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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Ratos do Porão ...

Hugo Gomes, 11.09.24

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O trono é um lugar solitário, onde os delírios encaram-no como o momento da sua emancipação, já não “falam”, gritam, desalmadamente nas mentes alucinadas. Ubu, ou antes senhor Ubu, homem dessas fantasias, ansiando pela poltrona real que não lhe pertence, nem dignidade, se é que existe, a possui para o deter, nessa feita, segue pela via “cobarde”, pela baixeza, rastejante conspiração, violência e por fim a morte de uma dinastia. “Rei Ubu”, vagamente inspirado no clássico de Alfred Jarry (adapatado para teatro e para televisão em 1965), é nas mãos de Paulo Abreu (“Alis Ubbu”) uma obra de desvaires e ecos à nossa atualidade, fazendo das traições satiricamente shakespearianas, macbethianas sem classe para sermos exactos, numa caricatura a populismos e à estupidificação no Poder. 

Em feita resulta num filme que se esperneia no detalhe visual, com câmaras em locais exatos, sem nunca perdeu o pio ao seu virtuoso olho, e por outro lado o desencantado graças à sua desarticulação, pelo desenrasque e pela paródia mesclada em crítica de fraturas a um falso épico de sopros anárquicos, de maneirismos mimetizados aos clássicos históricos desenrolados sob os motes espaço-temporais de Tarkovski (é um Andrei Rublev dos pobres à cabeça), das ações shakespearianas de Grigori Kozintsev (“Hamlet”) ou dos postumum objeto-não-identificado Aleksei German (“Hard to be God”). Não são apenas os russos, o exército “inimigo-salvador” por estas bandas, existe também uma tentativa de captar a estranheza soviética dessas produções que tragavam passado como cantigas do presente. No fundo, “Rei Ubu” consente como esse retrato, mas a queda do seu “reinado” permanece em nunca rasgar as suas veste de História refletida nesta modernidade. 

Mas não cuspamos na sua totalidade, Miguel Loureiro representa essa loucura balofa e Isabel Abreu (“Os Restos do Vento”) instala-se na excelência da sua variação Lady Macbeth. Um exercício de como a barbárie e o capital, de braços dados, não são fantasmas exclusivamente do presente. 

Um palhaço enforcou-se!

Hugo Gomes, 09.09.24

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Sem Deus posso viver. Sem crédito não posso nesta vida”

Rodrigo Areias, por mais ziguezagues que faça, é na música que sempre se conforta, é dela que restaura a sua vertente cinematográfica, compondo filmes como quem compõe operetas, fazendo dos seus atores deslumbrados performistas que bailam ao som da sua sinfonia. Em “A Pedra Sonha Dar Flor”, um espectáculo visual-sonoro que recorre a textos e a um constante olhar metalinguístico sobre a obra de Raul Brandão, nomeadamente o seu “A Morte do Palhaço”, onde a comédia é vista como uma ilusão do trágico inevitavelmente reservado na vida. Assim, a música, a cargo de Dada Garbeck, reforçada pela fotografia de Jorge Quintela, funciona como anfitriã de um circense caldo de niilismo existencial. 

Trata-se de uma obra que apela insistentemente ao valor da sala de cinema, recusando o espaço doméstico e desejando, como o mineral que sonha brotar vida, transformar o cinema no seu palco. O palco do mundo, talvez! Por isso, não há como negar: “A Pedra Sonha Dar Flor” é a obra mais bela alguma vez feita pelas mãos de Areias (O Pior Homem de Londres, “Surdina”) ou, como ele próprio afirma convictamente, a produção vinda do seu coletivo Bando à Parte, casa de amigos e cooperativismo, até porque é desses conhecidos que formam a trupe encarregada de içar este filme com quem retira o corpo do palhaço enforcado, o símbolo dessa comédia de vida traída. 

É bonito, sim senhor, mas fugaz, efémero; infelizmente, prevalece apenas como a sensação do momento da projeção e nunca responde à exatidão de quem sonha vencer para lá da sua exibição. A narrativa, isso, é uma dor de cabeça para quem se apoia numa dependência lógica. O filme saltita entre filosofias, ora deprimentes, ora simplistas, de tentações ou purezas insufladas, de clandestinidades sentimentais, políticas ou outras quaisquer, ou até de pura heresia — que o diabo me leve! —, garantindo momentos ácidos e hilários sem gerar riso algum (o humor não é mais que a conscientização da nossa mortalidade). 

Talvez haja algo de pedante no seu carácter de ensaio que não agrade ao comum dos mortais ou ao espectador escapista pronto para comédias de teor televisivo ou de drones às carradas, ao invés disso subjuga-se à experiência, à deambulação, porque a vida pede esse “piloto automático”. Se assim for, temos uma sessão para o que der e vier, mas infelizmente a beleza das suas ramas não dão flor, o filme sonha em ser mais do que é; o resultado é traiçoeiro. 

Um filme belo — já o disseste? — eu sei, mas sem pretensões de ir além do momento.

Um talentoso senhor português em Londres

Hugo Gomes, 07.02.24

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Rodrigo Areias [em entrevista à Agenda Cultural Lisboa] desafia os espectadores a discordarem do título da sua nova longa-metragem - “O Pior Homem de Londres” - que aborda o chantagista, trapaceiro e manipulador negociador de arte, Charles Augustus Howell (1840 - 1890), figura digna de uma Londres vitoriana à luz de Arthur Conan Doyle (aliás é sabido que o escritor inspirou nele para compor um dos arqui-inimigos de Sherlock Holmes, e o filme mantém a sua presença como easter egg para os mais atentos). Aqui, interpretado por Albano Jerónimo em generosas doses de pomposidade, estabelece-se como um dos responsáveis pela difusão e influência do grupo de Pré-Rafaelitas, autores e artistas que na ordem de discordar da estética corrente e acadêmica, regressam às bases românticas e góticas, procurando nelas uma espécie “honestidade artística”. Dessa colheita surgiram personalidades como John Everett Millais e Dante Gabriel Rossetti, este último como estrutura óssea do drama de época aqui imposto, e cujos espíritos estabelecem pontes entre as ambições de Howell e a sua sensibilidade artística, deveras ambíguo devido à natureza da sua personagem-central.

