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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A Soma de todos os Medos

Hugo Gomes, 26.04.23

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Beau (Joaquin Phoenix) vive num constante amontoar de medos; o medo da sua genética (reza a sua árvore genealógica que nenhum dos “machos” viveu além da noite de núpcias), o medo de viajar, o medo do seu bairro, dos vizinhos, de água, de relações, do sótão e dos monstros que o albergam, do psiquiatra, das pessoas em geral, mas no topo disso, a sua mãe, recentemente falecida, com o corpo a esfriar, aguardando a apropriada cerimónia fúnebre, esta, apenas validada pela presença do próprio Beau, que se encontra impedido devido a forças maiores que a dele (assim crêem). Poderemos desta maneira, resumir o quanto basta a nova incursão de Ari Aster - realizador da angústia e do medo, particularmente da sombra maternal, e em consequência o desmoronamento da ideia tradicional de família - sem ferirmos a susceptibilidade da “cultura no spoiler” propagada pela extensão das produções instantâneas de streaming

Desde as sua demanda no formato curta (resalvamos “The Strange Thing About the Johnsons”), o seio familiar é um espaço demente, em pleno conflito e de ódios extremados, porém, reprimidos quanto à base divinal do seu conceito, esses ecos que elevaram “Hereditary”, a primeira longa e ainda imbatível fábrica de tenebras atmosferas. Em “Beau is Afraid”, Aster faz do uso de Phoenix, do seu corpo decadente e desbotado como maquete de dor e de penosa existência, mas é na sua mente que reside o espectro, ora fantasmagórico, ora desdobrado nas dualidades entre personagem e realizador, quase como um ajuste de contas, um heterónimo (sabendo que o realizador assume-se adepto de Fernando Pessoa e dos labirínticos reflexos entre personagens e identidades criadas de raiz enquanto satisfações pessoais, ou meras necessidades existenciais), uma carta endereçada, selada e remetida ao seu grande MEDO, a responsável da repulsa, a responsável da cadeia e da soma de tudo o resto. 

Vejamos, Phoenix “sai-se bem na fotografia”, como sempre, entrega-nos o desempenho esperado, aludido à martirologia, ao comprimido humano, imprevisível e igualmente identitário, e por sua vez, Aster revela-se um engenhoso adornista de climas lucernários, aqui, concebendo uma espécie de “Alice nos País das Maravilhas” degolado, uma malapata reforçada e fortalecida no seu “miserabilismo-privilegiado”. “Não bate a bota com a perdigota” a última e adjetiva conjugação, mas também não interessa, porque passados umas, sensíveis, duas horas de thriller teatralmente orquestrado (impressão minha mas Shyamalan é referência na logística destes pesadelos confinados), a cortina cede, voltando a içar para um terceiro e epifânico ato, como o velho jingles das “pilhas Duracell”, dura e perdura. 

A raíz do mal é decifrada pelo espectador faz tempo, só que a partir desse “renascimento” o significado deixa de ser decifrável e passa a ser umbiguista, redecorando os anteriores passos como lições dadas, e de dedo riste e apontado ao antagonista afronta-se numa psicanálise visual. “Eu”, “eu” e “eu”, são as palavras de ordem que ruminam nesta narrativa, o filme deixa de ser um filme (digo partilhável, é claro), e passa a ser uma longa terapia de choque. Se tal como a escrita, a velha máxima de que os escritores escrevem sempre sobre eles próprios, no cinema, consideremos os filmes à imagem do seu autor. 

Aster realizou e escreveu, assinante da imagética e do conceito, da ideia e da repreenda. Mas a terapia também serve para estas ‘coisas’, evitar que sejamos torturados por três horas de perturbadoras confissões e divãs freudianos (cores edipianas à baila mais uma vez).  

Joker, o herdeiro do trono de Scorsese?

Hugo Gomes, 01.10.19

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Todd Phillips pode ter saído da comédia tresloucada de “Starsky & Hutch” ou “Old School”, passando pelo seu maior êxito - a trilogia "The Hangover" -, mas é o constante aconchego ao universo do “chico-espertismo”, a replicar tiques de Martin Scorsese, que percebemos da aproximação a um legado prestes a ser deixado. Assim obtivemos “War Dogs” como experiência de laboratório dessa invocação “scorseseana” e, verdade seja dita, o resultado não superou mais do que uma espécie de prato alternativo. É com “Joker” e a envolvência num cinema-tendência que é o subgénero dos super-heróis, que Phillips, por fim, espelha essa fixação com a sabedoria necessária, frente à mera piscadela de maneirismos.

