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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Manuela Serra: "a corrida pelo desenvolvimento leva-nos ao esquecimento de "coisas" meramente importantes"

Hugo Gomes, 16.06.21

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Manuela Serra na rodagem de "O Movimento das Coisas" ao lado do diretor de fotografia Gérard Collet

Foram precisos 36 anos para "O Movimento das Coisas" chegar finalmente às salas de cinema comerciais, sem que fosse apenas em algum festival. Mas apesar desta ausência, a saudade persistia nas novas gerações de cineastas e aficionados que surgiam após o triunfo em festivais como Manheim ou Festroia (em 1985).

Agora numa nova cópia restaurada distribuída pela “The Stone and the Plot”, este é um  retrato sobre a ruralidade, conservada numa beleza ímpar e frágil, erguida pela incontornável presença feminina. Foi na aldeia de Lanheses, em Viana do Castelo, que nos deparamos com um oásis neste biótopo desvendado pela corrente do rio Lima.

Rodado em 1980, o filme é uma inspiração, um dos maiores na cinematografia nacional, e isto não é somente lisonjeador. Mesmo que certas “forças” o tenham tentado “estrangular”, o cinema português nunca mais foi o mesmo. Mas também é o único realizado por Manuela Serra, que antes trabalhara como assistente de realização de “Bom Povo Português”, de Rui Simões.

O que aconteceu? O que levou a esta espera e a um corte racial com o cinema? É por aí que começa o diálogo com Manuela Serra...

Começo com a pergunta que, possivelmente, mais lhe fazem, sobre a sua desistência do cinema, não só da atividade mas também no consumo. Pelo que li numa outra entrevista, a Manuela Serra deixou de ver cinema a partir de 1995-1996.

É verdade! Cortei com o cinema, até antes dessa data via cada vez menos. Há quem faça e encontre no cinema uma forma de expressão. Julgava eu ser essa a solução para a minha vida, nem que fosse de sobrevivência. Infelizmente, aconteceu o contrário. Não tendo o meu reconhecimento, ou ser devidamente reconhecida, não me deram hipóteses para continuar o meu percurso. Metendo as "coisas" desta forma, houve pessoas que me impediram, essas, ligadas ao poder.

Mas essas “forças” que a impediram de continuar estiveram também presentes no não-lançamento de "O Movimento das Coisas"? Ou seja, tiveram responsabilidade no “desaparecimento”?

Acho que foi no quadro geral. Durante a década de 80, estas "coisas" derivavam de quem estava no poder, no cinema ou no seu instituto. O facto de não ter uma posição política, nem sequer um partido, para além de não nutrir simpatia por nenhum, não garantiu ferramentas para ter acesso. Têm que existir pessoas interessadas nestes cargos de poder, principalmente no que toca à atribuição de subsídios. Portanto, se eu não dava o que eles queriam, seja a nível político, ou um caso amoroso, e a acrescentar com isso o não-reconhecimento do filme, as minhas hipóteses eram obviamente nulas.

Esta versão restaurada tem a adição de um plano final, a de uma fábrica de aura ameaçadora. Que nos diz que tudo aquilo que vemos no seu filme, a tradição, cultura, estilo de vida, pessoas, vão desaparecer, ou já desapareceram, devido à industrialização.

Todos nós sabemos como o interior do nosso país está desértico, penso que existe consciência disso e dessas alterações. No entanto, não podemos atribuir isso a um só elemento. Mas a maneira como os seres humanos destroem o nosso habitat é tão absurdo para mim. Isso não está expresso no filme, digamos que o plano final acentua essa ideia, embora isso já estivesse implícito através do som ameaçador inserido na fábrica ou o gesto que existe nela, que é debruçado numa máquina, em contraste com o trabalho que é feito no campo com alegria.

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O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985)

Sim, como a festa da desfolhada que filmou. "Coisas" que poderão não mais existir.

Não tenho a certeza sobre isso, porque no outro dia estava a ler uma crítica que dizia o contrário – “O que a Manuela Serra diz não é verdade, isto ainda existe nas aldeias” – portanto, é natural que algumas tradições desapareçam, mas também está a acontecer o oposto, a atenção e preservação dessa cultura tradicional.

Seguindo para um certo paralelismo atual, talvez com motivação na tauromaquia, há uma espécie de união do mundo rural contra as políticas que ameaçam o seu modo de vida. De certa forma, a ruralidade é hoje uma resistência.