Areias, produtor prolífico (“O Barão”, “Listen), une-se a Paulo Branco para trazer esta história sob uma perspectiva portuguesa, visto que o infame Howell tinha umas quantas “costelas lusitanas”, e tal como o manifesto artístico serviente como cenário, “O Pior Homem de Londres” anseia a regressão, instalar-se no belo conforto do “filme de época”, e para tal abre-se o armário de um vistoso guarda-roupa, até à criatividade, sem falhas, de converter Viana do Castelo numa Londres “faz-de-conta”, ou pela fotografia de Jorge Quintela, a declaração artística Pré-Rafaelitas, aliando-se à câmara irrequieta e igualmente dócil com que cada travelling por salões afora é "pincelado". É um filme com o seu "quês" de oliveriano com injecção generosas de naturalismo, ou do romantismo com que Visconti se encantou nos seus exercícios “de época”, ou, com influências de Branco, a prolongação da “portugalidade do tempo da outra senhora” de Raúl Ruiz.

Contudo, com rasgos ali e acolá, a sua narrativa devidamente esquemática (assinado por Eduardo Brito, o mesmo autor na conversão da obra-prima de Bessa-Luís ao reinado do cinema) expressa um travão a qualquer criatividade fora das quatro linhas, sentimos preso à convencionalidade em um jogo que tem tanto de televisivo (sentimos alojados a um espírito à la BBC) e de uma passividade que nunca exalta devidamente a figura de Howell (apesar de Albano Jerónimo estar em grande forma, como também está Victoria Guerra na sua representação de Elizabeth Siddal, uma das principais musas do movimento Pré-Rafaelitas). E como falou-se em “território televisivo”, e pelo andar da carruagem das nossas produções cinematográficas, não seria de estranhar a passagem de “O Pior Homem de Londres” como série, expandida e adequadamente recortada ao pequeno ecrã.

O poeta, assim como o thriller, é um fingidor.

Hugo Gomes, 10.06.23

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The Nothingness Club: Não Sou Nada” presta-se a ficcionalizar a própria ficção envolto de Fernando Pessoa, o escritor e poeta, que tal como é lido, no intertítulo inicial, poderia ter “abocanhado” o Nobel da Literatura, se não fosse a Guerra a dominar a sua contemporaneidade. Assim, o mito que borboleteia a figura pessoana está nos seus "e se", nas suas hipotéticas e nas suas probabilidades. Embora seja verdade que Fernando Pessoa é mais o que teria sido, a genialidade irreconhecida e desdobrável a personas por si criadas, a que se dá pelo nome de heterónimos, terra fértil para as mais variadas instrumentações da sua obra e da sua presença. Pessoa é personagem e tanto para iguais cenários. 

No novo filme de Edgar Pêra, os heterónimos desfilam em corredores fantasiados ou em salas de reuniões obscuras como identidades repartidas e “coladas” a um whodunit clássico a cheirar a Agatha Christie, só que ao invés da induzida excitação em tentar deduzir “quem será o assassino?”, até porque ele encontra-se perfeitamente declarado entre nós, se não fosse o facto de todas as consequências desse thriller fabricado operem como um devaneio, um pensamento ilustrado e personificado. Humanamente característico, Pessoa adquire forma (ou formas), retrai-se da historicidade e da eventual biopic, é um exercício, que bem poderia estar ao jeito do autor, porém “The Nothingness Club: Não Sou Nada” é uma recorrente citação e recitação de Edgar Pêra e da sua estética, os visuais que acompanham uma narrativa rodopiante e hipnótica, mesmo que mais contido do que o normal, de maneira a não contrapor a versatilidade da figura-mestra. O realizador situa a sua corrente artística como auxílio fabulista do primor da sua intriga. 

Para o bem e para o mal, eis um filme que fascina e igualmente cansa, sobretudo quem anseia por um lado terreno, ao invés de sentir-se acorrentado às alternativas históricas, nesse aspeto Saramago o faria mais dignificante em papel [“O Ano da Morte de Ricardo Reis”], ou a dupla André F. Morgado e Alexandre Leoni [“A Vida Secreta de Fernando Pessoa”] em quadradinhos. No cinema, João Botelho e Eugène Green fizeram-se convidados neste universo denso, lotado mas igualmente sós. Pêra apenas se junta ao seu clube do nada. 

Falando com Rita Durão, uma mulher de cumplicidades ao som de Mozart

Hugo Gomes, 14.12.22

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Rita Durão em "Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Encontros e reencontros sempre centralizaram o espírito criativo de Eric Rohmer (que hoje poderemos afirmar como um dos nomes mais influentes do dito cinema moderno). Nessa sua familiarizada demanda concebeu com “O Trio em Mi Bemol”, a sua única peça de teatro, numa revisão aos elementos humanos, passado e presente de braços dados enquanto visualizam o Futuro a passos de si. 

Porém, não estamos perante um trabalho integralmente rohmeriano. “Éric Rohmer est mort”, cantarolava Clio acompanhada por Fabrice Luchini, e as suas estâncias rumaram para outras mãos, e para outros formatos. Rita Azevedo Gomes apodera-se desse material e compõe um filme a três dimensões, um teatro inicialmente delineado, um realizador (Adolfo Arrieta) com ambições de gerar televisão a partir daquelas relações e por fim, um filme, Cinema, aí parido num “salta-pocinhas” de linguagens e estéticas. 

