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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Erradicando o ‘rapaz’ em nós

Hugo Gomes, 07.12.18

Curiosidades-de-Boy-Erased-filme-cancelado-no-Bras

O segundo passo do ator Joel Edgerton na realização faz-se por um filme-denúncia. Remexe nas memórias do escritor Garrard Conley, filho de um pastor Baptista, que após revelar a sua homossexualidade é enviado para uma instituição de forma a “curar-se”.

Boy Erased” apresenta-nos Lucas Hedge (“Manchester By the Sea”, “Lady Bird”) no papel de Conley, que se assumirá como um guia para um protótipo destas casas de conversão gay, sempre pontuado de doutrinas religiosas e alusões a cantos infernais e movimentos pecaminosos. Todo este processo tende em soar como irmão bastardo entre os Alcoólicos Anónimos e um estabelecimento militarizado (aqui até mesmo a posição é sinônimo de virilidade). Este Hedge / Conley evoca-se como um “insider” pronto a esboçar esta realidade ainda existente em terras yankees, fundando assim um encenado documento para com esta desinformação. É como se um artigo da New Yorker tratasse, minado de reflexão e tendências jornalísticas, originando um filme sobretudo esquemático e descritivo onde as personagens não são mais do que meras representações (curiosamente, um dos “utentes” é Xavier Dolan).

Nesse termo, “Boy Erased” justifica a sua visualização para fins de conhecimento e conscientização, o que prova acima da tentativa de Edgerton prevalecer como um realizador de R maiusculo. Endereçado por uma planificação sobretudo académica onde não faltam os graduais fade in e fade outs como mandam as leis emocionais de Spielberg, o realizador parece não ter controlo numa miopia castradora para com as eventuais direções do filme, fechando, ou melhor, enclausurando com uma falsa luz messiânica do que é Cinema.

Todo este processo depara-se com as similaridades do modus operandis destas mesmas “casas”, uma manipulação mental e sentimental que a homossexualidade é anti-natura, assim como Edgerton julga o além-academismo numa anormalidade. Fora do cenário protagonista desta história, o filme tende em solidificar a sua dramatização com momentos pai-filho ou em spotlights repentinos de Nicole Kidman (no mesmo registo de “Lion”, ou seja, uma secundária dependente do seu destacado monólogo), tudo sob a melodia do arrasa-corações.

No final, percebemos duas coisas. Uma é que Joel Edgerton não tem “visão” para realizador (ao contrário de um Bradley Cooper que surpreende em renunciar essa linguagem de “bom americano de estúdio”). Segundo, Lucas Hedge tem a força, mas não a suficiente para realçar este telefilme disfarçado de Cinema.

Mandamentos de provocação ...

Hugo Gomes, 11.12.14

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Antes de “Exodus” estrear, Ridley Scott revelou à imprensa o porquê da escolha do casting deste épico bíblico ter caído sobre atores brancos. Segundo este, um elenco recheado por egípcios resultaria numa negação pelos grandes estúdios e obviamente um fracasso de bilheteira. Para dizer a verdade isto é uma polémica inofensiva, cuja sua importância apenas evidencia o evidente – vivemos num mundo cada vez mais politicamente correto, e no cinema, tentar impor-se a um sistema de lucro milenarmente estabelecido. Se não fossem estas declarações terem visto a luz do dia, obviamente a esta altura do campeonato poderíamos estar a referenciar “Exodus” como um tributo aos grandes clássicos de Hollywood, nomeadamente ao legado de Cecil B. DeMille e ao respetivo “The Ten Commandments”, com o ator Charlton Heston a desempenhar o bíblico Moisés.

Mas sem querer negar o seu fulgor épico, tratando-se de um filme de Ridley Scott que mais salienta essa vertente desde o seu bem-sucedido “Gladiator”, esta obra está mais próxima de “Noah” de Aronofsky do que as grandes produções da idade do ouro da indústria norte-americana. Mas enquanto Aronofsky era mais espontâneo na sua provocação e visão da história bíblica, Scott recorre à subtileza para concretizar um filme direcionado a crentes mas que ao mesmo tempo questiona e fomenta essas ideologias. E continuando a comparação, ambos são filmes que representam uma imagem de Deus oposta à da doutrina cristã católica atual. Aliás, esta é uma entidade divina fiel às escrituras da Bíblia, ou seja menos misericordioso, negro e descrente na Humanidade.

No caso de “Exodus", talvez a grande provocação seja a forma como se apresenta Deus a Moisés, uma mera criança  (obviamente declarando que se trata de um mero mensageiro, para não ferir susceptibilidades). Esta forma física serve para criar um contato visível entre o “rei dos hebreus” e o seu mentor, mas para também para figurar a metáfora “God is a mean kid with an ant farm and magnifying lens” («Deus é uma criança endiabrada com uma quinta de formigas e uma lupa»), tendo em conta que esta é a história das pragas bíblicas e das milhares de almas chacinadas por estas.

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Que tipo de pessoa venera um Deus assassino de crianças?” questiona Joel Edgerton, como Ramsés, o rival de Moisés, após ver o seu primogénito morto sob a ira de Deus. São frases ou imagens como estas que demonstram uma tendência de produção para os lados de Hollywood: filmes bíblicos que questionam a sua maneira de ser. Ridley Scott não fugiu à regra, mas o seu ensaio cinematográfico dá um a zero ao de Darren Aronofsky porque simplesmente o realizador soube dizer as palavras certas nos momentos certos, protegendo-se ao esconder-se por entre as escrituras que serviram de base ao argumento da obra.

Agora como produção, Scott tem em mãos algo grandioso em termos de quantidade, um espectáculo hollywoodesco que não envergonha a já longa História cinematográfica. De um visual virtuoso, uma recolha irrecusável de material cénico e a banda sonora previsivelmente épica de Alberto Iglesias (“The Constant Gardner”). Os atores, mesmo que alguns sejam figuras decorativas – como foi o caso da desperdiçada Sigourney Weaver (detentora apenas de duas ou três frases em duas horas e meia de filme), e nem sequer refiro Aaron Paul – concentram-se em articular um filme homérico, cuidadoso e ocasionalmente emocionante. Para além disso, Christian Bale funciona como um Moisés radical e obviamente afastado do classicismo imposto por Charlton Heston.

Longe de se tornar um clássico ou na melhor desculpa de Ridley Scott pelo seu “The Counselor”, “Exodus: Gods and Kings” é uma dose nostálgica em termos produtivos e mesmo construído sob uma linguagem quase classicista e remota, ainda que com uma subtileza moderna e provocante. Porém, sem cair no teor de escusada recontagem.