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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Provocar, no cinema, é condição para que permaneça vivo e interventivo": ENCONTROS, Festival de Cinema de Viana do Castelo avança para a sua 25ª edição

Hugo Gomes, 03.05.25

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Descrito, e orgulhosamente apresentado, como o festival de cinema mais antigo do país, no âmbito da pedagogia e formação, o ENCONTROS chega à sua 25ª edição com Viana do Castelo, novamente, o território dessa caminhada. Consolidando como um espaço vivo onde escola e cinema se cruzam com prática artística, investigação e comunidade, a cidade volta a acolher um programa extenso (de 5 a 14 de Maio), que vai do pré-escolar ao ensino universitário, e que aposta numa verdadeira imersão audiovisual: ciclos de curtas, oficinas, exposições, masterclasses, fóruns e conferências, tudo pensado para reforçar a literacia fílmica e promover o cinema enquanto ferramenta de pensamento.

Num ano em que Viana do Castelo é Capital da Cultura do Eixo Atlântico, os ENCONTROS reforçam também os seus laços com a Galiza e com dezenas de escolas internacionais, abrindo espaço ao diálogo entre culturas, métodos e visões do cinema. Com o tema “Tempos Cruzados, Inteligência Artificial em reflexão”, esta edição aposta numa abordagem crítica e atual, propondo pensar o cinema como um lugar de criação, como também de consciência.

O Cinematograficamente Falando... desafiou Carlos Eduardo Viana, da direção do festival e um dos fundadores da associação AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual, não apenas para comentar sobre a programação que este festival nos brinda, mas para nos envolver no espírito dos ENCONTROS, dessa pedagogia, desse cinema e sobretudo, dessa "arte da provocação".

Depois de 25 anos a convocar olhares e inquietações em Viana, sente que o festival encontrou o seu lugar ou continua em busca, como um filme inacabado?

Um festival é sempre uma encruzilhada de onde partem múltiplos caminhos e propostas. O seu objetivo central permanece o mesmo, os caminhos vão-se ajustando, por vezes abrem-se novos.  Muito mais do que uma simples exibição de filmes, os ENCONTROS/Festival de Cinema de Viana são um espaço de encontros, descobertas e transformações. Como uma encruzilhada simbólica, oferecem múltiplos sentidos para quem os percorre. Cada edição traz novas propostas, debates e formas de ver e pensar o cinema. 

Com a secção “Olhares Frontais” a apostarem na dúvida como princípio e na experimentação como linguagem, segundo a nota de intenção do realizador Pedro Sena Nunes, que riscos corre um programador quando escolhe provocar em vez de confortar?

Provocar, no cinema, é condição para que permaneça vivo e interventivo. É abrir portas para diálogos urgentes e formas inéditas de ver o mundo. Como disse Jean-Luc Godard"O cinema não é uma arte que filma a vida, é uma arte entre a vida e a morte." Programar sob esse princípio exige risco e é uma ferramenta poderosa para reflexão, mudança e evolução. Conforto gera passividade; provocação gera diálogo, um dos pontos fortes dos “Olhares”.

A Norwegian Film School vem partilhar curtas e metodologias, há algo na pedagogia deles que considera que falta nas nossas escolas de cinema? Ou será mais uma questão de olhar do que de ensinar?

Não sentimos que falte algo nas nossas escolas de cinema. A Norwegian Film School está integrada noutra cultura com abordagens e práticas diferentes, que podem levar a outras metodologias, mas não há melhor ou pior, ou a constatação de que, por cá, falte algo. São diferentes perspetivas. O cinema, pela sua própria natureza, é plural – não existe uma única maneira certa de aprendê-lo ou ensiná-lo. O que alguns podem entender como "carência" pode ser, na verdade, uma diferença moldada por contextos culturais, recursos disponíveis e objetivos pedagógicos distintos.

- “O Manuscrito Perdido” (José Barahona, 2010), dia 10 de maio, pelas 21h00.

- “Cartas Telepáticas“  (Edgar Pêra, 2024), dia 9 de maio, pelas 21h15, com presença do realizador

 

Com a cidade contaminada de cinema por 10 dias, sente que o festival é um espelho da realidade local ou uma lente que a distorce para revelar outras verdades possíveis?

Como disse Andrei Tarkovsky"O cinema não deve copiar a vida, mas competir com ela". O espelho, talvez contrapor com prisma. Essa abordagem permitirá que o cinema fracture a realidade, a multiplique e a reinvente. E desassossegue, para revelar outras verdades possíveis. Nos “Encontros de Cinema” isso é visível, por exemplo, na seleção de filmes para visionamento e debate em sala de cinema, ou nas múltiplas oficinas e masterclasses que abrem caminhos e apontam direções.

A secção “PrimeirOlhar” nasceu para dar palco aos filmes que ainda estão a aprender a falar. O que é que mais o surpreende no cinema feito por estudantes: é a ousadia, a ingenuidade ou a forma como nos dizem o óbvio de outra maneira?

