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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O regresso do Festival Internacional de Cinema de Santarém: o cinema enquanto terra que nos marca

Hugo Gomes, 23.05.23

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Após três décadas, Santarém volta a receber de ”braços abertos” o seu Festival Internacional, uma vontade de consolidar os cinéfilos da região e, quem sabe, do restante país e globo. O Internacional descrito no título sugere esse apelo, essa vontade e ambição de arrancar por caminhos há muito atravessados. 2023 marca, por fim, essa idealização, materialização, algo terreno como o tema que o acompanha, a Terra, a nossa, da mesma forma que não existe outra. 

Ao Cinematograficamente Falando …, Rita Correia, Presidente do Cineclube de Santarém e diretora do FICS [Festival Internacional de Cinema de Santarém], “descortinou” a celebratória programação, contando com filmes (que mais?) que conectam com a região, com o espírito e com o futuro. 

O Festival Internacional de Cinema de Santarém decorre de 24 a 28 de maio, quatro dias a “apoderar” o Teatro Sá de Bandeira e transformá-la no pólo cinematográfico scalabis [ver programação completa e mais informações aqui]. 

Após trinta anos de ausência, pergunto o que levou a encarar este como o momento oportuno para o regresso do festival?

Na verdade, estamos a reativar o Festival há cerca de 5 anos. Desde o início da reativação do Cineclube de Santarém, há cerca de 12 anos, percebemos que a cidade queria o Festival de volta; havia uma geração de cinéfilos que ainda tinha memórias dos festivais antigos, e uma nova geração que queria trazer de volta o Festival Internacional de Cinema de Santarém. Criámos um dossier de projeto, que trabalhámos e melhoramos ao longo dos anos, e fomos procurar apoios. Entretanto, os anos de pandemia atrasaram o processo e agora, com o apoio imprescindível da autarquia, foi possível fazer esta 16ª edição do FICS.

O que poderá dizer sobre a programação deste ano, e a importância dos filmes de realizadores scabilitanos na seleção?

Vamos programar 31 filmes, oriundos/produzidos por 21 países. Temos 4 secções: a Competição Internacional, a Competição Nacional, Panorama e Em Foco.

Em Foco vão estar obras dedicadas às agro-poéticas de libertação e às lutas ecológicas. Os filmes propõem uma reflexão sobre a devastação das paisagens naturais e uma visão da história de violência colonial e extrativista em torno das práticas agrícolas de comunidades na Índia, Palestina, Moçambique e Mali. Na secção Panorama propomos uma visão da produção cinematográfica contemporânea, onde destacamos a estreia mundial do filme “Nomadic Island” de Mattia Mura Vannuzzi.

Na competição nacional destacamos os realizadores scalabitanos do coletivo Waves of Youth. Para a equipa do FICS era muito importante dar oportunidade aos jovens realizadores para mostrarem o seu trabalho a um público crítico e cinéfilo, e criámos um prémio especial para o Melhor Filme Regional.

Tendo em conta o período de “hibernação” (chamaremos assim) que desafios encontraram na seleção de filmes a integrar na programação, principalmente os da Competição Nacional, e com que critérios irão abraçar daqui para a frente?

O principal desafio da programação foi o tema do Festival, tínhamos algum receio de não encontrar muitos filmes portugueses dentro da temática. Na competição internacional recebemos muitas inscrições e fizemos também alguns convites a filmes. De um modo geral, a nossa principal preocupação foi criar um diálogo entre obras, e que isso pudesse ser sentido através da programação do festival. Este foi um critério fundamental para nós, e que pretendemos manter daqui para a frente.

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Boca Cava Terra (Luís Campos, 2022)

O tema rural e agro’ revelou-se ao longo da história do festival numa espécie de tradição, tende em manter esse espírito para além da secção Em Foco deste ano ou estabelecer o FICS como um festival especializado a esses territórios? Tendo em vista que a maior parte dos filmes da programação acentuam essas temáticas da relação humana com a natureza.

Desde o início deste projeto foi decidido manter a temática original: agrícola, rural e ambiental e assumimos que o FICS pretende ser um festival especializado nessas temáticas da relação humana com a natureza e o seu meio envolvente.

No início do festival, 1971, a temática foi uma forma inteligente de contornar a censura do regime do estado novo. Ao assumir-se como um Festival de "temática rural", não só estava a valorizar o seu território de origem - o Ribatejo - como lhe permitia uma aceitação que à época seria mais difícil. O que sabemos da história do Festival foi que muitos filmes estrangeiros, especialmente de origem russa, foram possíveis de ser exibidos em Portugal por ter existido uma "permissividade" da censura, que de outra forma não podia ter acontecido.

