátria” puramente tecnológicos (recordo “Godzilla Vs Kong”, por exemplo) notamos uma prática ao encontro dessa idealização de cinema para massas.  

Tudo bons "fanboys" ...

Hugo Gomes, 25.04.19

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Fugindo do conceito de super-heróis e consequentemente do Universo Cinematográfico Marvel (MCU) abraçado pelo produtor e presidente dos estúdios Kevin Feige, deveremos referir-nos a "The Avengers: Endgame" como uma afirmação dos chamados "filmes-evento". Algo que Hollywood fazia com frequência na sua época de ouro e entretanto se tornou escasso (só filmes como "The Lord of the Rings", “Avatar”, “Jurassic World” e “Star Wars: Force Awaken” podem ser inseridos neste grupo no século XXI).

Nesses termos, os Vingadores (e companhia) contrariaram a tendência da queda de espectadores, levando milhões às salas e perpetuando um legado que se torna num círculo íntimo para quem o vive com tamanha dedicação: a chamada "base de fãs". E podemos apontar para uma geração "marvelesca", que atende a cada episódio como um ritual religioso.

Porém, nem tudo são “rosas” neste panorama. Existe um agravamento de monocultura, desde a corrida aos bilhetes que deixam outras propostas sem receção (os multiplexes acabaram por preferir estes filmes com receitas garantidas), à generalização de uma produção industrial que se baseia (e baseará) nos moldes vencedores deste franchise, condensando as fórmulas vencidas. Sim, o Universo Marvel tem tanto de virtuoso como de perigoso para a diversidade e difusão cinematográfica. Mas neste momento, o leitor, que provavelmente acompanha este universo desde o "Iron Man" em 2008, pergunta com algum desprezo “o que é que isso me interessa?”. Até porque o presente tem que ser vivido e como tal, cumprindo a cultura do “no-spoiler” (que não é dos tempos atuais, visto que em 1960, para “Psycho” de Alfred Hitchcock, também existiam normas especiais), aqui vai uma tacada neste encerramento de uma fase que prolongou por 11 anos e 22 filmes.

A verdade é o que tornará para muitos “The Avengers: Endgame” numa “obra-prima” é essa afinidade e acompanhamento por parte do seu público fiel. Os super-heróis deixam de ser meras personagens, são agora família. Os conflitos ultrapassam a narrativa e tornam-se seus. Vivem, choram e riem com eles. Tudo isto atribui um senso de exclusividade a estes fãs... que se sentem especiais nestes seus mundos. Obviamente que em torno deste carinho pelos filmes existe uma tendência de proclamar o cinema como uma só hélice - a oleada máquina (aliás, bem-sucedida) que a MCU conquistou nos últimos anos, principalmente a partir de "The Avengers" (2012). E este “Endgame” tinha todas as razões para contradizer a formatação dessa máquina, por ser o anunciado fim de um ciclo, sem deixar igualmente de ser fiel à sua tradição, o que consegue através de calculadas jogadas para completar o seu “grandioso” puzzle, num malabarismo temporal que nos guia por ondas antológicas e nostálgicas em relação a toda a saga.

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Nesse equilíbrio criativo nada original, “Endgame” funciona como um evento por si só. Infelizmente, a sua pausada postura, que se saúda e beneficia claramente algumas personagens e relações (Chris Hemsworth é triunfal como um Thor que ganha tragicomédia a olhos vistos), é abandonada, como aconteceu noutros filmes do Universo, com a chegada de um terceiro ato.

Um pecaminoso terceiro tomo que nos revela as fraquezas deste género. Desde o “fan-service” que espezinha qualquer subtileza no seu clímax (por vezes as batalhas cruciais são as menos épicas e isso é lição que a Marvel nunca estudou) à mudança brusca das motivações do vilão Thanos (o seu “ativismo” era o motor de engrenagem de Infinity War), que nos levam a um aborrecido e pouco subtil (ou original) festim de efeitos visuais, ao nível dos mais sofisticados videojogos.

Por fim, uma elipse que alimenta ainda mais do saudosismo, essa sensação que começa a tomar conta do espectador que também é fã: a despedida é amarga, por vezes doce e tende a assumir-se como uma lamechice embirrenta, como a de uma criança que não deseja partilhar o seu brinquedo predileto. Mas “Endgame” encerra um ciclo, possivelmente um reinado, e é capaz de fazê-lo de uma maneira honesta, dentro do pretensiosismo capitalista da sua megalómana produção.

