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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os salteadores dos papéis perdidos ...

Hugo Gomes, 19.10.24

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Paulo Branco manifestou o quão pessoal este filme é, da sua experiência, e amizade para com o escritor e poeta Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010), aos serviços “emprestados” na produção de um dos seus poucos trabalhos em cinema [“Móia: O Recado das Ilhas, 1989”], e a vontade que era em adaptar para grande ecrã a sua mais célebre criação literária, a trilogia “Os Filhos de Próspero”. Para tal necessitou encontrar um escritor/argumentista à altura dos seus calos nestas lides africanas, esse cargo calhou ao não menos talentoso José Eduardo Agualusa. Quanto à realização, segundo o produtor, a busca foi ainda mais exigente, pois era preciso encontrar um olhar que dignificasse e compreendesse a realidade subsaariana. 

O achado deu-se com Sérgio Graciano, que Paulo Branco viu num determinado filme (deste lado apostamos em "O Som que Desce na Terra", 2020), do qual o realizador demonstrou uma sensibilidade especial para com aqueles cenários e pessoas. Assim se formou a equipa: um realizador grosseiramente televisivo, um escritor que nos últimos tempos se tem aventurado no cinema ("Nayola", "Sobreviventes"), e um produtor conhecedor da obra de Carvalho, unindo forças para trazer este “Os Papéis do Inglês”, extracto memorial e temporal do eixo Namibe / Angola em ares coloniais. 

Debatendo não só essa identidade e como essas invocações do lusotropicalismo, o filme utiliza também um subtil “macguffin”, os ditos “papéis do inglês” (será um tesouro?) para “burlar” o espectador, e desta feito convidando-o a permanecer num tempo que parece estagnado, revisitado, poetizado em prol deste tributo a Carvalho. Curiosamente, Sérgio Graciano apresenta aqui o trabalho mais equilibrado da sua carreira, onde se notam os seus sacrifícios enquanto “autor”. Despojado dos vícios televisivos ou de o conceito de cinema “para todos os portugueses” (a tal trincheira comercial), através desse trato algo mefistotelicos (para com um produtor que por si é um autor por direito) reforça-se por diálogos ricos e interpretado de forma vigorosa por um elenco rico e multicultural, e adquire espaço e tempo do seu lado para induzir num ensaio de olhares e escutas, de histórias antológicas trovadas como painel multi-narrativo acima da eventualidade etnográfica e até antropológica. 

Não recorre a clichés técnicos, não cede ao excessivo uso de drones (César Mourão estou a olhar para ti) ou outros artifícios banais de esquadrias narrativas (o filme detém uma força anti-natural ao tempo do seu desenrolar, como se requeresse a nossa paciência e atenção a uma demanda remota) e os seus atos raivosamente ditadores. No fundo é uma viagem para longe, quer de nós, quer das memórias da civilização, dos contos dos expatriados, e no seu interior a história de um homem, Ruy Duarte de Carvalho (aqui interpretado por João Pedro Vaz), na sua demanda pelo seu lugar. 

Preto no Branco, uma questão de sobrevivência

Hugo Gomes, 07.10.24

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De olho no passado como quem olha para o presente: digamos que a História como revanchismo, como justiça social, num desejo íntimo de alterar o que o rumo prescreveu. Falar de colonialismos, esclavagismos e outras hierarquias artificializadas por estes sistemas sociais, são tópicos de faca acirrada, ora detém uma postura conservadorista e conservacionista a uma memória saudosista, e por sua vez protecionista a uma cânone vendido em mais do que terceira mão, por outro é a vingança e a desconstrução, o de questionar, o de olhar semicerrado ao feitos, enaltecer teor humanistas, “destruir” um cânone histórico em prol de uma expansão das vozes emudecidas. 

Com “Sobreviventes”, de José Barahona (“Estive em Lisboa e Lembrei de Você”), realizador-construtor de pontes transatlânticos luso-brasileiras, a História é uma partida, uma experiência de laboratório reforçado pela escrita de José Eduardo Agualusa, um “Deus das Moscas” que experimenta o reset social como prevalência das anteriorizadas hierarquias. Filme de cerco, portanto, de náufragos de um navio de negreiros, que dão à costa em parte incerta; um fidalgo idealista mas hipócrita, um capataz cruel, uma aristocrata e a sua filha com a arrogância própria do seu “sangue azulado”, um padre pecaminoso e um escravo com as habilidades exactas para sobreviver em ambientes inóspitos. Um grupo peculiar equacionado com a presença de um sabre, daí, é a sobrevivência e o oportunismo a fazer o resto, com uma gradual despedida às vidas passadas, aos status pré-definidos e cores de pele. É de exata investida que aquele terceiro ato do canhão de pólvora seca “Triangle of Sadness inscreveu, como as classes diluem em novos ambientes, redefinindo em novas hierarquias. 