Admito que possa ser uma fase. Por vezes, a corrida pelo desenvolvimento leva-nos ao esquecimento de "coisas" meramente importantes e é isso que tenho expressado no meu filme, mesmo o gesto que existia – a ausência de pressa e de pressão – que as sociedades modernas invocam no seu estilo de vida. Estamos reféns da aceleração, é como se pedíssemos que fossemos máquinas, sem sentimentos, apenas eficientes nas operações. Felizmente, há muita "coisa" que se está a corrigir.

Por isso é que “O Movimento das Coisas” é uma obra de natureza harmoniosa, que quis escapar ao stress vivido nas cidades.

Exato, por isso é que fiz este filme, por estar saturada da cidade e perceber a evolução ao meu redor, que muitas vezes era gerada pela pressão nas pessoas. No meu tempo, havia uma expressão que era “aquela máquina”, dirigida principalmente ao homens que ambicionavam ser exatamente isso, máquinas, encarando-o como um adjetivo positivo. Se pensarmos no que isso representa...

Máquinas, no sentido de perda de humanidade, sentimento e compaixão?

Exatamente.

Falou de homens, mas “O Movimento das Coisas” é um filme maioritariamente povoado por mulheres, uma sociedade erguida, trabalhada e "sustentada" por elas. É também sabido que o projeto inicialmente tinha como título “Mulheres”.

A minha primeira ideia foi exatamente essa, então escrevi algumas notas em 1977. O meu ponto de partida é que a grande diferença entre homens e mulheres era indiscutivelmente a maternidade, portanto quis iniciar o projeto com uma cena de parto... só que me roubaram a ideia [risos]. Sendo assim, algo despertou a minha atenção, foi que as pessoas que se começaram a aproximar, principalmente mulheres, desejavam implantar, cada uma, a sua ideia. Lembro que havia quem queria converter o filme num retrato mais politizado e focado no sofrimento das mulheres que operavam nas fábricas. Era um importante retrato, mas não era isso que desejava. Pretendia criar sentimentos, mais do que impor um discurso, tanto que mudei completamente a ideia. E, como tal, fiquei sozinha neste projeto, o que me libertou e garantiu liberdade para avançar para esta aldeia.

Em 2015, dois jovens realizadores – José Oliveira e Marta Ramos – convidaram-na a revisitar a aldeia de Lanheses, 35 anos depois da rodagem de “O Movimento das Coisas”. Que diferenças constatou nesta sua última visita?

Algo que notei foi em relação à personagem de Isabel, a jovem que trabalhava fora de Lanheses, que continua esse ritmo, assim como muitos "jovens" do filme, que apenas encontraram trabalho longe da aldeia. Não tive muito tempo nessa visita, pelo que não constatei se realmente "sobrevivia" o trabalho de campo. Depois encontrei alguns prédios novos que não coincidiam com o resto, o que são marcas do desenvolvimento, mas... podia ser pior.

Mas o rio continua lá.

O rio continua lindíssimo.

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"35 Anos Depois, O Movimento das Coisas" (José Oliveira e Mário Fernandes, 2014)

Hoje, “O Movimento das Coisas” adquiriu um estatuto algo lendário e incontornável, principalmente para quem estuda cinema em Portugal, e com isso tornou-se uma recorrente inspiração e referência. Surgiram depois muitos outros retratos rurais. Mesmo com o seu assumido corte com o cinema, chegou a ver algum deles?

Apesar de não ver cinema, tenho notado e visto alguns trabalhos na televisão e até mesmo nas minhas idas ao Fundão [ao festival Encontros Cinematográficos]. Considero isso muito positivo, apesar de tudo funcionar assim no mundo do cinema. É verdade que o filme nunca foi esquecido, seja na memória dos cinéfilos, estudantes, em ciclos de cinema ou até mesmo na Cinemateca. Nada disso deixou que o meu filme morresse. E a imprensa estrangeira também contribuiu para isso.

Sobre este, por fim, lançamento por parte da distribuidora The Stone and the Plot, de Daniel Pereira. Quem é que abordou quem?

Desde que o filme estreou nos Encontros Cinematográficos do Fundão, criou-se uma ligação com as pessoas desse meio que me levou a conhecer o Daniel. Foi ele que me encorajou a estrear “O Movimento das Coisas”. Ele foi o responsável. É como você dizia, um filme com 35 anos só agora estreia nos cinemas, mas devo acrescentar que as montagens terminaram em 1981. O filme estava pronto nessa altura, mas ficou sem produtora, que era a Cooperativa Virver. E houve, como devo dizer, histórias "menos bonitas" acerca de dinheiro, fiquei parada quatro anos. Nesse período, trabalhei na pós-produção, que era a sonoplastia e música. Ou seja, para fazer apenas isso, aguardei quatro anos enquanto resolvia esses assuntos monetários com o Instituto de Cinema.