Este ano, no início do séc.XXI, no meio de uma crise climática, depois de uma pandemia, e em que as questões do impacto do homem sobre o seu meio estão na ordem do dia, foi unânime manter a temática do Festival, e fazê-lo através de obras contemporâneas, que de certa forma captem a urgência de pensar sobre estes temas, sob diversos pontos de vista, usando a linguagem cinematográfica.

Sobre os convidados, o que pode dizer sobre eles? 

Temos vários convidados, nomeadamente os realizadores portugueses José Filipe Costa, Marta Pessoa, Pedro Mourinha, Miguel Canaverde, Tiago Melo Bento, Maria Simões, Luís Campos, Diogo Cardoso, Paulo Antunes e Raúl Domingues. Como convidados internacionais teremos o realizador Mattia Mura Vannuzzi na estreia mundial do seu filme Nomadic Island, a realizadora indiana Radhamohini Prasad do filme “Farmer Collectives of North Bengal” e o bailarino Ramon Lima, participante do filme “Tes Jambes Nues” um filme que funde o trabalho coreográfico e o trabalho agrícola.

Ambições para o festival, resiliência ou expansão? 

A maior ambição é fazer desta edição um sucesso. Queremos que este seja um regresso em grande, e que nos permita alcançar outros apoios para que a próxima edição seja ainda melhor, com mais condições e durante mais dias. Queremos ainda fazer extensões do Festival, tanto a nível local, numa perspectiva de descentralização cultural, levando o FICS às freguesias rurais do concelho, como a nível nacional, nomeadamente através da programação dos Cineclubes. Não nos podemos esquecer que este Festival é organizado por um Cineclube e da importância que isso tem no movimento cineclubista nacional.

José Filipe Costa: "os estrangeiros traziam a revolução sexual para as cooperativas."

Hugo Gomes, 18.05.21

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Partindo do seu “Linha Vermelha”, o elogiado documentário onde reencontrava protagonistas dos acontecimentos à volta da ocupação da herdade ribatejana Torre Bela por parte de camponeses em 1975 e a sua organização em cooperativa (imortalizada num filme de Thomas Harlan), José Filipe Costa regressa com a encenação de uma falhada jornada de “doutrinadores” por terras desocupadas do Ribatejo.

Continuamos em 1975, o 25 de Abril continua fresco, mas depois da Revolução, muito trabalho existe por fazer. Um trio vindo da Europa do Norte aceita a missão de levar àqueles povoados novas ideias, conceitos e formas de luta, mas o fracasso é iminente. O sexo, esse território pantanoso, torna-se a causa de todo este desastre.

"Prazer, Camaradas!" chega aos cinemas portugueses a 20 de maio, com dois anos de atraso, após a estreia no Festival de Locarno de 2019, na mesma edição que consagrou com o prémio principal “Vitalina Varela”, Pedro Costa. Mas o país de 2021 está mais dividido e politicamente conflituoso e, curiosamente, a voltar a discutir a relevância da propriedade privada.

Conversei com o realizador sobre o seu filme, mas sobretudo as suas ideias e as órbitas política, social e sexual. Porque não há revolução social sem revolução sexual.

Começando com uma questão genérica, como surgiu a ideia? No fundo, não saiu do território em que trabalhou na "Linha Vermelha”.

A ideia vem do procedimento da “Linha Vermelha”, do qual tinha materiais ainda por usar e que pediam por um novo filme, relacionado com a sexualidade, afinidade e costumes. Eram sobretudo diários de uma casal de alfabetizadores, Eduarda Rosa e João Azevedo, que estiveram naquelas cooperativas e que abordavam a primeira experiência sexual das mulheres, para além de remexer em temas como casamento ou aborto, que Rosa contava que eram relatados durante a apanha da azeitona. O filme partiu daí, em conjunto com algumas histórias reveladas nos finais das reuniões no “Linha Vermelha”, que também estão ligadas a estas questões. Com isto, construí uma espécie de puzzle, uma premissa em que os estrangeiros traziam a revolução sexual para as cooperativas. Porque foi através desse choque cultural, a vinda de outros costumes e ideias, que se iriam contagiar as pessoas daquelas aldeias.

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Esse território sexual é o núcleo do seu filme, mas "Prazer, Camaradas!” e “Linha Vermelha” debatem-se com um sonho ideológico que acaba por ser recebido com agrado, mas depois despachado como uma desilusão. Não estávamos preparados para este tipo de pensamentos?

