O Filme do Bruno Aleixo (2019)
A personagem criada em 2008 dá o seu grande passo para o cinema. João Moreira e Pedro Santo podem ser dois nomes que nada dizem aos nossos leitores, até porque se escondem detrás de uma das personagens mais caricatas e amadas do nosso seio audiovisual – Bruno Aleixo.
O “Ewok coimbrão” de humor procrastinado saltou da internet para a televisão e criou em dez anos um culto garantido de admiradores. Mas Aleixo não está sozinho neste sucesso de popularidade. Ao seu lado encontramos outras figuras excêntricas, como O Homem do Bussaco, O Busto e Renato, todos eles reunidos na primeira aparição cinematográfica deste universo.
Curiosamente, não foi Moreira nem Santo a procurar este benefício de chegar ao grande ecrã. A oportunidade chegou sob o selo de O Som e a Fúria, a produtora gerida por Luís Urbano e Sandro Aguilar que hoje é tida como a casa de muito do cinema autoral português (Miguel Gomes, Salomé Lamas e João Nicolau são alguns dos exemplos).
Conversei com a dupla sobre a conceção desta aventura inaugural da personagem nos cinemas. Um diálogo descontraído sobre o passado, o presente e o futuro desta união de criatividade. Um filme que chega para dinamizar a nossa “indústria”, se é que ela existe, mesmo que, segundo as palavras de João Moreira, não seja mais que “um brainstorming de hora e meia“.
Talvez comece com a pergunta base para esta conversa. Vocês trabalham há dez anos na construção desta personagem e do seu universo. Começaram na internet e passaram para a rádio e televisão. O cinema foi o passo que faltava. Estava planeado esse passo ou surgiu por mero acaso de uma proposta?
João Moreira: Um pouco das duas coisas. Era o passo que faltava…
Pedro Santo: Mas isso dá a entender que temos passos para dar, que planeamos todo este percurso.
JM: Os passos para dar, como há pouco falávamos, era o que nos faltava. Existe um número relativamente limitado que ainda não demos.
PS: Não que tenhamos obrigatoriamente que o fazer.
JM: Partindo do princípio que começamos na web e passamos para a televisão, este passo é um dos mais previsíveis, digamos assim, mas surgiu de uma forma concreta através de uma proposta de O Som e a Fúria.
Isso quer dizer que o filme tem um pouco de “baseado em factos verídicos”. [risos]
JM: O filme acaba por refletir a natureza dessa mesma proposta. Foi um pouco “queremos fazer um filme sobre o Bruno Aleixo, por isso deixo ao vosso critério.”. Não havia nenhuma diretriz de como o filme deveria ser feito ou o que deveria conter. Não. Foi um “façam o que vocês quiserem”. Ou seja, tivemos o mesmo dilema que o Bruno Aleixo tem neste filme. Podia ser qualquer coisa, basta ser do Aleixo. Agora, a questão é como iríamos trabalhar esse “qualquer coisa”.
E como trabalharam no argumento, aliás, nesse “qualquer coisa”?
JM: Neste caso, acabamos por ter outra versão, mas a versão que usamos era precisamente colocar a estas personagens o mesmo dilema que nos foi colocado. Como é que elas iriam desenvolver um filme? Obviamente que o nosso Aleixo iria fazer as “coisas” em cima do joelho, ter péssimas e absurdas ideias e roubar as sugestões dos outros, tornando-as dele. Como seria de esperar.
PS: O Aleixo não é uma “pessoa” do meio, logo, era assim que imaginaríamos como iria reagir a esta situação, da mesma forma como na sua passagem na televisão.
JM: Sim, aqueles programas todos mal executados…
AS: Mais a falta de respeito pelos telespectadores, pelo colega, aquelas rubricas estranhíssimas. Era um sujeito que sabia por alto como funcionava um talk show, mas a execução era péssima. No cinema, é a mesma ‘coisa’; ideias básicas e comprometedoras, depois com um desenrolar que é ainda mais básico. É praticamente isto: “pessoas” que não são do meio, que lá sabem como fazem as coisas, e dão sugestões para um filme com base naquilo que já conhecem e o que querem ver.
Pedro Santo e João Moreira no Festival do Rio
Em certa parte, este “salta-pocinhas” entre géneros resume-se ao audiovisual que vocês conhecem?
PS: Sim, é muito do cinema com que crescemos. Porém, devemos salientar que estas personagens não correspondem à nossa idade, são mais velhas, são de uma geração anterior à nossa, da idade dos nossos pais. Os nossos pais viam os mesmos filmes que nós, por isso, não existe muita diferença. Tentamos resumir essas preferências na versão fílmica do Bussaco: um buddie cop movie com ninjas, mexican standoff, tem os zooms à lá Leone. Ou seja, era uma mistura de ‘coisas’ que iam apanhando, sem ter a capacidade de interpretar aquilo, um pouco como nós enquanto jovens: víamos mas não percebíamos o alcance daquilo e as suas dinâmicas.
Devido ao facto de desde sempre terem a liberdade nas aventuras e desventuras desta personagem, quer na internet, quer na televisão, e agora, como vocês confirmam, no cinema, podemos considerar “O Filme do Bruno Aleixo cinema” de autor? E quando falo de autor, refiro toda a sua conotação criativa…
PS: Não diria autor com a carga com que normalmente associamos, mas autor porque nós somos os autores e permanecemos autores desta passagem.
