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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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15 Anos, Escritos de Resistência [Índice]

Hugo Gomes, 12.08.22

Críticas do Futuro

Hugo Gomes, 24.07.22

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Crimes of the Future (David Cronenberg, 2022)

O meu percurso cinéfilo tem vindo a ser construído graças às redes de blogues que procuram fazer da escrita uma experiência de continuidade, uma extensão do encontro com o cinema no grande ecrã. Para quem vive fora dos grandes centros urbanos, esta relação que se estabelece com os filmes é preponderante na formação de uma visão de fundo sobre a história do cinema: longe do policiamento institucional e face às incontornáveis (e incontáveis) ausências em cartaz, mas também de uma programação que se possa dizer mais rica e abrangente, é nestes espaços virtuais que o jogo do cinema muitas das vezes se joga. 

Tanto assim é, que frequentemente me interrogo se a relação entre a escrita e o cinema não será sobretudo alimentada por um fora de campo que se quer chamar para a realidade do quotidiano: a escrita enquanto domínio daquilo que não se vê. Uma continuidade entre a experiência de um corpo que vê, com aqueles para quem o cinema ainda não é mais que o desejo de imagens em movimento, uma ânsia de viver o mundo com os sentidos do cinematógrafo. 

É claro que este nosso mundo de 2022 é muito diferente do de 2007. No que toca ao cinema, a exibição em plataformas de streaming é hoje uma realidade incontornável: mais filmes, uma oferta que chega a todo o lado e a toda a hora. E o que daqui resulta é também um espaço público cada vez mais disperso e difícil de descrever – tudo mudanças com consequências relevantes para a crítica de cinema. A excitação constante do imaginário coletivo pela ubiquidade da imagem em movimento não tem produzido modelos críticos com uma relação forte com a realidade do quotidiano, e aqueles que o fazem continuam invariavelmente ancorados em dinâmicas institucionais fossilizadas na era pré-internet. 

Entretanto, o scrolling de feeds tornou-se numa experiência cinematográfica ultra-moderna-super-hardcore 24/7, uma realidade que não tem sido muito amiga para a crítica de cinema enquanto espaço autónomo de reflexão. Os filmes estão em todo o lado, e há por vezes a sensação de que a crítica não tem muito a dizer sobre esse oceano de imagens. É como se a permanência das imagens fosse afinal uma perversão desse fora de campo que parece ter inspirado diferentes gerações a filtrar a experiência do cinema pela escrita.

Se existe uma crise na crítica, isso também se deve a um novo posicionamento do campo da arte perante a realidade. O mapeamento da contemporaneidade tornou-se impossível, e há no ar uma sensação de afterparty. Ainda bem. Cinematograficamente falando: enterre-se o velho mundo, instalem-se os novos órgãos.

 

*Texto da autoria de José Raposo, crítico de cinema do C7nema e colaborador da revista LOUD! Magazine

"O Filme do Bruno Aleixo": uma conversa com os "pais" de um chico-esperto à moda coimbrã

Hugo Gomes, 21.01.20

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O Filme do Bruno Aleixo (2019)

A personagem criada em 2008 dá o seu grande passo para o cinema. João Moreira e Pedro Santo podem  ser dois nomes que nada dizem aos nossos leitores, até porque se escondem detrás de uma das personagens mais caricatas e amadas do nosso seio audiovisual – Bruno Aleixo.

O “Ewok coimbrão” de humor procrastinado saltou da internet para a televisão e criou em dez anos um culto garantido de admiradores. Mas Aleixo não está sozinho neste sucesso de popularidade. Ao seu lado encontramos outras figuras excêntricas, como O Homem do Bussaco, O Busto e Renato, todos eles reunidos na primeira aparição cinematográfica deste universo.

Curiosamente, não foi Moreira nem Santo a procurar este benefício de chegar ao grande ecrã. A oportunidade chegou sob o selo de O Som e a Fúria, a produtora gerida por Luís Urbano e Sandro Aguilar que hoje é tida como a casa de muito do cinema autoral português (Miguel Gomes, Salomé Lamas e João Nicolau são alguns dos exemplos). 

Conversei com a dupla sobre a conceção desta aventura inaugural da personagem nos cinemas. Um diálogo descontraído sobre o passado, o presente e o futuro desta união de criatividade. Um filme que chega para dinamizar a nossa “indústria”, se é que ela existe, mesmo que, segundo as palavras de João Moreira, não seja mais que “um brainstorming de hora e meia“.