Neste "embrulho", que cada vez mais anuncia a saturação dos seus modelos (“Captain Marvel” foi a premonição), os irmãos Anthony e Joe Russo contornam o automatismo e constroem um espetáculo previsível, mas também sincero para com as expectativas destes milhões de “fanboys”. E isso... é o que mais interessa neste momento. O cinema, esse, discute-se depois...

“Vamos falar sobre o teu futuro”

Hugo Gomes, 26.06.18

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Com Denis Villeneuve de fora, sem Emily Blunt e Jóhann Jóhannsson (este último por motivos fatídicos), a sequela de “Sicario” avança entre nós com algum ceticismo. Contudo, vale a pena salientar que este “Day of the Soldado” segue o mesmo registo acinzentado do original. Sublinhando mais uma vez – demasiado cinzento – inclusive para os nossos dias, cuja consciência política parece ter atingido tamanha sensibilidade.

O italiano Stefano Sollima é o novo mestre do leme, trocando uma guerra, anteriormente a máfia “cefalópode” em “Suburra” e na série “Gomorra” por um outro palco bélico –  o verdadeiro confronto armado oriundo do outro lado da fronteira – aproveitando com benefício toda a situação que se vive desta crise de migração ilegal mexicana e dos constantes escândalos fronteiriços da administração Trump. Mas vamos por partes quanto ao dito tom cinza neste prometido thriller de ação.

A primeira sequência tem de tudo para agradar uma certa fantasia trumpista, os terroristas islâmicos vindos da rota dos bad hombres e toda a consciência de um perigo real que cerca a tão “agraciada” América. Sim, é uma pertinência de ideias políticas bastante à direita, ou republicana tendo contexto o universo político norte-americano, é o mediatismo, o medo real ou irracional perante uma aproximação globalizada graças aos medias e a “cachoeira informativa” o qual deparamos constantemente. Através desse “cavalo de Tróia que arrasa os valores democratas, “Sicario” circula para uma outra via, a da militarização, percorrendo os bastidores; um desencantado “Doutor Estranho Amor” que vai “contagiando” o medo maniqueísta criado até então. Os “heroicos” americanos convertem-se nos verdadeiros catalisadores, sob o desejo de um mundo aos seus pés e de uma guerra iminente, incentivada por interesses políticos.

Sollima filma todo o percurso, uma não-discreta “invasão”, como se um filme de guerra tratasse, tão próximo daqueles exemplares decorridos no Golfo Pérsico ou das outras e inúmeras variações em solo árabes. Sim, já perceberam, “Sicario” é, em generalizada designação, um filme de guerra. O Soldado do título resume-se às soluções projetadas para um termino de um conflito imaginário, a Guerra como plano final como se materializa-se no popularizado provérbio de “combatendo o fogo com fogo”.

O realizador responde com confiança ao lugar deixado por Villeneuve (digam o que dizer, “Sicario” era o seu melhor filme), de mão firme nas sequências de ação e dos muitos zenits filmados com a graciosidade dos drones (a inovação e a possibilidade destes mesmo planos graças a este tipo de tecnológica). A realização, é sim, adaptativa aos maneirismos do original, porém, falta-lhe o toque à Michael Mann que o filme de 2015 concretizava com aprumo (mais Mann que muitos filmes do próprio Mann, como verificamos na pertinente cena do trânsito), e à banda sonora da autoria de Hildur Guðnadóttir, a ferocidade monstruosa de Jóhann Jóhannsson.

“Day of the Soldado'' é assim uma continuação esforçada em acompanhar o ritmo estabelecido, tecendo as diferentes ideologias em prol de um realismo teorizado, impondo questões e nunca respostas substantificadas. Se o início é pura urticária a democratas, com os reflexos das últimas demências de Eastwood, já o final encontra essa consolidação política, desde uma emotividade pedagógica que amolece as personagens, passando por momentos finais tenebrosos, negros e repescados a uma ambiguidade sem igual.

Sollima passou o teste de Hollywood, é lúcido que baste e com isso mexe e remexe no argumento de Taylor Sheridan (que vem provando ser melhor guionista do que realizador) com bravura e energia.

O desejo megalómano do crossover cinematográfico

Hugo Gomes, 25.04.18

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Em 2012, a Marvel Studios conquistaria o seu grande objetivo até então, consolidar os seus universos num filme só – “The Avengers” – entretenimento corriqueiro que conflituaria o seu lado camp (direto da alma de Joss Whedon) e da “lubrificação” produtiva que o estúdio estaria a promover. A manobra foi um sucesso global, 1500 milhões de dólares rendidos para ser exato, o que levaria a Marvel a preparar uma outra visão. “Make it bigger” alguém terá dito ao produtor executivo Kevin Feige de modo a preparar com muita antemão este “Infinity War”, o totalizado crossover dos sucessos garantidos deste universo.