Sobreviventes” joga essa partida de ressalto com interesse, questiona as suas ligações e por vários momentos ignora os revanchismos em prol de algo maior que todos nós - somos humanos, temos a apetência da maldade como forma de resiliência, seja qual for o grau de melanina. Mas como havia sublinhado - por vezes - o filme cai na esparradela de um olhar do nosso tempo, entre as quais uma equivalência entre um negro escravo, numa sociedade que o considera “subhumano”, para com uma mulher branca da aristocracia, presente num embate discursivo, representando a massa uniforme que muitas vozes atuais pretendem criar com todas as “boas causas”. Sabemos que não é, e muito menos fora assim, em pleno século XIX, a classe tem um teor acrescido sob o género, lutas diferentes, nada comparáveis, e vice-versa. 

Só que “Sobreviventes” salva-se das rasteiras deixadas por conseguir transmitir, e com isto dialogar verdadeiramente com a crueza e o pessimismo intrínseco da nossa modernidade que é o fracasso das utopias. Somos espécies condenadas a repetir os nossos erros, daí não haver salvação, apenas sobrevivência do socialmente mais forte. 

Na valsa com o chacal

Hugo Gomes, 25.03.23

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Comecemos pelos seguintes e básicos fact-checks:Nayola” tem como base uma peça teatral da autoria de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, é um filme sobre a História recente da Angola, da Guerra Civil até à sua inquieta e frágil “democracia”, e acima de tudo, resume-se como a primeira aventura de longa-duração de um dos grandes “peões” da animação portuguesa - José Miguel Ribeiro (“A Suspeita”, "Estilhaços"). Todos estes elementos que vos deixo poderia antever-nos a uma produção mimada através da sua narração e quem sabe pela importância, quase pedagógica, em difundir um cenário histórico para quem, como muitos europeus, desligam-se da realidade africana em geral, reduzindo-a a pontos habitués de telejornal na hora de jantar. Poderia, mas não é especificamente essa alusão. 

Nayola” é um teste à sua própria técnica, até porque a animação portuguesa presta contas à sua cobiçada etapa, o formato de longa-metragem. Juntamente com “Demónios do Meu Avô” de Nuno Beato (composto por 80% de artístico stop-motion), estes são, algumas das primeiras obras de longa duração do seu género no nosso país (há quem debata para considerar “João Mata Sete” de António Costa Valente, Vitor Lopes e Carlos Silva como o pioneiro), porém, é fácil encontrar motivos logísticos na sua narrativa para que José Miguel Ribeiro reduzisse o seu todo numa somente curta, a opção da sua real natureza leva-nos a desfrutar a possibilidade e capacidade da sua estética, aqui alicerçada ao tempo como um brilharete técnico (o espectador é conjugado a sentir a respiração, os gestos e os olhares dos seus personagens, enquanto que a animação reage a esse tempo esculpido como um desafio da sua arte). Por isso, em jeito para totós, “Nayola” espremido não é mais do que um pequeno “conto”, e isso não o impede de conquistar o detalhe, de ajeitar a cadência, e de como evitar que o grafismo acalenta amarguras, ao invés disso são acentuadas essas mesmas dores (a carnificina, a degradação civilizacional, o infortúnio em eventos-irmãos que em tempos Ari Folman salpicou no seu esplendoroso "Waltz with Bashir”) . 

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Há um percurso em Nayola [a personagem] - mulher que procura o seu desaparecido marido na frente de batalha, deixando para trás  a sua filha nos cuidados da avó (mais tarde, o seu rebento, Yara, viraria rapper e ativista anti-regime) - que é convidativo a acompanhar-nos para lá do deslumbramento, encontrando neste formato visual uma alegoria ora humanista, ora xamânica, de existencialidade condensada do Homem como uma “má piada” atirada por entes divinas. Desta forma, como “ninguém volta da Guerra”, frase ouvida e ecoada tempos em tempo, ‘chocamos’ como  maquinistas sem comboio que aclamam o Fim do conflito no mesmo espaço-tempo com que apontam a direção do vento e o chacal, animal acostumado a guiar almas defuntas e perdidas no Antigo Egipto, adquire novo cargo nesta Angola bélica, servindo-se de “coelho carrolleano” (mas nunca atrasado), em que conduz a nossa acidental guerreira à sua enfeitiçada epifania. Facilmente este seria o (outro) País das Maravilhas o qual Alice se perderia, por entre chapeleiros-loucos a rainha de copas com ânsia em decapitar … poderia, mas a Alice aqui é outra, chama-se Nayola, filha da Guerra, e não tão afortunada como a ‘menina’ do famoso conto. 

A Guerra feita por Homens que de maneira alguma nada lhe serve, apenas os confunde - “Porquê que estás a lutar do lado errado? / Mas que história essa do lado errado?” - idêntico ao castigo proferido por Deus, lançado aos “construtores” da Torre de Babel, cada um com a sua língua, não-comunicativos e em desacordo inconsciente. Felizmente esta animação nos deixa respirar … e além disso, dá-nos tempos para conquistar e não saquear-nos. Valeu a pena esperar por “Nayola”, mais uma certidão de que a animação portuguesa sempre fora GRANDE, o país é que sempre fora pequeno.