Já que "tocou" na música, gostaria que me falasse da colaboração com José Mário Branco e as melodias que nos acompanham ao longo desta viagem em Lanheses.

São "restos" da Cooperativa Virver. Conheci e trabalhei com o José Mário Branco na Cooperativa, assim como o sonoplasta Luís Martins. Mas existe nisto tudo algo muito importante, é que o Mário Branco viu o filme durante o seu processo de montagem e gostou imenso, por isso trabalhamos lindamente juntos. Entendi perfeitamente o que ele queria, que ideias tinha para o filme e das suas diferenças sequências. Julgo que também o filme aderiu muito bem às suas ideias.

Tiago Aldeia “navega” pela Braga noturna em busca dos «Os Conselhos da Noite»

Hugo Gomes, 16.09.20

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Tiago Aldeia e Marta Carvalho em "Os Conselhos da Noite" (José Oliveira, 2020)

Longe do seu mundo e de qualquer afetividade, Roberto é uma espécie de eremita precoce que encontrou no meio rural o seu precioso refúgio. Contudo, uma carta, que surge sem avisar, rouba tudo isso dele, atirando-o para um turbilhão de álcool e noites mal dormidas sob as promessas de uma imortalidade inalcançável. Enquanto procura resquícios do seu passado nas noites de Braga, Roberto afasta-se mais do seu futuro … se isso está realmente predestinado à sua figura pedante?

José Oliveira, cinéfilo de gema e que tem atingido algum reconhecimento na curta-metragem “Longe: Far”, protagonizado pelo ator José Lopes (falecido em dezembro de 2019) e apresentado no Festival de Locarno, aventura-se numa longa-metragem que se veste num ambiente de festiva soturnidade para nos entregar o percurso autodestrutivo de um homem nas estribeiras da sua própria sorte. Estes são os, como o título indica, “Os Conselhos da Noite”.

Para incorporar esse Roberto, está o ator Tiago Aldeia, pouco a pouco a inserir-se no seio cinematográfico após uma carreira sólida na produção televisiva. O ator, que já havia trabalhado com o cineasta Ivo M. Ferreira, é por fim, um protagonista de corpo, alma e de devaneios próprios.

O ator falou com o Cinematograficamente Falando … sobre esta sua relação com o próprio Cinema.

Sobre a sua participação neste filme, o que o levou a trabalhar com o realizador José Oliveira?

Li o guião, encontrámo-nos para uma conversa e foi aí que percebi a sua visão e entusiasmo, a sua abertura a sugestões, e tudo começou. Foi uma real troca de ideias, que se efetivaram na rodagem do filme com cumplicidade.

Queria que primeiro contasse-me sobre a sua experiência naquele que é um dos momentos mais sentimentais do filme, a despedida da sua personagem ao ator José Lopes (o qual, sabemos, que este foi o seu último papel em vida)? E como encara hoje a sua ausência, tendo em preciso momento?

Apenas conheci o José Lopes nesses dias que filmamos no Alentejo, homem generoso, profundo e atento. Acho que a cena passa disso, o que se torna de certa forma uma poética homenagem.

Como concebeu a sua personagem, e de que forma contou com o auxílio de José Oliveira neste processo criativo?

O filme atravessa o percurso emocional do “Roberto”, que está em todas as cenas. Foi indispensável partilhar com o José Oliveira, toda a criação do “Roberto”. Foi uma partilha honesta e intensa, tanto que houve pequenas alterações ao guião para que eu lhe conseguisse dar o “Roberto” com toda a carga emocional que ele me solicitou. Um homem perdido e sem nada a perder, um limbo muito interessante para se trabalhar … Pois tudo pode acontecer a qualquer momento.

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Tiago Aldeia e Adolfo Luxúria Canibal em "Os Conselhos da Noite" (José Oliveira, 2020)

“Os Conselhos da Noite” é um filme que, no fundo, aborda a nossa autodestruição como estado de espírito. As noites e tudo anexado, como um escape das nossas, e íntimas, questões existenciais. Alguma vez se sentiu como esta personagem?

Acho que todos nós, em algum momento da nossa vida, com maior ou menor intensidade, tentamos resolver alguma questão emocional com esse tipo de escapes, esses “pensos rápidos”. Seja para esquecer momentaneamente um problema, provocar “dormência” à dor, inibição, euforia... etc. Mas, felizmente, nunca senti essa necessidade de forma tão profunda e constante como o “Roberto”, muito menos num sentido autodestrutivo que lhe é latente.