Até à chegada desta Guerra Infinita, muito a Marvel experimentou (sem sair dos parâmetros estabelecidos do estúdio). Aí nesse espaço decorreu de tudo, desde os altos (“Guardians of the Galaxy”, “Thor: Ragnarok” e “Black Panther”) a pontos baixos (“Thor: Dark World”, “Captain America: Civil War”), não apenas forma a expandir um universo partilhado (a definição literal de world building cinematográfico), mas como encontrar um realizador capaz de segurar tão ambicioso projeto. Com o despacho de Whedon num segundo e tremelico “The Avengers”, a Marvel arranjou, não um, mas dois realizadores pronto a abordar a mais arriscada missão dos “mightiest heroes of earth”, e eles são os irmãos Russo. Infelizmente, essa dupla, a nível dos artesãos que passaram pelas “garras” desta megalómana casa, são de facto os mais despersonalizados e desinteressantes. Resultado, operar todo um filme na concordância dos seus apetites tecnológicos (relembrando que James Gunn conseguiu lidar com o frenesim visual através da trabalhada química dos seus atores).

“Infinity War” é aquilo que se esperava nos cantos interestelares do estúdio, um longo (sublinho, longo) episódio a servir de coletânea ao ainda tão fresco legado do grande ecrã. Pensando nos Russos e toda a equipa por detrás do projeto como os “verdadeiros super-heróis”, encaramos a seguinte missão: como colocar em duas horas e meia toda a “bonecada” deixada pelos 18 filmes anteriores, narrar uma intriga formulaica e ainda desenvolver o vilão que andou 10 anos sentado numa cadeira sem qualquer preocupação nessa composição?

Não é impossível, é sim extremamente inconsequente juntar tudo no mesmo fosso. Em suma, um filme em constante resistência com as suas afinidades mercantis, informação intensa e exaustiva que dilui ao nada. Sim, existe muito a acontecer, há um clímax suspenso ao longo de duas horas como se fosse o director’s cut de um terceiro ato (malditos terceiros atos) da aristotélica distorção em Hollywood. Todos os diálogos, ora afrontam-se na emergência (temos que salvar o Mundo, temos que recuperar as pedras, temos que destruir a luva … temos … temos), ora deixam-se levar em falsas elipses para injetar no espectador as habituais graçolas marvelescas (poderemos incluir isso como uma nova definição de humor?).

Aliás, querendo resumir “Infinity War” numa palavra, esta seria: fórmula. É simples e concretamente uma fórmula aplicada, porém, tal já se sabia de antemão. O que não se previa era que a Marvel, consumida pela sua grande ambição, revelasse um Universo Partilhado insustentável (e atenção, apesar de tudo é o estúdio que conseguiu aplicar bem-sucessivamente tal plataforma numa saga). É uma boleia pela Galáxia, personagens a interagirem com as outras e easter eggs minados, elementos que encaixam uma nas outras como peças de um puzzle cuja concretização ilustrada encontra-se no anterior modelo a seguir.

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Thanos, o novo Hitler alienígena, é acorrentado a um extremo síntese de caracter, confundindo isso com complexidade. Todavia, este Infinity War difere dos outros capítulos por centralizar na sua força antagónica, ao invés nos heroicos vingadores, o resultado dessa mudança de olhar poderá fascinar os fãs que tem nos últimos tempos desiludidos nesse ramo. Mas a tragédia invocada nesta personificação digital de Josh Brolin é puro engodo (para além do “boneco”, em conjunto com o congénere de “Justice League”, são medonhamente artificiais), um arrasto, ou antes, uma desculpa para as inúmeras batalhas “apocalípticas” que pontuam em todo o seu esplendor nesta narrativa saturada. Porém, a tragédia acaba por ser outra, e nesse termo há que dar uma vénia ao trabalho de composição que Chris Hemsworth tem atribuído ao seu personagem Thor, cada vez sob cadências mais negras.