Talvez comece com a pergunta base para esta conversa. Vocês trabalham há dez anos na construção desta personagem e do seu universo. Começaram na internet e passaram para a rádio e televisão. O cinema foi o passo que faltava. Estava planeado esse passo ou surgiu por mero acaso de uma proposta?

João Moreira: Um pouco das duas coisas. Era o passo que faltava…

Pedro Santo: Mas isso dá a entender que temos passos para dar, que planeamos todo este percurso.

JM: Os passos para dar, como há pouco falávamos, era o que nos faltava. Existe um número relativamente limitado que ainda não demos.

PS: Não que tenhamos obrigatoriamente que o fazer.

JM: Partindo do princípio que começamos na web e passamos para a televisão, este passo é um dos mais previsíveis, digamos assim, mas surgiu de uma forma concreta através de uma proposta de O Som e a Fúria.

Isso quer dizer que o filme tem um pouco de “baseado em factos verídicos”. [risos]

JM: O filme acaba por refletir a natureza dessa mesma proposta. Foi um pouco “queremos fazer um filme sobre o Bruno Aleixo, por isso deixo ao vosso critério.”. Não havia nenhuma diretriz de como o filme deveria ser feito ou o que deveria conter. Não. Foi um “façam o que vocês quiserem”. Ou seja, tivemos o mesmo dilema que o Bruno Aleixo tem neste filme. Podia ser qualquer coisa, basta ser do Aleixo. Agora, a questão é como iríamos trabalhar esse “qualquer coisa”.

E como trabalharam no argumento, aliás, nesse “qualquer coisa”?

JM: Neste caso, acabamos por ter outra versão, mas a versão que usamos era precisamente colocar a estas personagens o mesmo dilema que nos foi colocado. Como é que elas iriam desenvolver um filme? Obviamente que o nosso Aleixo iria fazer as “coisas” em cima do joelho, ter péssimas e absurdas ideias e roubar as sugestões dos outros, tornando-as dele. Como seria de esperar.

PS: O Aleixo não é uma “pessoa” do meio, logo, era assim que imaginaríamos como iria reagir a esta situação, da mesma forma como na sua passagem na televisão.

JM: Sim, aqueles programas todos mal executados…

AS: Mais a falta de respeito pelos telespectadores, pelo colega, aquelas rubricas estranhíssimas. Era um sujeito que sabia por alto como funcionava um talk show, mas a execução era péssima. No cinema, é a mesma ‘coisa’; ideias básicas e comprometedoras, depois com um desenrolar que é ainda mais básico. É praticamente isto: “pessoas” que não são do meio, que lá sabem como fazem as coisas, e dão sugestões para um filme com base naquilo que já conhecem e o que querem ver.

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Pedro Santo e João Moreira no Festival do Rio

Em certa parte, este “salta-pocinhas” entre géneros resume-se ao audiovisual que vocês conhecem?

PS: Sim, é muito do cinema com que crescemos. Porém, devemos salientar que estas personagens não correspondem à nossa idade, são mais velhas, são de uma geração anterior à nossa, da idade dos nossos pais. Os nossos pais viam os mesmos filmes que nós, por isso, não existe muita diferença. Tentamos resumir essas preferências na versão fílmica do Bussaco: um buddie cop movie com ninjas, mexican standoff, tem os zooms à lá Leone. Ou seja, era uma mistura de ‘coisas’ que iam apanhando, sem ter a capacidade de interpretar aquilo, um pouco como nós enquanto jovens: víamos mas não percebíamos o alcance daquilo e as suas dinâmicas.

Devido ao facto de desde sempre terem a liberdade nas aventuras e desventuras desta personagem, quer na internet, quer na televisão, e agora, como vocês confirmam, no cinema, podemos considerar “O Filme do Bruno Aleixo cinema” de autor? E quando falo de autor, refiro toda a sua conotação criativa…

PS: Não diria autor com a carga com que normalmente associamos, mas autor porque nós somos os autores e permanecemos autores desta passagem.

JM: O cinema de autor tem uma conotação de que é mais arte que os outros filmes.

PS: À partida é mais artístico, não segue uma linguagem tão convencional / mainstream…

JM: Neste caso, diria que não.

PS: Quer dizer, tem uma marca autoral. A dinâmica e a linguagem do filme não são propriamente usuais no cinema. Há ali uma desconstrução constante, uma falta de respeito para com a magia do cinema.

De alguma maneira, esta oscilação de géneros e a desconstrução não são, no fundo, uma forma de fomentar uma crítica quanto à nossa indústria cinematográfica e televisiva?