Segundo a realizadora, a obra foi fruto da colaboração dos seus “amigos”, artistas unidos levados a cabo para materializar e musicalizar esta visão, entre eles, calejada aliada do seu Cinema, Rita Durão, atriz que como Rohmer valoriza relações e afinidades, o seu conjunto funde Arte.

Em conversa, Rita Durão falou-nos do projeto e do seu contacto com a (outra) Rita, o seu círculo e ainda prestou a conhecermos esta protagonista. Esta “Mulher Vingativa”. 

Gostaria de começar pelo início, pelo seu envolvimento neste projeto, e sabendo que o “Trio em Mi Bemol” estava planeado ser um rádio drama ao invés de um filme.

A Rita [Azevedo Gomes] tinha-me falado deste projeto, antes de ele se tornar num filme, era um fruto da sua vontade e de verbalizar essa ideia. A conversa inicial não tinha qualquer intenção de convite à sua participação. Depois recebi um telefonema da Rita a propor-me a participar no seu então decidido filme, só que ela propunha começar a filmar no dia seguinte. Ora bem, tinha uma “carrada” de texto para decorar e a juntar isso, o meu “pouco à vontade” com o francês, estando na dúvida se aceitaria ou não. Pensava, “isto é uma grande ‘maluquice’, é muito texto em tão pouco tempo e ainda por cima em francês  … não sei se serei capaz.” Sentimentos de dúvida que embateram no meu instantâneo entusiasmo em ouvir aquela “cor” na voz da Rita ao telefone, do qual dá sempre uma vontade em “correr atrás” do seu desejo. Isto porque existe uma energia entre nós que funciona muito desta forma … por isso acabei por dizer que “Sim”. E pronto … o filme fez-se. 

Apesar de não ser um entendido a francês, alguns colegas meus notaram durante a projeção de Berlim [o filme estreou nesse festival] sobre a sua pronúncia. Mais tarde, a Rita Azevedo Gomes revelou que Rita não sabia falar francês, como me confirmou agora. 

Não, porque nunca tive francês na escola, e portanto acabei por ter, o que chamo, de um certo “francês de praia” [risos]. 

Recordo que no Teatro da Cornucópia, o Luís Miguel Cintra convidou a Christine Laurent para encenar uma peça - “O Lírio” de Ferenc Molnár - e na altura ela precisava de um assistente de encenação. Não sei bem como a ‘coisa’ aconteceu, mas acabei por ser a tal assistente. Entrei em pânico porque não sabia falar francês, e a Christine nem português, mas ao longo do processo, passadas algumas semanas, já me lançava nestas aventuras da língua estrangeira. A Christine também tentava desvencilhar no português, e se havia alguma dúvida entre nós, requisitavámos o inglês como auxílio. Portanto era umas conversas bastante misturadas [risos]. Esta experiência acabou por me dar, de uma forma bastante natural, uma aproximação ao francês. Também acabo por ler ‘coisas’ em francês, livros e até filmes que me vão acompanhando, e quanto mais fundo sigo na língua mais entendo o quão próximo está da nossa. 

Mas para este filme, com a quantidade de diálogos, acabei por recorrer e muito ao Olivier Blanc - um excelente diretor de som que se encontra em Portugal há vários anos, o companheiro da Rita Azevedo Gomes nos seus filmes, e qual cruzamos não só nesse universo mas também em outros trabalhos com outros realizadores. Ele ajudava nos meus ensaios. Gravamos por via dos telemóveis e com isso aconselhava o quanto e como teria que aperfeiçoar a minha pronúncia, por exemplo, sendo que não era uma opção do filme, visto que a Adélia, a minha personagem, assume-se como portuguesa. Por vezes o preciosismo da língua não era levado ao extremo, como tínhamos o propósito de "construir" algo agradável e que fizesse sentido. 

A juntar a isso, os ensaios por Zoom com o Pierre [Léon], que interpreta Paul no filme, sempre companheiro, estando disponível 100% para me ajudar a melhorar a língua, porque, francamente, há palavras bastante difíceis para mim, principalmente em termos de pronúncia.

Mas o filme, foi essa força conjunta em ajudar ao máximo o próximo. 

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Rita Durão em "As Bodas de Deus" (João César Monteiro, 1999)

Outro ponto referido pela Rita [Azevedo Gomes] é que a língua não poderia ser entendida como uma barreira à sua participação, visto que ela desejava manter a química encontrada entre si e Pierre Léon.

De facto, eu e o Pierre tivemos mais tempo juntos durante a rodagem do filme, e virtualmente, através dos nossos ensaios via Zoom. Eu o conheci em … julgo ter sido em Locarno, o qual acompanhei a Rita com um outro filme dela, e aí fui apresentada ao Pierre e automaticamente nos demos naturalmente bem. De alguma forma, penso que a Rita guardou essa memória, esse sentimento, pelo que mais tarde lá reencontramo-nos durante “A Portuguesa”, uma experiência que adorei. O meu papel nesse filme era muito secundário, julgo só ter tido uma deixa e era algo baço, mas encontrava-se constantemente presente em cena, e com isso ia observando tudo à minha volta. Porém, aconteceu uma interação entre nós que deslumbrou a Rita. Julgo que foi a maneira como nos relacionamos um com ou outro nessa determinada cena que a marcou, guardando os ingredientes necessários para nos voltar a juntar. “Um dia, gostaria de juntar a Durão e o Pierre num filme, e ver o que isso gerará”, deve ter pensado, pelo menos, é o que me deu a entender no tal telefonema. 