Mas se este episódio tem as aspirações, ao seu modo, da perfeita Tragédia Grega, é certo que no cair do pano apercebemos que já vimos este filme sob iguais conjunturas. Aliás, George Lucas havia feito em 2005 - “Revenge of the Sith” - a queda de um império, de uma ideologia, de um modo, revelando o ascensão do Lado Negro e a humilhante derrota da Força (“O mal triunfa quando os homens de bem nada fazem para o impedir”, Edmund Burke). Contudo, o resultado está longe da epopeia, e os sinais demonstrados são de cansaço, o mero e pesaroso cansaço.

Guerra de fronteiras! Os monstros de Villeneuve!

Hugo Gomes, 16.10.15

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Enquanto um dos mais notórios dos “enfants terribles” de Hollywood, Oliver Stone, espatifou o seu retrato narcotráfico mexicano com um onírico romance hedonista em Savages, Denis Villeneuve demonstra como se faz uma vertiginosa viagem aos horrores dessa realidade presente e muitas vezes negada. Sicário é isso, um filme forte em emoções mas sem nunca oferecer o que se pretendia neste tipo de produções. Nisso, o realizador já havia sido claro no seu registo ascendente, até mesmo o mais mainstream dos seus trabalhos – Prisoners (2013) – evidenciou uma capacidade de transcender o tema proposto e apostar num furacão de complexidades humanas bem salientado pela sua sensibilidade dramática.

Porém, em Sicário registamos o seu filme mais frio, calculista mas nem por isso isento de emotividade, essa, transmitida pela personagem de Emily Blunt, que compõe a ponte direta com o espectador, funcionando como os olhos desta jornada interminável. México é aqui convertido num palco de guerra, um Médio Oriente à porta da apelidada “terra de oportunidades”, e cuja sua entranha opera como uma crítica ácida a ambos lados, sem nunca vergar pela costura politicamente correcta ou pelo optimismo sonhador. Iniciando com o de bom se faz no cinema de acção dos últimos anos, uma sequência dotada pela vibração energética e com um realismo “à lá Michael Mann”, Sicário começa aqui a transcrever a mista porção de fascínio / repudia para com a violência, quer física, quer espiritual.

Os eventos aqui demonstrados levarão Kate Macer [a personagem de Emily Blunt] a voluntariar numa missão de alto risco a uma das cidades mexicanas mais fustigadas pelo narcotráfico e com a pobreza geral, um cenário que espelha um panorama social, porém, visto sob uma protecção física. Nesse ponto de vista, Villeneuve demonstra o que aprendeu com o cinema iraniano, mais concretamente com o de Abbas Kiarostamis e o seu “mundo no interior automobilístico”. Todavia, durante este combate a uma “hidra de inúmeras cabeças”, Kate começa a evidenciar ilegalidades e amoralidades nesta mesma guerra, factores que a fazem questionar sobre a sua posição, os seus ideais enquanto autoridade e a natureza de toda esta operação deveras orquestrada nas sombras.

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A personagem de Blunt evolui para uma figura frágil, uma mulher num mundo de homens que por sua vez não ostenta a “girl power” e a igualdade que uma Hollywood guiada por um feminismo mercantil parece constantemente requisitar. Não, Kate não é simplesmente uma mulher no filme, e sim uma humana, a moralidade que falta neste negro conto injectado com uma ambiguidade sem igual. Humana! Até porque os outros “parceiros” no combate ao narcotráfico, Josh Brolin e Benicio Del Toro, parecem carecer tais nobres e quebradiças emoções, se o primeiro comporta como um negligente e sexista chefe de operações, um contraste invocado para com a personagem de Blunt, o segundo é o autêntico anti-herói desta complexa ambivalência social.

É o trio de desempenhos que coincidem em si num equilíbrio dependente, registando não apenas sentimentos humanos vividos, entre os quais primários como o medo e o rancor, mas a transposição simuladamente realista dos actos das suas respectivas personagens. Outro factor que nos demonstra a preocupação de Villeneuve (e do argumentista Taylor Sheridan) na criação de protótipos humanos é a sua tentativa de preencher até mesmo as figuras menos relevantes desta trama, escolha que o levará a atribuir uma dimensão atenciosa a uma personagem paralela que até às últimas questionará o espectador sob a sua verdadeira importância. Tal cenário fabricado a essa mesma figura trará uma pesarosa consciência ao filme, que ao invés de relatar "bonecos" alude histórias de vida.

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Para sermos exactos, este Sicário é tudo um pouco, um obra fabulista, um ensaio de realidade fincada, com toques variáveis de descrição dessa mesma realidade cinematográfica, um panfleto sem ser evidentemente um, ou um olhar sem julgamentos a um panorama conhecedor, contudo, mirado sob um receio pessimista (tal como é verificado no seu sublime e subliminar final, transcrevendo uma catarse aos sonhos de paz mundial que teimamos a prometer e a acreditar). 

