Na valsa com o chacal
Comecemos pelos seguintes e básicos fact-checks: “Nayola” tem como base uma peça teatral da autoria de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, é um filme sobre a História recente da Angola, da Guerra Civil até à sua inquieta e frágil “democracia”, e acima de tudo, resume-se como a primeira aventura de longa-duração de um dos grandes “peões” da animação portuguesa - José Miguel Ribeiro (“A Suspeita”, "Estilhaços"). Todos estes elementos que vos deixo poderia antever-nos a uma produção mimada através da sua narração e quem sabe pela importância, quase pedagógica, em difundir um cenário histórico para quem, como muitos europeus, desligam-se da realidade africana em geral, reduzindo-a a pontos habitués de telejornal na hora de jantar. Poderia, mas não é especificamente essa alusão.
“Nayola” é um teste à sua própria técnica, até porque a animação portuguesa presta contas à sua cobiçada etapa, o formato de longa-metragem. Juntamente com “Demónios do Meu Avô” de Nuno Beato (composto por 80% de artístico stop-motion), estes são, algumas das primeiras obras de longa duração do seu género no nosso país (há quem debata para considerar “João Mata Sete” de António Costa Valente, Vitor Lopes e Carlos Silva como o pioneiro), porém, é fácil encontrar motivos logísticos na sua narrativa para que José Miguel Ribeiro reduzisse o seu todo numa somente curta, a opção da sua real natureza leva-nos a desfrutar a possibilidade e capacidade da sua estética, aqui alicerçada ao tempo como um brilharete técnico (o espectador é conjugado a sentir a respiração, os gestos e os olhares dos seus personagens, enquanto que a animação reage a esse tempo esculpido como um desafio da sua arte). Por isso, em jeito para totós, “Nayola” espremido não é mais do que um pequeno “conto”, e isso não o impede de conquistar o detalhe, de ajeitar a cadência, e de como evitar que o grafismo acalenta amarguras, ao invés disso são acentuadas essas mesmas dores (a carnificina, a degradação civilizacional, o infortúnio em eventos-irmãos que em tempos Ari Folman salpicou no seu esplendoroso "Waltz with Bashir”) .
Há um percurso em Nayola [a personagem] - mulher que procura o seu desaparecido marido na frente de batalha, deixando para trás a sua filha nos cuidados da avó (mais tarde, o seu rebento, Yara, viraria rapper e ativista anti-regime) - que é convidativo a acompanhar-nos para lá do deslumbramento, encontrando neste formato visual uma alegoria ora humanista, ora xamânica, de existencialidade condensada do Homem como uma “má piada” atirada por entes divinas. Desta forma, como “ninguém volta da Guerra”, frase ouvida e ecoada tempos em tempo, ‘chocamos’ como maquinistas sem comboio que aclamam o Fim do conflito no mesmo espaço-tempo com que apontam a direção do vento e o chacal, animal acostumado a guiar almas defuntas e perdidas no Antigo Egipto, adquire novo cargo nesta Angola bélica, servindo-se de “coelho carrolleano” (mas nunca atrasado), em que conduz a nossa acidental guerreira à sua enfeitiçada epifania. Facilmente este seria o (outro) País das Maravilhas o qual Alice se perderia, por entre chapeleiros-loucos a rainha de copas com ânsia em decapitar … poderia, mas a Alice aqui é outra, chama-se Nayola, filha da Guerra, e não tão afortunada como a ‘menina’ do famoso conto.
A Guerra feita por Homens que de maneira alguma nada lhe serve, apenas os confunde - “Porquê que estás a lutar do lado errado? / Mas que história essa do lado errado?” - idêntico ao castigo proferido por Deus, lançado aos “construtores” da Torre de Babel, cada um com a sua língua, não-comunicativos e em desacordo inconsciente. Felizmente esta animação nos deixa respirar … e além disso, dá-nos tempos para conquistar e não saquear-nos. Valeu a pena esperar por “Nayola”, mais uma certidão de que a animação portuguesa sempre fora GRANDE, o país é que sempre fora pequeno.