Desde “A Conquista de Faro” (2005) que a Rita [Durão] tem sido recorrente nos filmes da Azevedo Gomes. Sente que, de certa forma, o Cinema dela encontra-se inteiramente ligado à sua figura?

Francamente, não me lembro como é que conheci a Rita, mas recordo de estar na “Conquista de Faro” e aperceber-me da química que estávamos a criar. Ela gosta particularmente de trabalhar com equipas pequenas, mais íntimas possíveis, sendo uma característica que também me interessa, porque permite uma observação de tudo que está a acontecer. Outra característica da Rita é de manter-nos envolvidos intrinsecamente no projeto e levar-nos a irmos além do nosso respetivo ofício. Ela proporciona esses momentos, enquanto realizadora, não guarda as dúvidas para com ela, partilha-as com a equipa e incentiva a procurarmos uma solução juntos.

Sinceramente, acho que fomos criando uma cumplicidade. Começou com os momentos artísticos e foi saltando para nós enquanto mulheres e depois enquanto amigas. Sim, é sobretudo uma relação de amizade.

Mas foi com Rita Azevedo Gomes que teve, possivelmente, um dos momentos altos da sua carreira no Cinema. Refiro a “A Vingança da Mulher” (2012), filme que a colocou como plena protagonista e que a premiou com a distinção de Melhor Atriz da Sociedade Portuguesa de Autores. 

Não sei. Não com isto dizendo que não estou agradecida aos prémios, dos quais são bons de receber, tratando-se de uma prova de que o nosso trabalho é reconhecido, assim como o filme e da equipa também … mas o que importa referir aqui é que a “A Vingança da Mulher” foi um filme bastante especial resultante de um trabalho intenso e conjunto entre mim e a Rita. Nós nos reunimos, com a devida antecedência, para preparar este filme. Intensamente discutimos essas ideias, as cenas, os diálogos, a dicção. Aí houve um trabalho muito grande entre a pessoa que diz, a que escuta, a que realiza e a que vai encenar. Uma consolidação de uma grande proximidade que já se adivinhava, seja de projetos anteriores, mas acima de tudo, e devido à natureza do filme e a do meu papel, originando horas e horas de conversa a propósito do mesmo e na órbita desse mesmo filme. “A Vingança da Mulher” abre a janela para outros temas e outros entendimentos. 

Fora Rita Azevedo Gomes, existe outra realizadora o qual tem sido presente nos seus trabalhos - Catarina Ruivo - desde a sua primeira longa-metragem (“André Valente”, 2004), passando por “Daqui P’rá Frente” (2008) e contracenando com o ator Pedro Hestnes, no seu último papel (1962 - 2011), em “Em Segunda Mão” (2012).

Sim, é verdade, também tenho uma cumplicidade com a Catarina. Obviamente que são pessoas bastantes diferentes, mas acabo por me identificar com elas da mesma maneira. São duas mulheres importantes para mim de alguma maneira, lançam-me desafios, deixem-me integrar na concepção dos respectivos projetos e são “abertas” para mim. Gosto de as escutar. 

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Leonardo Viveiros e Rita Durão em "André Valente" (Catarina Ruivo, 2004)

Gosta de que lhe desafiam artisticamente?

Sim, gosto [risos].

Distanciando destes dois universos, a Rita partilhou uma romã com João César Monteiro em “As Bodas de Deus” (1999) … 

Sim. O Cinema é também isso, a vida a “mexer-se” e o meu primeiro encontro com o João César Monteiro foi desencadeado por esse mesmo movimento. Ele procurava alguém para aquele papel e eu acabei por cruzar-me com ele, o que me garantiu a personagem. E a verdade é que por questão geracional, ambos [Rita Azevedo Gomes e João César Monteiro] acabavam por gostar das mesmas ‘coisas’, frequentavam os mesmos círculos culturais, sendo normal que tivessem a mesma aproximação, o mesmo universo, a mesma familiaridade. 

Com o João César Monteiro ainda trabalhou em “Branca de Neve” (2000) …

Eu não participei no “Branca de Neve”.

Mas encontra-se creditada no projeto.

Sim, tenho conhecimento disso, mas não sei porquê. Era para participar, mas por algumas razões não cheguei à fase final do filme. Não apareço no filme.

Acho que ninguém “aparece” no filme [risos]

Sim. [risos]

Prosseguindo, depois participou no “Vai e Vem” (2003), o último filme do César Monteiro. Como foi trabalhar com ele? 

Essa é uma pergunta que me fazem tantas vezes. Tive uma relação muito especial com o César, aliás a minha forma de trabalhar é, prioritariamente, de criar laços de cumplicidade, gerar uma relação de cuidado para com a pessoa e para aquilo que me é proposto. 

Eu gosto muito de observar os realizadores, da mesma forma que eles nos observam, também gosto muito de observá-los. 

Nesse seu campo de observação e visto possuir uma carreira que oscila entre o Cinema e o Teatro, tenta "transferir" experiências de um território para o outro? 

Sim, porque as ‘coisas’ não devem ser arrumadas nos seus cantinhos como gavetas. As gavetas devem permanecer “semi-abertas” para que deem espaço para criação e transferência de ideias de um território para o outro. Pelo menos penso dessa forma, porque muitas vezes eu roubo do Cinema, elementos que levo para o Teatro e assim sucessivamente. 

E quanto ao Teatro, existe uma certa afinidade deste território no cinema de Rita Azevedo Gomes.

Sim, há uma construção de cenas e situações que nos remetem ao universo teatral. Cada cena decorre num determinado sítio e num determinado tempo que é permitido de alguma forma ser inventado ou reinventado, e todas aquelas cenas possuem um significado, uma representação, cabe ao espectador tentar compreendê-las e sucessivamente encaixá-las. Soa tanto a Teatro.  