De facto, estavam uma série de coisas na linha de interesse dessas pessoas que não se concretizaram e chegaram, foram breves. Estou a lembrar-me sobretudo da ideia de família alargada, em que as crianças eram criadas por todos, pelo coletivo, e isso tinha como intuito desmoronar o conceito absoluto de família tradicional e heteronormativa. Apesar do filme ter um lado bastante festivo e celebrativo, nunca se restringindo ao que ficou por cumprir, acho que o espectador sente essa dilação. Há uma ideia que gosto bastante de utilizar e que representa este virar de época, que se chama “regressar a casa”. Trata-se de uma época em que todos saímos para a rua e que, de uma maneira, foram trocadas entre si novas ideias, novos conceitos, novos apelos, e depois as pessoas simplesmente regressaram a casa, aos seus espaços domésticos, à tal família conservadora, quadrada e esquemática. Aceito esta visão de exploração, contaminação e, por fim, regressão. Há uma passagem no livro “A Revolução Sexual”, de Wilhem Reich, que é lida no filme, que hoje se tornou um bocado arcaico e anacrónico. É sobre a potência orgástica e de como muitas normas vieram conter/aniquilar/fechar essa ideia de se ter prazer sexual. Talvez hoje encontremos essas mesmas ideias reproduzidas de certa maneira nas revistas femininas, essas indicações de afrodi-equidade, só que não encontramos isso enquadrado ao espírito de emancipação e de libertação sexual.

Porém, ainda hoje essa ideia de igualdade sexual, o direito ao prazer mantém-se disfuncional e, por vezes, reprovado na nossa sociedade. Continuamos a ceder ao homem os seus desejos, que encaramos como inapropriados à mulher. Como sociedade, ainda temos medo de mulheres com desejos e fantasias?

É uma das dimensões importantes do filme, essas questões do desejo feminino, pelo que há um quadro, chamo-lhe assim, "o corpo é meu, faço dele o que quiser", cujo fascínio é que essas palavras vêm da boca de uma mulher com uma certa idade, de um meio rural, com os seus próprios princípios de funcionamento, etc, etc. Portanto, esse momento para mim é muito importante no filme, representa uma ideia, mais uma vez a da libertação da Mulher e da sua consciencialização. Ela diz isso de uma forma muito convicta e genuína, brincando com estes termos de imposições sociais e repreensões sexuais.

Em “Prazer, Camaradas!” recusa-se a exatidão da reconstituição, optando-se por uma espécie de encenação das memórias através da incorporação de atores envelhecidos. Voltando ao estigma do desejo feminino, é também uma “farpa” ao tal preconceito da nossa sociedade?

Pois, isso continua a ser um estigma. Em relação ao trabalho dos atores... Tentei dar-lhes poder para representar. Ou seja, criamos uma margem de liberdade para isso. Em vez de textos para representarem, deram-se determinadas situações dramáticas que depois eram trabalhadas e exploradas. O que acabei por descobrir, para minha "frustração", é que esperava que me respondessem de uma forma mais retraída ao que estava a propor. Por exemplo, pedia-lhes que se sentassem em bicicletas, correspondendo ao que Reich mencionava sobre contenção, a proibição ligada à consternação social em torno da pélvis, e que lessem determinado texto. O que acabou por acontecer foi uma resposta delas muito livre, não colocando qualquer entrave, como estivessem a perceber perfeitamente aquilo que lhes estava a transmitir. Portanto, os interditos estavam muito mais em mim do que nelas. Isso foi o que descobri com toda esta experiência. Quanto mais velhos, mais livres e despojados são em relação ao seu prazer. É uma contradição em relação ao que acreditamos, que os mais velhos têm renitência em sair de um estilo de vida. Aprendi que estavam mais à vontade porque não tinham mais tempo a perder.

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José Filipe Costa

Recentemente, temos acompanhado a situação do Zmar, o complexo turístico em Odemira, em que se voltou a debater as questões de propriedade privada. Como os seus filmes abordam esta constante luta, sentiu que os fantasmas das “propriedade privadas” afinal não são bem fantasmas?

Pois, parece que não [risos]. A propriedade privada ainda está em voga. No entanto, poderíamos falar também sobre as patentes nas vacinas contra o COVID-19, que penso ser um tema muito mais pertinente neste momento, o de retirar rendimentos chorudos às empresas em prol da vida das pessoas. A questão do privado continua muito presente, as próprias farmacêuticas vendem-nos a ideia de que não existirá segurança na fabricação de vacinas após o descartamento das patentes. Neste momento, é importante relativizar isso, o que chamo de “regressar a casa”, que é bastante diferente do partilhar espaços coletivos. E este “regresso” é quase sinónimo de regressar ao nosso empréstimo bancário, ao nosso compromisso que foi criado.

Uma vez que estreou em Locarno em 2019 e encontrou só agora o seu espaço de estreia, acha que “Prazer, Camaradas!” se atualizou ou se enquadrou durante este tempo? Quando Portugal parece atravessar um período de radicalização do discurso e ideologia políticas?