Eis um monstro criado na berma da porta, e tal besta dominante presenciada numa omnipresente banda sonora de Jóhann Jóhannsson. Sicário é sim uma das mais poderosas incursões deste tema no grande ecrã, um filme falado numa linguagem mista e atormentada pelo seu próprio dialecto. Assustador, agressivo sem fugir das regras da subtileza e verdadeiramente humano, coletivamente falando.

Dia do Trabalhado e tartes passionais!

Hugo Gomes, 13.02.14

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Baseado num romance homónimo de Joyce Maynard, “Labor Day” (“Um Segredo do Passado” como título português) remete-nos à depressiva Adele (Kate Winslet), que sofre com um inesperado divórcio, e o seu filho adolescente Henry (Gattlin Griffith), que parece viver somente para compensá-la do amor perdido que vivem na pacífica Holton Mills, Nova Hampshire, onde os dias de ambos são meramente rotineiros e solitários. Porém, em vésperas do Labor Day, um feriado nacional, Adele e o  filho são abordados num supermercado por um misterioso homem, Frank (Josh Brolin), um fugitivo à polícia que pede auxílio e abrigo de forma persuasiva, soando toda esta situação inicialmente como um sequestro. Depois de integrado e barricado na casa destes, aguardando o melhor momento para fugir, Frank começa a efetuar tarefas diárias para ocupar os seus dias e aos poucos começa a corresponder às necessidades matrimoniais, eventualmente perdidas, de Adele. Ambos envolvem-se, cedendo à paixão que os tornam decididos a lutar pelo futuro, mesmo que o trágico passado de Frank assombre o casal. Mas quanto mais tempo passa, mais difícil se torna para o ex-recluso ir-se embora.

É fácil para o espectador identificar os elementos de romance cor-de-rosa nesta intriga, a síndrome de Estocolmo agradavelmente recebida pelos contos amorosos de bolso é uma das cartas da obra literária e um forte trunfo da versão cinematográfica, se estivermos a confundir “Um Segredo do Passado” com o pseudo-romantismo “à la Nicholas Spark”. Mas decidido em contornar tal subgénero, Jason Reitman (realizador e argumentista) exerce um enorme esforço em conduzir o filme para um território mais autoral. Para isso reuniu um elenco capaz de transformar personagens aprisionadas a gestos e práticas em “personas” com o qual merecem a preocupação do espectador. Nesse aspeto, Kate Winslet e Josh Brolin compõem um trabalho individualmente fascinante, a primeira a corresponder aos balanços da sua composição e o segundo a transmitir mistério e aura paternal.

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Outro ponto transposto por Reitman é a tentativa de preencher “Um Segredo do Passado” com certo tom lírico, o qual podemos evidenciar em algumas sequências adversamente cinematográficas, com a tentativa de percorrer os territórios mais sensoriais descritos no livro (entre os quais o longo cozinhado da tarte, como exemplo). Ou seja, sente-se em toda a fita essa ambição de a tornar mais pessoal que mainstream, mais lírico que visual e por fim a conversão de material visto e revisto em dramalhões com fartura em algo sentido e dedicado. Nesses termos, Jason Reitman vinga-se em concretizar um filme denso e sim, multifacetado, equilibrando a vertente mais romântica com um suspense não convidativo no livro mas simbiótico no cinema.

Assim, temos material que chegue para nos sentirmos esperançados e na maior das hipóteses ingênuas quanto ao desdobramento do romance no cinema. Contudo, "Um Segredo do Passado" não é de todo uma obra finamente orquestrada, notando-se tiques nervosos em transmitir tal irreverência autoral – a sobreposição de Reitman a Joyce Maynard – como a falta de química entre Winslet e Brolin (uma das arestas mais promissoras) e o desempenho insonso por parte do jovem Gattlin Griffith, tendo em conta a relevância do seu papel. Apesar deste ser até à data o mais fraco filme do seu realizador, Um Segredo do Passado continua mesmo assim como uma preservação dos mais variados elementos do cinema de Reitman, filho do célebre Ivan Reitman, que cada vez mais se afirma como um sólido autor. Aliás, como se pode verificar nas sequências onde os jovens protagonizam a solo, Reitman é um primor a filmar tramas adolescentes e todas as suas convicções.