Só que no Teatro existe um contacto direto com o seu público no ato da sua criação, não uma reação à posteriori.

Sim. Mas antes da peça em si, existem os ensaios. É um pouco de Cinema dentro do Teatro, que por sua vez, acaba por ser o Teatro dentro do Cinema. Essa questão do público é uma questão de consciência, nós sabemos que o que fazemos irá ter um público em determinada altura, portanto, tentamos antecipar essa reação, seja no Teatro, seja no Cinema. A grande diferença, é que no Teatro, por vezes temos uma reação direta e manifestante, por exemplo, o riso ou a tensão, a energia emanada no público. No Cinema, não temos essa energia, mas temos outra libertada na cena, na cinematografia, ou entre nós, no qual sentimos, depois temos a restante equipa que nos observa, um público improvisado, naquele preciso momento é como se tivéssemos uma espécie de Teatro íntimo. 

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Rita Durão em "A Vingança da Mulher" (Rita Azevedo Gomes, 2012)

Qual é a sua “reação” ao termo que tem ganho uma conotação pejorativa que é “teatro filmado”? Relembro que é diversas vezes dirigido ao cinema português.

Não tenho muito para dizer sobre isso. Acho que o “teatro filmado” pode ser algo extraordinário desde que faça sentido a sua existência. Quanto à conotação … sinceramente, não sei muito bem o que dizer.

Falou-me há pouco do francês vindo dos “filmes que a acompanharam”, pergunto se Éric Rohmer entra nesse cardápio?

Não entra muito, para dizer a verdade. Quanto a Rita falou comigo sobre o projeto, percebi que não era um realizador do qual acompanhava. Na altura, achei por bem não ver nada dele para que não haja influências. O que fiz, e do qual adorei fazê-lo, foi consultar as suas entrevistas, o de ouvi-lo falar sobre os seus pontos-de-vista, do que pensava, da sua perspectiva quanto à Arte, à Vida sobretudo. De resto, tentei manter-me como uma “folha em branco”, preferi essa abordagem ao invés de me aprofundar no seu universo cinematográfico Se tivesse feito isso, teria como consequência de me sentir aquém do seu estilo ou algo do género, e nisso condicionar-me. Senti que os filmes poderiam ter um efeito diferente no “O Trio em Mi Bemol”, poderia não funcionar a aproximação do mundo da Rita com o do Rohmer, por isso evitei essa abordagem. 

E no final disso tudo - depois do “O Trio em Mi Bemol” - não ficou com vontade de espreitar a sua cinematografia?

Fiquei, mas confesso que não tenho tido o tempo necessário para o fazer. A correria entre o trabalho, os filhos, as peças para ler, não permitem aquele “tempo de qualidade”, que por vezes é essencial para a nossa receptividade. Julgo que o Rohmer merece melhor. 

É sabido também que vai ou já esteve a trabalhar com o Luís Filipe Rocha na adaptação do livro de João Ricardo Pedro, “O Teu Rosta Será o Último".

Estive a filmar com o Luís Filipe este ano, do qual terminamos no início de maio, e … pelo que vou sabendo, está praticamente pronto. Mas não sei mais detalhes nem sequer quando estreará. 

À 7ª edição, o Close-Up decide reunir a "Família". Arranca o Observatório de Cinema de Famalicão.

Hugo Gomes, 14.10.22

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Mamma Roma (Pier Paolo Pasolini, 1962)

Para muitos Cinema é somente ver “pictures on a screen”, parafraseando Hollywood, esse oásis do espectáculo, mas existem outros que deparam com estas imagens em grande ecrã em afetividades, emoções envolvidas e devolvidas para mais tarde serem partilhadas por quem compaixão nutre para com tais sensações e impressões. Chama-se cinefilia, o que não é menos que uma “Família”, improvisada, mas sustentada por essa paixão pela Sétima Arte. Família é também o novo estado do Close-Up, o Observatório de Cinema em Vila Nova de Famalicão (a decorrer na Casa de Artes a partir do dia 15 de outubro até 22 de outubro), a 7ª edição, ou como bem gostam de se apresentar, o 7º episódio desta iniciativa que tem magnetizando cinéfilos e cinefilias para a cidade.  

Como já é tradição, o primeiro dia será marcado pela espetacularidade envolvido em memórias de “fantasmas do Natal Passado”, neste novo episódio a tarefa cabe ao grupo musical Glockenwise (Nuno Rodrigues, Rafael Ferreira e Rui Fiúsa) para acompanhar “Melodie der Welt” (Walter Ruttmann, 1929), com isto esperando trazer até ao seu público toda a melodia que o Mundo contém. O Close-Up também nos convidará a regressar ao Gabinete do doutor Caligari (“Das Cabinet des Dr. Caligari”, Robert Wiene, 1920) através de um filme-concerto assinado por Haarvöl, e a fechar a edição com “Memorabilia”, de Jorge Quintela, desta feita com acompanhamento dos Miramar.  

A programação “passeará” por universos familiares da nossa cinefilia, de Paulo Rocha a Emir Kusturica, este primeiro representado pelo documentário de Samuel Barbosa [“A Távola de Rocha”] e o segundo pelo tão célebre “Black Cat, White Cat”, ou por Antonioni a Pasolini, bem representados com cópias restauradas na seção “Histórias de Cinema”, porém o grande destaque deste ano é o ciclo dedicada à documentarista Catarina Mourão, presente para conduzir uma masterclass, é uma oportunidade de conhecer e reconhecer a sua obra, uma reunião das suas primárias pegadas (“A Dama de Chandor”, 1998) ao seu mais recente trabalho (“Ana e Maurizio”, 2020).

