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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

15 Anos, Escritos de Resistência [Índice]

Hugo Gomes, 12.08.22

Pontas soltas…

Hugo Gomes, 25.07.22

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Agathe Rouselle em Titane (Julia Ducournau, 2021)

Não sou pessoa de celebrações, viciado em efemérides, nem particularmente gosto de qualificar o quantificável. Em 2022, o Cinematograficamente Falando ... fez 15 anos e o C7nema chegou aos 20. Seja qual for a idade de qualquer um deles, e de muitos outros (parabéns a todos no ativo porque celebram uma idade qualquer), não é obviamente por aí que se prova mais ou menos amor pela escrita, pela crítica ou pelo Cinema, mas apenas e só que se reuniram as condições ótimas para se fazer algo que é um notório exercício de privilégio sobre uma arte que também ela foi construída por outros privilegiados.

Por isso mesmo, e durante estes anos todos que escrevo ou falo sobre cinema, a grande maioria deles sem qualquer tipo de remuneração, nunca senti que era maior ou menor que ninguém, a começar por todos aqueles que tinham plataformas que foram desaparecendo à mesma velocidade que outras chegavam. 

Tive a sorte (privilégio!) de aos 10 anos me darem um Spectrum, com o qual programava mais que jogava. Ao mesmo tempo, tive a sorte (privilégio!)  de ter uma mãe cinéfila, a qual religiosamente me levava ao cinema aos domingos, e uma tia que trabalhava nas salas da Lusomundo, e que me deixava entrar neles durante a semana. Já sem acompanhamento familiar, seguia religiosamente as Matinés da TV, a Lotação Esgotada e a Última Sessão. Seguiu-se o privilégio de ter um vídeo com 3 cabeças, gravando tudo o que via, e, claro, aceder aos videoclubes e uma excecional RTP2 que serviu de formação, não apenas pelos filmes que mostrava, mas das pessoas (críticos e não só) que falavam deles. Liceu, faculdade e outros cursos pelo meio, além de livros, revistas ( Se7e, Blitz e Expresso, fundamentalmente) e milhares e milhares de filmes. Em todas estas etapas, a minha casa transformou-se num cinema para os amigos e a minha mochila num videoclube ambulante. Paixão, amor, whatever, pois claro, mas muito privilégio.

Creio que só 10 anos depois de o C7nema estar no ativo conheci o Hugo (2012?), algures no São Jorge. Foi um  ano de viragem, no qual os visionamentos, nas salas ou em casa, e as discussões a seguir a eles, tornaram-se cada vez mais energéticas, e sempre, nem que fosse um filme que nenhum gostasse (Olá “American Sniper"), em exercícios intensos (e estafantes) de discussão artística e política - de tal maneira que quem estava de fora pensava que íamos andar à pancada. Em termos de C7nema, isto não era propriamente uma novidade, pois já no período de 2002-2005 as discussões eram bem acesas e estafantes.

Mas ao longo de todos estes anos, onde inequivocamente existiu paixão, amor e até obsessão, o tal privilégio nunca nos abandonou. E além do estudo da imagem e das palavras, além da forçosa saída para outras fontes (artes, religião, política, sociedade, etc) para escrever sobre Cinema, a noção da presença desse privilégio tem de estar constantemente nos nossos olhos, cérebro e mãos quando escrevemos. Não é fácil, até porque como dizia Georges Duhamel, “nenhum de nós consegue pensar como quer pensar. Os nossos pensamentos foram substituídos por imagens em movimento”. E são essas imagens que nos conduzem (e contra as quais tanto lutamos como namoramos) para as transportar para o papel ou computador, sem medo de desagradar ou falhar. 

Pauline Kael dizia que a primeira prerrogativa de qualquer artista, em qualquer meio, era o de fazer o papel de palerma. E nisso, o crítico, como criador de algo (um pensamento, uma ideia, etc, a partir de outra), além da noção de privilégio tem de ser implacável, mesmo que a honestidade (que se exige que tenha) seja vista como ridícula e lhe roube cliques, leitores ou likes. E nem um gracioso vai-te foder, uma chapada à entrada da sala de cinema, ou a expulsão de um visionamento, o pode condicionar, pois se ele existe apenas para agradar, servir ou servir-se do mercado, então renomeie-se o termo. É que se o cinema morreu e se hoje até já só falamos de “conteúdos” ( e não filmes), talvez o crítico de cinema tenha morrido juntamente, e afinal caminhamos todos sobre as suas ruínas como influencers.

 

*Texto da autoria de Jorge Pereira, fundador, editor, jornalista e crítico do C7nema

Falando com Zabou Breitman & Eléa Gobbé-Mévellec, realizadoras de "Les Hirondelles de Kaboul"

Hugo Gomes, 17.05.19

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Proveniente do mesmo estúdio que nos deu algumas das obras de Sylvain Chomet (“Belleville Rendez-Vous”) e a saga “Ernest & Célestine“, acima de tudo, esta é a experiência de duas mulheres que decidem aventurar-se na direção de um filme animado.

A veterana atriz francesa Zabou Breitman, que se estreou na realização em 2001 com “Se Souvenir des Belles Choses“, une esforços com a animadora Eléa Gobbé-Mévellec para nos levar a uma história de esperança numa cidade dominada pelo radicalismo islâmico. Aconteceu em Cabul, mas poderia acontecer em qualquer outro lugar do planeta.