Queria-me que contasse a sua experiência em contracenar com Adolfo Luxúria Canibal, o vocalista dos Mãos Morta. No filme, dá-se a entender que se divertiram a filmar estas ditas cenas.

O Adolfo e a sua personagem “Vicente” são de poucas palavras e o “Roberto” extrovertido, eu sou extrovertido... e esta irónica conjugação correu muitíssimo bem! Em cena é clara a cumplicidade, e efetivamente foram das cenas mais divertidas de fazer no filme.

Sobre esta noite bracarense, inteirou-a por completo? E não questiono somente em termos de personagem.

O Roberto, decididamente, eu ainda tenho que ir mais vezes ao jogo [risos].

Tendo uma carreira maioritariamente televisiva, com algumas paragens no cinema, e agora vendo-se como o protagonista de “Os Conselhos da Noite”, será razão para avançar ainda mais no cinema? Existem projetos novos em vista?

Absolutamente, adoro fazer cinema. Mergulhar intensamente numa personagem “naquele” período de rodagem realiza-me muito. Tenho pena que o nosso mercado seja pequeno e as oportunidades e condições não sejam muitas. Mas tenho algumas ideias a serem trabalhadas... tudo a seu tempo.

Existe uma sequência em “Os Conselhos da Noite”, no qual Roberto vagueia por um centro comercial algo abandonado, e por entre as lojas fechadas há um cinema inoperacional. Ora, pegando no facto de José Oliveira ser também programador do Cineclube de Braga que tem tido um papel fundamental na difusão e exercitação da cinefilia fora dos quadrantes de Lisboa e Porto, como vê este desaparecimento das salas, a ascensão dos multiplexes e a importância dos cineclubes? E o que poderemos fazer para devolver o cinema aos mais diferentes recantos (muitos deles cinematograficamente órfãos deste país).

É uma questão pertinente, o comodismo do streaming veio mudar o paradigma. Para mim é essencial que não se desista destes cinemas, que promovem a cultura e a cinematografia a quem as procuram. Talvez se tentássemos torná-los mais dinâmicos, mais atrativos, eventualmente com bares, restaurantes… Galerias de arte… Ideias criativas que os possam ajudar. No entanto, e independentemente do presente, acredito que no futuro voltarão a estar na moda! Mas até lá, podemos sempre tentar fazer tudo o que pudermos para os manter vivos. A magia de ver um filme num cinema é única.

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Tiago Aldeia e José Lopes em "Os Conselhos da Noite" (José Oliveira, 2020)

Sobre a reabertura das salas? Esta aposta do cinema português numa altura em que o medo de ir aos cinemas ainda é vincado, previsões naquilo que será o cinema português pós-COVID?

Não podemos parar, já é um setor em dificuldades há alguns anos, pelo que temos de continuar a trabalhar para permitir que todos possam ter acesso à cultura! E na verdade, temos que tentar ver o copo meio cheio. Ultrapassado o medo, e porque todas as medidas de segurança e higiene estão a ser rigorosamente aplicadas nas salas de cinema, é uma boa oportunidade para as aproveitarmos, como se fossem nossas! Um verdadeiro luxo. Deixo assim o apelo, vão ao cinema, nunca o barulho das pipocas incomodaram tão pouco.

Tendo uma carreira maioritariamente televisiva, com algumas paragens no cinema (destaco as longas-metragens “Hotel Império” e “Cartas da Guerra”, ambos de Ivo Ferreira, e ainda a curta “Cigano”, de David Bonneville, onde se tornaria, pela primeira vez, protagonista em grande tela), e agora vendo-se como o “cabeça de cartaz” de “Os Conselhos da Noite”, considerará motivo para avançar ainda mais no cinema? Se sim, tem projetos novos em vista nesta área?

Absolutamente! Adoro fazer cinema. Mergulhar intensamente numa personagem “naquele” período de rodagem realiza-me muito. Tenho pena que o nosso mercado seja pequeno, e as oportunidades e condições não sejam muitas. Mas tenho algumas ideias a serem trabalhadas…tudo a seu tempo.

Enquanto ator, que dificuldades ou virtudes trarão estas novas regras de segurança e sanitárias no trabalho e envolvimento com outros colegas e técnicos?

É muito difícil ver qualquer virtude, pois evitar a proximidade numa arte em que a emoção se traduz tantas vezes pelo contacto chega a ser frustrante. Tal e qual como nos é difícil não abraçarmos a família e amigos. E todos nós sentimos falta desse toque!