Conexões e fidelidades cinéfilas: Encontros de Cinema do Fundão celebra mais uma edição com Cinema, amizade e memória
Atlântida – Do outro lado do Espelho (Daniel del Negro, 1986)
Agosto, silly season como se aborda em matéria de cinema, um deserto de ideias ou de criatividades, ou as faces mais descobertas dos mercados dominantes. Contudo, no Fundão, o desejo é outro, fazer dessa “estação parva” numa comunhão cinéfila, uma reunião, um debate constante sobre o Cinema e as suas periferias. Recebemos a 14ª edição dos Encontros Cinematográficos, desta vez de “cara lavada” e nome alterado - Encontros de Cinema do Fundão - ficando por aí as radicais mudanças, o espírito, esse, mantém-se … tal como prometem … assim como a Moagem permanece como albergue desta “peregrinação cinematográfica” e o Cineclube da Gardunha no apoio fundamental.
De 8 a 12 de Agosto, a cidade será a capital do cinema em Portugal, novamente com sessões, debates, convívios e ainda um espéctaculo concebido pela fadista Aldina Duarte, a “Princesa Prometida”, segundo Manuel Mozos. Teremos novidades, primeiras imagens, amizades e ligações entre duas nações, duas cinefilias, e que bem. E claro, Pedro Costa! Este ano, José Oliveira, programador e realizador (“Os Conselhos da Noite”, "35 Anos Depois, O Movimento das Coisas") responde às dúvidas do Cinematograficamente Falando …, descortinando o programa destes quatro dias e o que podemos esperar destes Encontros.
Começo por lhe perguntar sobre os desafios de mais uma edição dos Encontros de Cinema do Fundão, não apenas no sentido de ser uma comunhão cinéfila fora de Lisboa e do Porto (cada vez mais tidos como epicentros cine-culturais), mas também das cada vez mais propostas que vão preencher o verão, nomeadamente o mês de agosto.
No ano passado tivemos, devido a várias condicionantes, pela primeira vez os Encontros no mês de agosto. E foi a edição com maior sucesso em termos de espectadores. Portanto, não mexemos no que funcionou. Talvez as outras propostas de verão sejam uma ajuda. Quem gosta mesmo de cinema, quem quer ver filmes difíceis de ver em qualquer lugar, opta pelos Encontros. Os desafios são sempre os mesmos: fazer muito, fazer bem, com pouco. Fazer homenagens e trazer autores há muito sonhados por nós. E não pensar um segundo na questão dos grandes ou dos pequenos centros. Os certames de cinema que sempre admirei foram anomalias de grande sucesso como o Telluride film festival, de Tom Luddy, nas montanhas do Colorado, o Midnight Sun Film Festival, fundado por Aki e Mika Kaurismäki e Peter von Bagh, em Sodankylä, ou, entre outros, o MDOC Festival Internacional de Documentário de Melgaço, no Alto Minho, organizado pela Associação Ao Norte.
Olhando para a programação, podemos constatar uma forte presença portuguesa na sua seleção, desde os consagrados (Pedro Costa), aos homenageados (Jorge Silva Melo) e aos que merecem atenção no nosso radar (Manuel Mozos). De certa forma, os Encontros Cinematográficos espelham uma vaga ou um pensamento transversal do cinema português através da sua mostra?
Se virmos a história dos Encontros, percebemos que umas das questões mais importantes, e que tantas vezes estrutura a nossa programação, é a questão da fidelidade. Fidelidade aos cineastas que admiramos, aos autores, às vozes únicas. E assim, desde que eles tenham um novo filme, é quase certo que regressarão aos Encontros. Pedro Costa, Manuel Mozos, mas também Rita Azevedo Gomes, o saudoso Pierre-Marie Goulet, entre outros. O caso do Jorge Silva Melo é importante, e também tocante, pois sempre o quisemos trazer, mas nunca o conseguimos devido a conflitos de datas. Mas agora, com a presença da Aldina Duarte, fadista que ele admirava imenso, percebemos que seria a hora de uma homenagem condigna.
Aldina Duarte: Princesa Prometida ( Manuel Mozos, 2009)
Mas não podemos deixar de referir um acto justiceiro que é para nós um dos vetores fundamentais deste ano: a exibição da cópia restaurada pela cinemateca de “Atlântida – Do outro lado do Espelho”, de Daniel Del Negro, um filme de 1986. Temos uma entrevista inédita e extremamente confessional de alguém que erradamente é considerado um eremita. A cópia está surpreendente. E assim todos poderemos apreciar em boas condições um filme único no cinema português, que combina o fantástico e o labiríntico com o lado documental e poético sobre Lisboa de uma forma nunca vista por aqui. Evidentemente, por ser uma peça única, um molde sem exemplo anterior nem posterior, foi muito mal recebido por uma certa crítica politicamente manhosa e interesseira e sem pingo de humanidade ou saber. Basta comparar o fabuloso texto de João Bénard da Costa, uns anos depois, sobre o mesmo filme, para percebermos que foi ele, como sempre, que acertou. Citando-o: «é mesmo, eventualmente, a mais radical aposta no fantástico de que me recordo no cinema português. As suas quedas - ou quebras - são, como os seus riscos, abissais. Do fundo deles, vale bem a pena sustentar o desafio que, insólita mas rigorosamente, Daniel Del Negro nos lançou.» Um momento único.