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Vizinhos (Pedro Neves, 2022)

Sem esquecer da apresentação de dois livros sobre a nossa relação com o Cinema, seja pela sua História (“História do Cinema: Dos Primórdios ao Cinema Contemporâneo”, organizado pelo professor Nélson Araújo), seja pela sua pedagogia ("Hipótese de Cinema: Pequeno Tratado Sobre a Transmissão do Cinema dentro e fora da Escola” de Alain Bergala), e da estreia de “Vizinhos”, a nova curta-metragem de Pedro Neves (“Tarrafal”, “A Raposa da Deserta”), produzido pelo Teatro da Didascália e pela Red Desert, sobre a comunidade vivida no Edifício das Lameiras, a ser exibido na mesma sessão de “Black Cat, White Cat” de Emir Kusturica.

E é difícil o Close-Up falar sobre família e não demonstrar a sua. Como é habitual no Observatório de Cinema, todas as sessões são comentadas por diversos convidados, desde jornalistas a críticos, artistas e intelectuais, todos unidos para uma só tradição - celebrar o Cinema enquanto Família que somos.

Toda a programação poderá ser consultada aqui.

Amemos até ao fim dos Mundos ...

Hugo Gomes, 26.05.22

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As ideias estão lá! “Mar Infinito”, um atestado à Humanidade na sua decadência, não vive o suficiente para se assumir como longa-metragem. O exercício parece arrastar-se para além da sua longevidade. Enquanto isso, é de salientar a persistência de Carlos Amaral em tecer cenários pós-apocalípticos e futuristas no limite das suas possibilidades, afirmando-se na inventividade da criação, o “know-how” que refiro constantemente como manobra de génio num cinema, como o nosso, pobre em recursos. 

Depois da curta “Longe do Éden" (2013), Amaral parte nesta nova etapa com um relato existencialista, quase malickiano (ou “maliquices” conforme a conotação), explorando os seus cenários para o desejo da sua projetável reconstituição. As ruínas de uma civilização outrora moderna, contemporaneamente ultrapassadas, ou os lamaçais sem fim que dão lugar a Oceanos sem aviso prévio, ambos inabitáveis, a Terra e o fora dela como possibilidades de um “faz-de-conta” esgalhado. Sim, de “Mar Infinito”, a concepção é tudo, o intuito do conceito e da prática convertem a produção de Rodrigo Areias [Bando à Parte] num "caso de estudo" dentro do cinema português, nem que mostra da experiência do realizador na área designada de “efeitos visuais”, o qual operou em modo zeitgeist na plenitude da “indústria” (menciono alguns exemplos mais impressionáveis nesse campo como “Soldado Milhões”, “A Herdade” ou “Caminhos Magnétykos”). 

Porém, até que ponto essa mestria justifica uma longa? Ou será a imperatividade desse mesmo formato automaticamente sinónimo de autor emancipado que obriga realizadores a avançar num passo maior do que a sua própria perna? O resultado está à vista da linha terrestre, a filosofia inerente amontoa e orbita perante a contemplação do mesmo cenário (o romance vivido pela dupla Nuno Nolasco e Maria Leite não como estado, mas antes como uma consolidação de inquietações, medos e dúvidas) ou seja, em “bom português”, o filme esgota a sua proposta. Ele bem tenta remexer-se em reviravoltas, mas até aí o espectador já encaixou todas as peças do puzzle. 

No seu último fôlego, o que resta neste “Solaris” lusitano é o deslumbramento da sua própria estética. Exercício terminado! Passemos para o próximo. 

Rita Azevedo Gomes e o nevoeiro em três dimensões

Hugo Gomes, 21.03.22

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Há um sentimento de repetição, não em Rita Azevedo Gomes devo dizer, mas em mim, que tenho acompanhado a sua obra e que nunca obtive o privilégio de “presenciar” a realizadora das “imagens em transe” nem o “para aí além”. Sempre deparei-me com o fenómeno como uma espécie de exagero subtilmente implantado entre nichos como resposta a um cinema que tem se espalhado fora desse concentrado de adornos intelectuais e ócios comumente replicados, tendo como centro a Cinemateca (o qual trabalha como programadora), a raiz de toda uma ideologia cinematográfica que por aí expande ou fomenta. Basta verificar nos seus defensores do outro lado do Oceano Atlântico, que por um lado olham para o Cinema Português de uma forma limitada ou a encaram como uma homogénea demanda, nunca sobressaindo das linhas oliverianas ou cesarianas, e por vezes tendo em conta uma trajetória própria de Pedro Costa. 

Quanto a Rita Azevedo Gomes, novamente cito João Bénard da Costa, ator-convidado ao seu "Frágil como o Mundo” (a sua melhor obra até à data) em que explicita um nevoeiro que amedronta os corações dos Homens, essa mesma neblina, desconhecida salienta-se, empesta o potencial de uma realizadora em conseguir um cinema que seja seu por direito, e que não invoque as auras tidas de um Oliveira, de um César Monteiro ou até mesmo do artista plástico Luís Noronha da Costa (o qual Rita Azevedo Gomes trabalhou como atriz e assistente de realização no ainda muito obscuro “O Construtor de Anjos”, em 1978). 