É certo que é difícil contornar a prestação esmagadora de Joaquin Phoenix como o eterno nemesis do Cavaleiro das Trevas (Batman), mas esse fascínio pelo cinema do realizador de “Raging Bull” e de “New York, New York” (filme a precisar urgentemente de carinho) leva-nos em modo “corta-mato” à lente da Nova Hollywood (termo utilizado para as abordagens trazidas no cinema setentista norte-americano). Aí, em plena década de 70, após a viragem crucial impulsionada pela televisão e Charles Manson, a indústria que havia perdido a sua inocência emoldurada, acolhe a chegada de uma nova geração (os apelidados “movie brats”, cinéfilos e estudantes de cinema que colocariam em prática as suas visões cinematográficas). A violência, que se transcende do “fruto proibido” a “pão de cada dia”, tem por fim uma presença visceral e explícita no grande ecrã, enquanto que os olhos dos espectadores são colocados numa perspetiva sarcástica para com o prisma político-social diversas vezes debatido nos referidos filmes. Esta é a cerne de muito do cinema que Scorsese iria desenvolver, por exemplo em “Boxcar Bertha”, “Mean Streets” e, obviamente ,“Taxi Driver”, que, juntamente com “The King of Comedy", são os dois principais nutrientes que empestaram este “Joker” no "vintage" do seu tributo.

Esse tratamento é evidente na personagem-título, o futuro alter-ego de Arthur Fleck, homem vítima da sociedade que o cerca e que, perante a sua inadaptabilidade, torna-se num símbolo anárquico e violento numa luta entre classes na cidade de Gotham. Fleck partilha com Travis Bickle (a icónica personagem de Robert DeNiro em “Taxi Driver”), o auto-menosprezo e, com isso, uma revolta interna que o irá distorcer em prol de uma figura ideológica. De Niro, claro, que é também um dos atores de "Joker". Todd Phillips não esconde essa ligação umbilical de “Taxi Driver” com “Joker”, desde o “You talkin' to me?” que se transcreve neste filme como “You like my dance?”, atravessando o revólver como meio libertário, o espelho como epifania existencialista (realçado com o violino de Hildur Guðnadóttir) ou o falhado interesse amoroso que acentua o seu afastamento pela normalização social.

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Perante isso, a representação da violência como um estado inerente da personagem é um contra-espelho do ecossistema que integra. Há algo de perversamente credível no mundo de Arthur Fleck e, em consequência disso, algo perturbador no seu Joker. Joaquin Phoenix acompanha Todd Phillips na sua digressão algo tese. Já nomeado aos Óscares com “Gladiator”, “Walk the Line” e “The Master”, o ator aventura-se naquilo que tão bem sabe fazer: trágicas personagens sem qualquer tipo de empatia.

É nessa ausência que, por bem, afastamos Arthur Fleck da mera condescendência que os seus antecedentes poderiam suscitar. É um equivocado “herói”, um vigilante acidental que cede pela sede de uma sociedade igualmente desequilibrada, que busca por respostas fáceis aos seus complexos problemas. Só que em vez de se esgueirar pelo populismo dos políticos manipuladores, esta população solicita o seu ícone de resistência, uma ideia nascida numa pessoa. O mais curioso é que Todd Phillips desenvolve esse “falso-remake” de “Taxi Driver” sob um infiltrado formato do cinema "mainstream", onde o super-herói é diversas vezes infantilizado para corresponder às “necessidades” dos seus espectadores e às boas morais politicamente aceites. É uma espécie de submarino nesses mesmos propósitos.

Por isso, é que, com “Joker”, encontramos a esperada intimidade de Todd Phillips ao dito legado que anseia. Até porque alguém tem que assumir a nossa dose "scorseseana" após a retirada do seu genuíno mestre - “Scorsese itself”. Com isto não afirmamos que o realizador de “The Hangover” (ainda que, sob esses moldes, possamos encarar a comédia como uma variação fácil de “After Hours”) é o herdeiro legítimo ao trono, porém "Joker" é uma das intervenções mais maduras do cinema de super-heróis desde "Logan" (e ficamos feliz por ver que, finalmente, dão uso a estes filmes). Um pouco como a novela gráfica de Alan Moore, “The Killing Joke”, abraçada por um intenso senso de estudo de personagem, e, nunca é demais repetir, antes de finalizar, como dilacerante está este Joaquin Phoenix.

"Pranks" ao invés de filmes ...

Hugo Gomes, 08.01.14

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Joaquin Phoenix anuncia assim o fim da sua carreira enquanto actor e o início da sua jornada como rapper industrial, a comunicação social foca assim, com tamanha intensidade, este retiro e segue de perto aquele momento que muitos apelidam de “a queda de um dos melhores atores da sua geração”. Calma pessoal, nunca passa de um arquitetado embuste. “I’m Still Here”, falso-documentário realizado pelo cunhado do nosso protagonista, o também ator Casey Affleck, resume-se num trapaceiro descendente dos “apanhados”, tentando humilhantemente alcançar o mediatismo através por um extenso gag gerada por esta cumplicidade.

Trata-se de um filme-momento, em que após termos conhecimento de tal estratagema, automaticamente renega o seu sentido de existência e porventura, difusa ainda mais o seu objectivo enquanto produção. O ator de “Walk The Line” e “Two Lovers” esbanja  talento em interpretar a sua própria decadência, conseguindo no meio de tanto alarido, um ícone anedótico imitado “over and over again”. Piadinha de mal gosto que nem atinge parâmetros de sátira, inapta como obra de reconhecido futuro, resumindo a todo este documento a um conjunto de pseudo-metáforas de situações mirabolantes e morbidamente decadentes.

Inútil!