Integrado na seleção da Un Certain Regard, tive o privilégio de conversar com a dupla de realizadores que se aventuraram no universo da animação para criar uma história de gestos e consequências.

Porque as andorinhas são o prenúncio da Primavera … seja onde for.

Como começou esta aventura?

ZB: Depois de receber o guião e de ler o livro, comecei a reescrever o texto, juntamente com a Eléa [Gbobé Mévellec], que tinha sido escolhida depois da busca que fizemos para encontrar a animadora certa para este projeto. A sua interpretação para esta produção era perfeita e totalmente em contraste com o que eu pretendia. Eu queria contar a história de maneira hiperrealista e a abstração do seu trabalho fez neste caso um “casamento perfeito”.

Tem uma carreira como atriz. O que a fez entrar na realização de animação?

ZB: Também sou encenadora no teatro e atriz e considero sempre importante contar uma história, independentemente da forma que o faço. Sempre adorei animação e quis lidar com o género. Mas esta é uma animação muito peculiar, pois o meu ponto de partida foi a performance de atores reais que selecionei, vesti, e filmei. Eu dirigi-os e em todos os sentidos eles podiam improvisar e errar. Depois, a animação, estas personagens animadas eram baseadas nessas verdadeiras performances. Essa foi a maior dificuldade, especialmente para a Elea. Nós queríamos a sua arte, a sua abstração, mas ela tinha de trabalhar isso a partir destes atores de carne e osso.

Mas essa técnica é tradicional, na linha da rotoscopia?

EGM: Sim, é uma técnica tradicional mas usada no computador. Tudo é desenhado frame a frame e tivemos de escolher, para cada personagem, o desenho. Simultaneamente, no nosso estilo residem rasgos de aquarela. Para cada personagem tivemos de escolher os frames do filme real e ver como os traduzir em desenhos, selecionando os movimentos que eles fariam ou não em cada sequência.

ZB: Uma das preocupações do animador aqui foi não animar muito [risos]. Se animasse tudo ia gerar demasiados movimentos. No meu filme, há personagens que não fazem nada; levantam as sobrancelhas, ou fazem uma expressão facial. Isso é o mais difícil para um animador que anima o seu filme dois segundos por dia, em média. E tal como a tua cabeleireira te quer cortar o cabelo a toda a hora, um animador quer animar. [risos]

Antes de ter o guião tinha lido o livro?

ZB: Não, mas conhecia o livro. Era um livro muito famoso, vendeu mais de 700 mil cópias, mas como disse anteriormente, li-o depois de ler o guião. Depois, após a leitura, achamos que podíamos acrescentar coisas e eliminar outras, por isso foi necessário reescrever o argumento. Todo o processo de adaptar uma obra é uma espécie de traição, de certa maneira, pois temos de selecionar elementos que queremos manter e outros que deixamos cair.

E fiquei a saber que fica mais fácil quando nos conhecemos. Para mim, escrever era fácil quando pensava como a Eléa e o seu estilo particular traduziria o texto para uma imagem animada. As cores, as texturas da imagem, a forma como ela usa o seu talento como uma porta, uma expressão artística. Por exemplo, o trabalho da Zunaira no filme é completamente diferente do livro. Ela no livro não é uma desenhadora, uma artista gráfica. Isso foi o meu tributo a ela. O facto de a conhecer [Eléa] cada vez melhor ajudou-me a distanciar-me mais e tornou tudo mais fácil na adaptação.

Esta história passa-se em Cabul, mas tem de certa maneira um tom universal, até pelo aumento do radicalismo e das histórias que nos chegam. A frase “O mal triunfa se os bons homens não fizerem nada“, explica o contexto do seu filme?

ZB: Essa frase é um pouco sombria, mas talvez. Talvez seja uma boa frase, não sei. Eu tendo a pensar que quando as boas pessoas não fazem nada, poderão mesmo assim expor o seu pensamento filosófico, poético e até desenhar. Mas se a maldade não existisse, eu não teria a capacidade de fazer filmes [risos].

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É importante estar sempre vigilante, e como já disse a outros colegas seus, a educação é fundamental. Encontrar o que está mal e corrigir. Ter um papel ativo nessas situações. Mas por outro lado, não podemos esquecer os missionários do passado que tentaram espalhar a palavra de Deus e exterminaram as colheitas e eles mesmos. Eles estavam felizes em plantar o que queria, a viverem nus em savanas ou florestas. E depois, essas pessoas religiosas mataram-nos em nome do bem. O mal não é tanto uma manifestação dos deuses, mas a interpretação dos deuses por parte das pessoas.

Pode nos contar algo sobre o filme que ainda não tenham dito a ninguém? Uma história engraçada, algo curioso?

ZB: Algo que sempre relembrarei no processo de “Les Hirondelles de Kaboul”, é o facto do meu pai ter participado nele e de ter falecido antes de terminarmos o filme. Quando atualmente olho para os desenhos feitos pela Eléa, [o meu pai] torna-se mais real e vivo que qualquer outra imagem. Mas não encaro esta memória como triste, pelo contrário. Acho muito bonita.

Entrevista inicialmente transcrita pelo jornalista Jorge Pereira, um muito obrigado