Por não estar totalmente domesticado pela indústria ou pelo mercado, o cinema feito por estudantes é um território de descobertas. E é nesse território cheio de energia, atravessado por tentativas e acidentes de percurso que, por vezes, surgem novos caminhos. Enquanto laboratório de possibilidades, é um espaço onde as regras ainda não são rígidas e os erros podem levar a novas experimentações. Longe das pressões da economia, esse cinema é um território de liberdade, o que o torna por vezes surpreendente.

Com um público tão diverso - de miúdos do pré-escolar a cineclubistas veteranos – como se programa um festival que fale várias “línguas” sem perder a sua voz?

Programar um festival que fale para diferentes públicos é um desafio complexo, mas desafiante, desde que a curadoria seja pensada como uma rede de estradas, onde cada via tem o seu objetivo, mas todas levam ao mesmo lugar. O nome escolhido para o festival é revelador: ENCONTROS, no plural. Encontro com a investigação e a academia (Conferência Internacional de Cinema e atividades paralelas), encontro com a literacia fílmica (formação de docentes e jovens, Fórum Cinema e Escola), encontro dos jovens com o cinema em sala (Escola no Cinema), encontro e cruzamento de estudantes de cinema e público em geral com realizadores consagrados (Olhares Frontais), encontro e debate sobre o cinema (Encontro Luso-Galaico de Cineclubes)

A imagem ainda tem poder para representar o que nos rodeia, como dizem no manifesto do festival, ou o que nos rodeia está cada vez mais fora do alcance da câmara?

O mundo contemporâneo desafia diariamente a capacidade da imagem representar a realidade, mas como o seu poder não reside na fidelidade, mas na capacidade de traduzir, distorcer e reinventar o real, e sabendo que o cinema nunca foi um espelho passivo da realidade, apetece dizer como Chris Marker"O verdadeiro filme está na mente do espectador".

No cruzamento entre cinema e educação, onde acaba a pedagogia e começa a arte? Ou será que, neste festival, são a mesma coisa com nomes diferentes?

O festival procura valorizar o cinema enquanto arte, junto das escolas e respectivas comunidades educativas. Diríamos que o objetivo final dos Encontros estará alcançado quando pedagogia e arte se confundirem. 

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A programação poderá ser consultada aqui.

Preto no Branco, uma questão de sobrevivência

Hugo Gomes, 07.10.24

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De olho no passado como quem olha para o presente: digamos que a História como revanchismo, como justiça social, num desejo íntimo de alterar o que o rumo prescreveu. Falar de colonialismos, esclavagismos e outras hierarquias artificializadas por estes sistemas sociais, são tópicos de faca acirrada, ora detém uma postura conservadorista e conservacionista a uma memória saudosista, e por sua vez protecionista a uma cânone vendido em mais do que terceira mão, por outro é a vingança e a desconstrução, o de questionar, o de olhar semicerrado ao feitos, enaltecer teor humanistas, “destruir” um cânone histórico em prol de uma expansão das vozes emudecidas. 

Com “Sobreviventes”, de José Barahona (“Estive em Lisboa e Lembrei de Você”), realizador-construtor de pontes transatlânticos luso-brasileiras, a História é uma partida, uma experiência de laboratório reforçado pela escrita de José Eduardo Agualusa, um “Deus das Moscas” que experimenta o reset social como prevalência das anteriorizadas hierarquias. Filme de cerco, portanto, de náufragos de um navio de negreiros, que dão à costa em parte incerta; um fidalgo idealista mas hipócrita, um capataz cruel, uma aristocrata e a sua filha com a arrogância própria do seu “sangue azulado”, um padre pecaminoso e um escravo com as habilidades exactas para sobreviver em ambientes inóspitos. Um grupo peculiar equacionado com a presença de um sabre, daí, é a sobrevivência e o oportunismo a fazer o resto, com uma gradual despedida às vidas passadas, aos status pré-definidos e cores de pele. É de exata investida que aquele terceiro ato do canhão de pólvora seca “Triangle of Sadness inscreveu, como as classes diluem em novos ambientes, redefinindo em novas hierarquias. 

Sobreviventes” joga essa partida de ressalto com interesse, questiona as suas ligações e por vários momentos ignora os revanchismos em prol de algo maior que todos nós - somos humanos, temos a apetência da maldade como forma de resiliência, seja qual for o grau de melanina. Mas como havia sublinhado - por vezes - o filme cai na esparradela de um olhar do nosso tempo, entre as quais uma equivalência entre um negro escravo, numa sociedade que o considera “subhumano”, para com uma mulher branca da aristocracia, presente num embate discursivo, representando a massa uniforme que muitas vozes atuais pretendem criar com todas as “boas causas”. Sabemos que não é, e muito menos fora assim, em pleno século XIX, a classe tem um teor acrescido sob o género, lutas diferentes, nada comparáveis, e vice-versa. 

Só que “Sobreviventes” salva-se das rasteiras deixadas por conseguir transmitir, e com isto dialogar verdadeiramente com a crueza e o pessimismo intrínseco da nossa modernidade que é o fracasso das utopias. Somos espécies condenadas a repetir os nossos erros, daí não haver salvação, apenas sobrevivência do socialmente mais forte.