JM: O cinema de autor tem uma conotação de que é mais arte que os outros filmes.
PS: À partida é mais artístico, não segue uma linguagem tão convencional / mainstream…
JM: Neste caso, diria que não.
PS: Quer dizer, tem uma marca autoral. A dinâmica e a linguagem do filme não são propriamente usuais no cinema. Há ali uma desconstrução constante, uma falta de respeito para com a magia do cinema.
De alguma maneira, esta oscilação de géneros e a desconstrução não são, no fundo, uma forma de fomentar uma crítica quanto à nossa indústria cinematográfica e televisiva?
JM: Não diria “criticar”. Como dizemos, a nossa intenção era pegar no mainstream de ideias e sintetizar o conhecimento geral daquelas personagens, assim como pessoas fora do meio, pelo audiovisual.
Quanto à escolha dos atores, gostaria que me falassem sobre o vosso leque, que vai desde Rogério Samora e Adriano Luz até ao nosso zeitgeist do cinema português, Manuel Mozos.
PS: Muitos deles pensamos desde início…
JM: Alguns até já estavam no guião...
PS:… Ou por causa da figura…
JM: Ou das conotações sociais que têm. O filme falha um pouco no Brasil exatamente por isso, porque tu olhas para o Rogério Samora e automaticamente o associas à sua figura. Assim como o Fernando Alvim, que é uma personalidade pop.
PS: Lembro-me perfeitamente de virar-me para o João e dizer que para o Aleixo tem que ser o Adriano Luz [risos]. Aquela expressão de desprezo, neutro, sem estar entusiasmado com alguma coisa. E para além disso tudo, o carisma. Alguns desses atores, com quem desejávamos trabalhar, eram fáceis de chegar, visto que trabalhavam com O Som e a Fúria. Já o Manuel Mozos foi sugestão da produtora. Ele interpreta uma personagem muito em aberto, o Aires. Até brincamos no genérico, que ao invés de Mozo era o Aires.
E como é que o filme está a sair-se no Brasil, visto que é de um “chico-espertismo” muito português, um humor muito nosso, muito profundo da nossa cultura?
JM: Lá é “mais” nicho. Acabou por estrear em 18 salas, o mesmo que aqui. Só que o Brasil é um território enorme, e percentualmente terá mais gente.
Gonçalo Waddington, Fernando Alvim, Manuel Mozos, João Lagarto e José Raposo em "O Filme do Bruno Aleixo" (2019)
Para onde irá o Aleixo depois do filme?
JM: Ainda não temos nada pensado. Para já continuamos com o Aleixo.FM até ao final do ano
PS: Mas lá está, nunca pensamos nas coisas a médio prazo. Não é terreno novo.
JM: A recibos verdes, um tipo tem que aproveitar até quando der. Temos tido algumas reuniões para se tentar apurar o futuro, mas de momento não temos nada pensado.
PS: Também queremos esperar pela aceitação do público, de como sairá o filme nas salas de cinema.
E existe uma possibilidade de streaming? Não falo da Netflix, porque o nosso mercado é demasiado pequeno, mas de outras plataformas.
JM: Nós temos parceria com a SIC, por isso não sabemos. O que sabemos por agora é que vai existir uma versão em modo série do filme…
PS: Mas isso só será daqui a um ano.
JM: E não serão versões iguais…
PS: Atenção, o filme foi escrito e feito como se fosse um filme. Não pensamos inicialmente na série. São ‘coisas’ distintas.
Fora do Aleixo, há novos projetos?
JM: Nós fomos tendo projetos, mas não em nome próprio.
AS: Empreitadas…
JM: Fiz programação cultural em Coimbra, por isso a nível de cinema ou a nível de televisão, é muito raro fazer algo que saia do território do Aleixo.
AS: Também é o que nos pedem…
JM: Sim, e o que pedem é sempre dentro deste universo.
O Filme do Bruno Aleixo (2019)
Mas nunca vos passou pela ideia, meter as “botas” do Aleixo de lado e seguir por novos rumos?
JM: Para já é mais fácil explorar o final que existe, por causa do mercado e por quem trabalha connosco. Nunca tivemos a hipótese de ponderar dar um fim ao Aleixo. Quando trabalhávamos em televisão, nunca havia abertura para trabalharmos em outra “coisa”. Aliás, chegou a haver a intenção de trabalhar noutras “coisas”, mas fecharam-nos as portas.
AS: Eles só querem o Aleixo.
JM: Ou seja, o Aleixo ainda tem potencial.
Quando não houver mais potencial, será a hora de matar o Aleixo?
AS: Logo se vê. [risos] Aquelas personagens para nós existem, têm vida própria, têm as suas próprias biografias, não seria fácil. Seria o mesmo que pedir ao Bruno Nogueira para deixar de ser o Bruno Nogueira. Apesar de tudo, ainda acreditamos que o Aleixo tem um leque de coisas ainda por explorar. Assumindo que aquilo é uma persona, sim. Ainda existem cantos que devemos explorar.
E deixar o Aleixo como testemunho para outra “equipa”?
JM: Nunca foi uma ideia. Não nos interessa. Vender o franchise? Não.
AS: Não me parece que venha a acontecer.