Por outras palavras, sempre espero mais dela do que meros “filmes para amigos e para específicos amigos”, ou o reconhecimento por detrás daquele travelling serpenteado nos aposentos da decadente duquesa em “A Vingança de uma Mulher” (2012) ou do cuidadoso mise-en-scène em “A Portuguesa” (2018), exista um temor em desconstruir as suas práticas e conhecimentos em prol de uma linguagem própria e desafiante. No fim de contas, Rita Azevedo Gomes constrói quadros de natureza morta, de estagnada vida que por lá reside. Na chegada de “O Trio em Mi Bemol", com base numa peça de Eric Rohmer e o tormento que é em (re)adaptá-la à televisão e por sua vez ao cinema, sou hipnotizado com a seguinte imagem: Rita Durão (atriz-fetiche do cinema de Gomes), “escondida” na quietude da noite, fumando o seu cigarro anestésico, apenas “acompanhada” pela lua cheia que de “braços abertos” abraça-a assim como o mar de costas voltadas para a mesma. Bela imagem, confesso, ressaltando o olho pitoresco e de preciosa perspetiva renascentista da realizadora. 

Quanto ao resto … porém, o resto é fazer teatro escorrer em trajes cinematográficas, enriquecendo em planos conjuntos que desafiam o oscilar das diferentes dimensões. Só que a esta altura do campeonato, os involuntários propósitos de Rita Azevedo Gomes confundem com os propósitos do enredo, transformando tudo aquilo num programa televisivo. Se em parte os dilemas e bloqueios criativos do realizador empenhado à tarefa (Adolfo Arrieta) tentam conduzir o filme para além da sua matéria-prima, por outro, e aproveitando a deixa da assistente de realização a este veterano nos primeiros minutos de “O Trio em Mi Bemol” - “Tudo é uma grande farsa" - não poderíamos estar mais de acordo, os alicerces enferrujados estão à vista de todos, e nem sempre é por culpa da artesã, porque como a própria adianta em prólogo  -“Este filme só existe graças à colaboração desinteressada de todos os que nele participaram”. No fundo o que está implícito é um exercício, e como todos os exercícios não existe muito mais além do ato de exerção do mesmo. O nevoeiro continua por trespassar.

Feliz por fora, triste por dentro

Estátuas, tamboris, robôs e hipopótamos: Gabriel Abrantes demonstra a sua criatividade em Quatro Contos

Hugo Gomes, 29.10.20

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Estreia nas nossas salas um quarteto de curtas-metragens que melhor sintetizam um realizador em rápida ascensão nos quadros portugueses: “Quatro Contos de Gabriel Abrantes”. Jovem, prolífero, criativo e ao seu jeito provocador, para os mais desatentos foi o responsável (em conjunto com Daniel Schmidt) de uma comédia tresloucada que se passou por sátira a uma das figuras incontornáveis da contemporaneidade portuguesa – Cristiano Ronaldo.

Nesta coletânea de contos, como indica o título, somos levados pelos devaneios do nosso inconsciente com tamboris à mistura em “Freud Und Friends”, seguido pelo resumo histórico que levou à criação de uma enigmática escultura de Constantin Brancusi em “A Brief History of Princess X” e terminando com os dilemas amorosos de um robô (“Humores Artificiais”) e da evasão de uma estátua “banal” no algoritmo dos coletes amarelos (“Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra”). São enredos excêntricos, trabalhados lado a lado com os seus encantos visuais, traduzindo numa estética que em muito o Cinema Português não está, interiormente, preparado.

Gabriel Abrantes falou sobre o projeto e cada uma das suas “estações”, de forma a decifrar um sentido único no seu cinema.

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Uma Breve História da Princesa X (2016)

Sabendo que Gabriel Abrantes já frequenta estes cantos cinematográficos há algum tempo, foi com “Diamantino” e o prémio da Semana da Crítica que o despertou atenção num público mais desatento. Com isto deparamos com uma seleção de quatro curtas suas, algumas delas igualmente premiadas em festivais. Fez parte desta escolha de trabalhos seus? Se sim, como procedeu à seleção e a sua imposição orgânica de forma a criar uma obra única e plena?

Queria programar uma sessão das minhas curtas mais recentes, uma delas, feita a seguir ao “Diamantino”, e que fazem parte do mesmo universo do “Diamantino”, no sentido que são filmes que misturam o cinema de género com um humor absurdo, histórias por vezes delirantes e fantásticas mas que falam das realidades de hoje. Se existe um fio condutor na sessão, é o humor e o amor, que são temas que permeiam todas as curtas.

“Freud Und Friends” havia anteriormente integrado um filme coletivo, uma espécie de “cadáver esquisito”, se bem me lembro, foi uma proposta do Indielisboa (“Aqui, em Lisboa – Episódios da Vida de Uma Cidade”, juntamente com Denis Côté, Dominga Sotomayor e Marie Losier). Neste caso, o seu contributo emancipou-se do conjunto e encontrou nova vida noutro “mosaico”.

É verdade! Gostei muito de participar no projeto ‘Aqui, em Lisboa’, e estou muito grato ao IndieLisboa por me ter convidado na altura. Gosto que os espectadores agora tenham a oportunidade de ver o “Freud Und Friends” neste contexto, rodeado de outros filmes meus. Acho que o filme ganhou alguns sentidos bem diferentes agora que está contextualizado com outras curtas minhas.

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Freud und Friends (2015)

Há um delírio pecaminoso em “Freud Und Friends” e mais que isso, um deboche aportuguesado dos nossos “brandos costumes” (falo obviamente daquele intervalo através de um pseudo-filme de um pseudo-Woody Allen e uma Lisboa sob perspetiva “”gringa”).

Freud Und Friends” é um exercício de auto derisão, e o trailer paródico para um filme do Woody Allen e goza com o Woody Allen e a forma que este fez vários filmes que funcionam como obras de propaganda para o ministério de turismo de diferentes cidades europeias.

Chegando a “A Brief History of Princess X”, o que fez interessar pela escultura de Constantin Brancusi [Princess X], desde a sua história e o absurdismo o qual a mergulha?

