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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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O Cinema e o Medo [Índice]

Hugo Gomes, 15.11.23

Medo, riso e masoquismo

Hugo Gomes, 27.10.23

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High Anxiety (Mel Brooks, 1977)

Sem conflito não há nada a contar. É o conflito que faz despoletar uma sucessão de eventos passíveis de configurar uma história, uma trama ou um ensaio.

Quando olhamos para a linguagem que o cinema nos apresenta, é o medo que está na base dos grandes conflitos. É normal associá-lo a géneros como o terror, o suspense ou o thriller, mas o medo apresenta-se sob várias formas, quer estejamos conscientes disso ou não.

Na primeira vez em que me senti completamente amedrontado, em frente a uma tela de cinema, as imagens eram coloridas, a música apaziguante e a personagem principal não passava de um veado fofo, mas foi a primeira vez que senti a inevitabilidade da morte e o quão democrática era. O “Bambi” provocou em mim um efeito equivalente ao “Pesadelo em Elm Street” uns anos mais tarde, livrando-me da minha prezada paz de espírito e da inocência, que esbofeteou sem tréguas.

Mas esquecendo os traumas de infância, que apenas abundam pela descoberta natural da experiência humana, podemos encontrar manifestações do medo em virtualmente todos os géneros cinematográficos.

Há quem defenda que a diferença entre a comédia e o terror é a música que os acompanha. O embrulho de uma tragédia vai ditar se rimos ou tememos, e a verdade é que não são raras as vezes onde uma comédia nos apresenta as atribulações motivadas pelo medo de uma personagem, ou de um conjunto de personagens, das quais somos motivados a rir pelo simples distanciamento. Caso o ponto de vista fosse transferido para os olhos dos protagonistas, talvez partilhássemos a ansiedade e o medo por estes vividos. Dos Irmãos Marx ao “Sozinho em Casa”, a agressão física é apresentada como a centelha para o riso, mas acreditem ou não, estar no lado receptor dessa agressão é uma experiência dolorosa e ser o emissário pressupõe defesa ou intenções nefastas.

Com isto dito, não há juízos de valor a fazer. Só é verdade no cinema porque também o é fora dele. Nada me provoca mais o riso do que uma queda bem aparatosa e planeada, ou uma desinteria de proporções bíblicas. Se as queria para a minha vida? Adianto que não, mas à distância parece hilariante.

É também fora do cinema que encontramos uma série de medos que não reconhecemos como tal no confinamento do ecrã. O medo de falhar, o medo de não conseguir pagar as contas, o medo de ter filhos, ou de não os poder ter.

É no género catalogado como “Drama” que surgem todos estes temas. Um género tão cruel e explorador que faz qualquer filme da franquia “Saw” ou “Hostel” parecer um aperitivo num banquete de desgraças. Mas o que leva a exploração da dor existencial a ser tão mais bem vista do que a exploração da dor física? A componente visual terá algo a ver com a resposta, mas não podemos deixar de excluir o masoquismo da empatia, de querermos ver o outro passar pelo mesmo que a vida já nos obrigou a sentir, ou de passar por uma versão controlada das adversidades pelas quais esperamos nunca passar. Se apanharmos com uma boa dose de validação intelectual nessa experiência, melhor um pouco.

O medo move todos os seres vivos e tem tanto de fascinante como de repelente. Sendo o ser-humano provido de raciocínio, somos capazes de o representar e somos naturalmente movidos nesse sentido. Uma das primeiras filmagens da História é a morte de um elefante por eletrocução, mas também o foi o corpo nú de uma mulher. O paralelo entre o sexo e a morte é lenha para outra fogueira. O cinema vai continuar a ser o veículo para os artistas moldarem o medo e para o público o poder sentir sem passar pela massada de sofrer. Digo tudo isto com o maior sorriso nos lábios e na ânsia da próxima sessão que me deixe de coração nas mãos ou a conter as lágrimas, a baba e o ranho.


* Texto da autoria de José Santiago, nascido em Coimbra, licenciado em Comunicação Social pelo Instituto Superior Miguel Torga. Em 2007 junta-se à Rádio Universidade de Coimbra (RUC), onde fez parte do departamento de informação, programação e foi também presidente. Foi também na RUC que participou em vários programas relacionados com o cinema (“Sala de Pânico”, “Os Suspeitos do Costume”, “Spinoff”), começando a escrever crítica de cinema no jornal universitário "A Cabra" e mais tarde na plataforma on-line Arte-Factos. Profissionalmente tem desempenhado funções de gestão de marketing em empresas relacionadas com distribuição de vídeos e artes digitais, sendo também curador da iniciativa Passos no Escuro, exibindo cinema de terror e culto, no Porto.