No terceiro bloco da programação [dia 11 de agosto], o José Oliveira, em conjunto com a sua parceira de realização (posso também incluir de vida?) Marta Ramos, serão o grande destaque. Enquanto realizador e programador, o eterno malabarismo, gostaria que me falasse sobre esse projeto de nome “Génesis” (cujo work in progress será exibido), assim como da escolha de “Milestones” de Robert Kramer e John Douglas na proposta carta branca.
É importante começar por dizer que os Encontros têm vários programadores, amigos, conselheiros. E que, obviamente, nem eu nem a Marta programamos o nosso filme. Foi o Mário Fernandes que fez questão, como já aconteceu noutras ocasiões em que nem eu nem a Marta estávamos ligados à programação. Outro factor decisivo é que o filme foi produzido num contexto de uma bolsa artística atribuída (em concurso) pelo Município do Fundão. Ou seja, para o processo ser validado o filme terá de ser exibido no Fundão.
O “Génesis” resulta de um longo processo de vivência e de observação de um vasto território onde o poder da natureza e das forças da natureza são soberanos. De alguém que larga a grande metrópole e se perde e se encontra num meio completamente diverso. É complicado desvelar mais sobre o filme, pois nem nós mesmos, os realizadores, estamos bem seguros de como falar dele, e muito menos de como resumir.
O “Milestones” é para nós um dos filmes mais belos, radicais e escondidos da história do cinema. Feito por amor, por puro amor, com todo o tempo e disponibilidade do mundo. Um épico intimista onde a confiança entre quem está atrás e à frente da câmara é total.
Repito esta pergunta, feita a Mário Fernandes no ano passado: os Encontros de Cinema do Fundão, podemos considerá-los um festival? Uma mostra? Uma comunhão entre cinéfilos?
A palavra Encontros é mesmo a mais preciosa e precisa para nós. Encontro entre quem ama o cinema, entre quem está interessado em descobrir novas formas, novas relações, sensibilidades, visões do mundo. Por isso desprezaremos sempre os prémios, os concursos, a competição, o circo. Importa os belos encontros, as pessoas, tornar o mundo um pouco mais habitável.
Gostaria que me falasse sobre a restante programação, de Paulo Carneiro a Miguel Ildefonso, os convidados e as cartas brancas, passando, claro, pela presença da fadista e artista Aldina Duarte.
Além da fidelidade, o que mais gostamos é de descobrir novos cineastas, novos filmes que nos toquem. O que mais apreciamos no “Via Norte” foi o respeito e o afecto do Paulo Carneiro para com os imigrantes apaixonados por carros e com coisas primordiais para dizerem. Seria muito fácil e tentador gozar com essa paixão, tornar o filme jocoso, como outros realizadores portugueses costumam fazer, e com desgraçado sucesso, mas o Paulo esteve à altura, foi digno, e por isso o filme tem momentos comoventes em que ele cria o espaço para uma expressão sincera assomar. As cartas-brancas são outra das constantes dos Encontros, e que permite achar e conversar sobre filiações com que as escolhe. Por exemplo, o filme do Miguel Ildefonso foi escolhido pelo Paulo para acompanhar o seu. Quanto à Aldina, tanto tem a ver com a homenagem ao Silva Melo, como com a nossa parceria com a Associação Fado Cale, que muito almejava tê-la no Fundão.
Na rodagem de "Contactos" (Paulino Viota, 1970)
Quais são os próximos desafios a ter em conta com os Encontros de Cinema do Fundão? Existe interesse em expansão ou o nicho/regionalidade é um artifício necessário para a sua identidade?
Não existe qualquer interesse na expansão, além da habitual extensão na Cinemateca, nossos amigos. Só faltou referir o único convidado internacional: Paulino Viota, que vem acompanhado por figuras míticas da cinefilia espanhola, como Enrique Bolado, programador e fundador da cinemateca de Cantabria e uma figura importantíssima em termos culturais mais latos, ou José Luis Torrelavega, do Cine Club Santander, catedral cinéfila de um culto precioso.
De resto, Viota é uma das grandes descobertas dos últimos anos, realizador de um dos filmes mais radicais, políticos, misteriosos e importantes dos anos 70 espanhois – “Contactos”. Jean Narboni chegou a dizer que se os Cahiers du Cinéma tivessem visto “Contactos” nos anos 70, quando Langlois costumava mostrar estes filmes duas vezes na sua cinemateca, eles teriam imediatamente promovido (e consagrado) este filme como promoveram as primeiras obras de Kramer, Cassavetes ou Huillet/Straub. Viota é ainda um enormíssimo historiador, escritor, com livros sobre John Ford, Godard ou Eisenstein, ou maravilhosos artigos sobre diversos grandes autores, como os presentes no seu último livro, “La Familia del Cine”, que será apresentado nos Encontros.
Toda a programação poderá ser consultada aqui