JM: Não diria “criticar”. Como dizemos, a nossa intenção era pegar no mainstream de ideias e sintetizar o conhecimento geral daquelas personagens, assim como pessoas fora do meio, pelo audiovisual.

Quanto à escolha dos atores, gostaria que me falassem sobre o vosso leque, que vai desde Rogério Samora e Adriano Luz até ao nosso zeitgeist do cinema português, Manuel Mozos.

PS: Muitos deles pensamos desde início…

JM: Alguns até já estavam no guião...

PS:… Ou por causa da figura…

JM: Ou das conotações sociais que têm. O filme falha um pouco no Brasil exatamente por isso, porque tu olhas para o Rogério Samora e automaticamente o associas à sua figura. Assim como o Fernando Alvim, que é uma personalidade pop.

PS: Lembro-me perfeitamente de virar-me para o João e dizer que para o Aleixo tem que ser o Adriano Luz [risos]. Aquela expressão de desprezo, neutro, sem estar entusiasmado com alguma coisa. E para além disso tudo, o carisma. Alguns desses atores, com quem desejávamos trabalhar, eram fáceis de chegar, visto que trabalhavam com O Som e a Fúria. Já o Manuel Mozos foi sugestão da produtora. Ele interpreta uma personagem muito em aberto, o Aires. Até brincamos no genérico, que ao invés de Mozo era o Aires.

E como é que o filme está a sair-se no Brasil, visto que é de um “chico-espertismo” muito português, um humor muito nosso, muito profundo da nossa cultura?

JM: Lá é “mais” nicho. Acabou por estrear em 18 salas, o mesmo que aqui. Só que o Brasil é um território enorme, e percentualmente terá mais gente.

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Gonçalo Waddington, Fernando Alvim, Manuel Mozos, João Lagarto e José Raposo em "O Filme do Bruno Aleixo" (2019)

Para onde irá o Aleixo depois do filme?

JM: Ainda não temos nada pensado. Para já continuamos com o Aleixo.FM até ao final do ano

PS: Mas lá está, nunca pensamos nas coisas a médio prazo. Não é terreno novo.

JM: A recibos verdes, um tipo tem que aproveitar até quando der. Temos tido algumas reuniões para se tentar apurar o futuro, mas de momento não temos nada pensado.

PS: Também queremos esperar pela aceitação do público, de como sairá o filme nas salas de cinema.

E existe uma possibilidade de streaming? Não falo da Netflix, porque o nosso mercado é demasiado pequeno, mas de outras plataformas.

JM: Nós temos parceria com a SIC, por isso não sabemos. O que sabemos por agora é que vai existir uma versão em modo série do filme…

PS: Mas isso só será daqui a um ano.

JM: E não serão versões iguais…

PS: Atenção, o filme foi escrito e feito como se fosse um filme. Não pensamos inicialmente na série. São ‘coisas’ distintas.

Fora do Aleixo, há novos projetos?

JM: Nós fomos tendo projetos, mas não em nome próprio.

AS: Empreitadas…

JM: Fiz programação cultural em Coimbra, por isso a nível de cinema ou a nível de televisão, é muito raro fazer algo que saia do território do Aleixo.

AS: Também é o que nos pedem…

JM: Sim, e o que pedem é sempre dentro deste universo.

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O Filme do Bruno Aleixo (2019)

Mas nunca vos passou pela ideia, meter as “botas” do Aleixo de lado e seguir por novos rumos?

JM: Para já é mais fácil explorar o final que existe, por causa do mercado e por quem trabalha connosco. Nunca tivemos a hipótese de ponderar dar um fim ao Aleixo. Quando trabalhávamos em televisão, nunca havia abertura para trabalharmos em outra “coisa”. Aliás, chegou a haver a intenção de trabalhar noutras “coisas”, mas fecharam-nos as portas.

AS: Eles só querem o Aleixo.

JM: Ou seja, o Aleixo ainda tem potencial.

Quando não houver mais potencial, será a hora de matar o Aleixo?

AS: Logo se vê. [risos] Aquelas personagens para nós existem, têm vida própria, têm as suas próprias biografias, não seria fácil. Seria o mesmo que pedir ao Bruno Nogueira para deixar de ser o Bruno Nogueira. Apesar de tudo, ainda acreditamos que o Aleixo tem um leque de coisas ainda por explorar. Assumindo que aquilo é uma persona, sim. Ainda existem cantos que devemos explorar.

E deixar o Aleixo como testemunho para outra “equipa”?

JM: Nunca foi uma ideia. Não nos interessa. Vender o franchise? Não.

AS: Não me parece que venha a acontecer.