Já estávamos há muito tempo nele [radicalização]. O privado está muito estruturado na nossa sociedade, que retira o poder a outras formas de organização. O que é pena, porque acabamos por ficar presos a algo que nos ultrapassa e estrutura, sem que nós queiramos e tenhamos consciência disso.

 

«Prazer, Camaradas!» Sou a revolução!

Hugo Gomes, 10.08.19

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Contradizendo a ideia romantizada envolto do 25 de Abril, o dia que assinalou a Revolução ainda hoje celebrada, não foi um dito “tampão” da ditadura e do pensamento patriarcal e algo arcaico que se vivia (e que se vive) neste país. O 25 de Abril foi uma ideia suscitada por um evento que se prolongou e o qual se debateu durante décadas, onde ainda hoje inteiramos os seus ecos e por vezes questionamos as suas ações como uma espécie de “negacionismo”.

Contudo, dentro dessa miraculosa insurreição, o fenómeno foi visto de perto pela imprensa estrangeira e outros curiosos que encaravam a “revolução dos cravos” como uma manifestação política-sociológica digna dos trilhos desbravados por Che Guevara na sua “libertação” da América Latina. E dentro desses mesmos curiosos eis que surgem quem deseja implantar uma ideologia política, que poucos anos antes era vista como uma convocação diabólica do comunismo. Pregando a igualdade e fraternidade entre o Povo e a abolição do território privado como ideais primários, a estafeta do comunismo por terras lusas, mais concretamente na zona alentejana, revelou-se mais fantasiosa que o próprio mito fabricado em volta do 25 de Abril. O audiovisual captou isso, por entre as matérias de jornais e propagandistas até ao Cinema.

Dentro desse território cinematográfico, encontramos deliciosamente a mais perfeita das analogias do quanto o Comunismo é somente um edifício de estrutura visível à beira da sua desmoronação, sentido que evidencia uma sátira terrível ao seu conceito, se não fosse o culpado da destruição dessa utopia, uma enxada. Thomas Harlan acompanhou a doutrinação alentejana em “Torre Bela” (1975) e foi o episódio de uma enxada, não o único, que iniciou uma cruzada à fragmentação de um oásis social prometido. Os gritos do camponês perante a corporativa que tenta arrancar-lhe o instrumento com promessas de partilha pela comunidade, demonstraram a despreparação de um povo desinformado e entranhado num conceito primário e oscilante de igualdade social. Esse foi o “fim”, no qual a fantasia dissipa-se e deixa todo aquele cenário a uma mera experiência social.

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E é através dessa experiência que José Filipe Costa cita a sua “Linha Vermelha” (2012), que por sua vez deixa ecos neste “Prazer, Camaradas!”, onde ensaia o registo documental com uma ficção embuste, pedindo aos protagonistas dessa doutrina rodeada de chaparros que repliquem os gestos de uma juventude inquieta e cedida a desejos longínquos politizados. Este não é mais um no território da docuficção lusitana, é uma possessão, uma invocação temporal que joga com dois formatos em prol de um objetivo definido. A reflexão de uma “inocência”, uma política ao domicílio que não desgrudou por estas bandas devido à já inteiramente consciência das suas “cobaias”. As causas são fáceis de apurar: o patriarcado enraizado, a submissão religiosa e dos costumes do arco-da-velha, elementos presentes nesta transposição que inibiram qualquer ideia anexada de outros territórios. No fim de contas, o otimismo dá lugar a uma perfeita geringonça operada por descrentes.

O episódio é concebido como um retrato pseudo-antropológico, enviesado num voluntário e fingido anacronismo. É uma atualidade em contramão com o passado retalhado, refém das memórias e da necessidade de rebelar com a nossa contemporaneidade tendo como justificação o fatal saudosismo. Perante tal observatório, José Filipe Costa orienta-se por entre um tom satírico, por vezes trocista para com esta gente empenhada, ou a tentativa de fintar os formatos estabelecidos pelo cocktail de formatos (a dita docuficção). Nesse último aspeto, o onirismo é por vezes convocado para implementar as suas armas (e salientar ainda mais o efeito de miragem quanto ao projeto de doutrinação), e a cinefilia de citação, como a colagem da mítica núpcia de “Une Femme Mariée” de Jean-Luc Godard (1964).

Mas no fim de contas, apesar do exercício implícito e do reforço à ideologia sem vingança, José Filipe Costa elabora um filme desafiante no nosso panorama. Não somente a nível cinematográfico, mas uma provocação de dois gumes aos revisionismos que tendem a persistir nos nossos debates políticos.