A Princesa X é uma escultura muito particular, porque é uma obra que representa, no modo da abstração, uma forma fálica, e parece uma piada infantil ou boçal, mas que foi feita por Constantin Brancusi, um escultor modernista, um dos inventores do abstracionismo, e escultor que enaltecia o seu trabalho a um patamar místico quase religioso. Essa contradição entre a piada infantil e a escultura mística atraiu-me a pesquisar esta obra, e daí descobri a inspiradora história de Princesa Marie Bonaparte, uma das figuras mais importantes da história da psicanálise. Depois de mergulhar um pouco nessa pesquisa quis fazer um filme que retratasse a escultura e a Princesa Bonaparte.

“Os Humores Artificiais” é um filme que vem demonstrar com exatidão um dos seus reconhecíveis gestos, o trabalho visual e as suas derivações de efeitos especiais que se integram nestas mirabolantes narrativas. Gostaria que me falasse dos efeitos visuais e a importância destes nos seus filmes?

Sempre gostei de efeitos visuais, os mundos fantásticos criados pelos efeitos visuais é uma das coisas que mais me seduz no cinema. Cada vez gosto mais de trabalhar com efeitos especiais. Procuro fazer filmes que misturam um lado fantástico com temas atuais da nossa realidade contemporânea, e os efeitos especiais facilitam essa mistura. Trabalho com a IrmaLucia, uma empresa especializada em VFX, e muito do meu trabalho seria impossível sem os talentos deste atelier.

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Humores Artificais (2016)

É possível que “Humores Artificiais" seja um dos seus trabalhos lineares e ao mesmo tempo complexos. Esta oposição de humor / amor leva-nos a refletir a duas (assim cremos) impossibilidades para a vida artificial, no entanto, o Gabriel Abrantes dá esperança aos robôs em ambas virtudes.

Estou muito interessado nos mais recentes desenvolvimentos no campo da inteligência artificial, e este filme partiu desse interesse. Existem realmente alguns pesquisadores que estão a tentar criar ‘robôs de stand-up’ e o filme partiu dessas inspirações.

Na “As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra”, somos confrontados com a curiosidade mórbida duma “banal” estátua do museu do Louvre, que mesmo reduzida à sua frustração existencial, consegue à sua maneira instalar uma “revolução”. A revolução parte de gestos “vulgares” que involuntariamente tornam-se gloriosos?

A Menina de Pedra é uma escultura naïf, e na sua naiveté consegue ter fé no impossível, e talvez essa ingenuidade pode ser uma raiz do espírito revolucionário. O filme é inspirado num conto de Hans Christian Andersen, ‘O Pinheirinho’, sobre um jovem pinheiro, que sonha um dia ser uma árvore de natal. É igualmente sobre um ser naïf, que deseja ser algo que não deveria ser. O filme pega nesse tema e adapta-o ao conflito entre ‘arte’ e ‘política’.

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As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra / Les Extraordinaires Mésaventures de la Jeune Fille de Pierre (2019)

Como artista visual, gostaria que me falasse sobre as prolongações de “Humores Artificiais" e “As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra”, que cada uma à sua maneira serviu de instalações artísticas.

Muitos dos meus filmes foram exibidos de diversas formas, em cinemas, festivais e museus. Gosto muito de poder mostrar os filmes em diversos contextos, e acho que servem públicos diferentes, e a experiência do filme é diferente.

Quanto a novos projetos? O veremos aventurar em uma nova longa-metragem?

Estou em pré-produção da minha próxima longa-metragem, um filme de terror passado em Trás-os-Montes.

«Surdina»: Sussurrando nos nossos ouvidos, a esperança de mais um Dia

Hugo Gomes, 08.07.20

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Já se tornou corrente mencionar que o “tempo destrói tudo”, como se de um slogan de conveniência e de irredutível verdade se tratasse, mas, aqui, o tempo parece ter também os seus dotes de restaurador. Falar de “Surdina” atualmente é referir um hiato crucial desde a sua estreia agendada nas salas nacionais (em abril) até ao seu definitivo lançamento, após três meses de confinamento. Como tal, uma realidade drasticamente alterada perante uma crise de ordem mundial iluminou esta longa-metragem assinada por Rodrigo Areias (“Ornamento e Crime”, “Hálito Azul”) com uma nova luz.

O luto ficcional de um homem, Isaque (António Durães, com os seus ares de Anthony Quinn), que acobarda-se perante a real situação que vive, adquirindo com isto uma mensagem de esperança e superação das imensas adversidades que nos prendem a “bestas” enclausuradas que grunhem desalmadamente. Obviamente que o cuidado visual, sonoro e metaforizado deste suposto retrato da “portugalidade” ainda existente nos cantos e recantos vimaranenses, é fruto da dedicação e união da equipa da resistente produtora Bando à Parte, do seu realizador (cada vez mais focado em dinamizar o panorama cinematográfico nacional) e de um escritor visado a argumentista (Valter Hugo Mãe), num sustento esforço de invocações memorialistas.

É um “recuerdo” com ares de bucolismo, um retrato vivente de um país ainda refugiado no seu quotidiano costumeiro e tradicional, e dos maneirismos típicos que são restringidos à sua ruralidade. Quase como um filme-comunidade, Rodrigo Areias consegue com a sua maturada candura, uma resistência revitalizadora e desprendida perante os futuros incertos, sincronizado com a banda-sonora de Tó Trips, uma nota para a mais evidente marca autoral do seu cineasta. Aqui, as sonoridades da sua carreira dialogam umas com as outras, conectando-se através de uma corrente, uma partitura sob a composição constante, para ser ouvida e “vista” sem encriptações.

Um pequeno e agridoce filme para abrir o nosso apetite ao desconhecido.