A Loucura tem par!
Os acordes Hildur Guðnadóttir mantém-se como herança direta de uma sequela, que em modos não justificava a sua existência, mesmo que as solicitações salivavam que nem cães perante o sucesso do primeiro “Joker”, e assim pegamos nos feitos e nos efeitos desse Joaquin Phoenix vestido a rigor e com maquiagem circense. Alguns anos passaram desde o brutal e televisado assassínio de Murray Abraham (o apresentador de longa duração interpretado por Robert De Niro), Arthur Fleck encontra-se na prisão aguardando julgamento que poderá ditar, ora uma, a sua reabilitação num centro apropriado caso vir a ser provado das sua distorção mental, ou a cadeira elétrica cujo novo e promissor procurador público, Harvey Dent (Harry Lawtey), deseja com clareza.
Nessa demorada espera, Fleck revela-se constantemente num farrapo, numa sombra daquilo que era e que inspira ser, até que, uma misteriosa loira surge no seu caminho, também ela enclausurada, partilhando uma loucura transcendental para com este. Amor? Dirão alguns. O que acontece é que esta mesma mulher, Lee Quinzel (Lady Gaga), desperta esse Joker adormecido, ambos valsam pelo delírio coletivo, a destruição de um sistema e a construção de uma “montanha”. Um plano maior, que apenas Arthur “Joker” Fleck poderá concretizar.
O título, francês porventura, “Folie a Deux", invoca o síndrome de Lasègue-Falret, elaborado pelos psiquiatras franceses Charles Lasègue e Jules Falret (1816 - 1883 / 1824 – 1902), sobre essa loucura partilhada e sincronizada / transmitida entre duas figuras, e por essa sugestão somos confrontados no calor da dualidade, a de um romance propício e destrutivo até à ambígua esquizofrenia de Arthur Fleck, novamente com Phoenix emprestado ao sacrifício. Todd Phillips, agora virado “realizador à séria”, lançando as cartas scorseseanas na mesa, desliga-se das mimesis referenciais de “Taxi Driver” e de “The King of Comedy” que corria nos veias do anterior. É nos braços do musical que se contempla a sua maturidade, “New York New York”, outro Scorsese (e um bem esquecido … ou será ignorado?) à cabeça, e com o astrolábio apontado às estrelas da Hollywood clássica do género, devolve cruelmente ao musical o seu teor escapista.
Aqui, o escape tem perversidade mental, situa-se como estado interior das personagens, fantasias projetadas em mentes clausuradas e devaneios com o seu quê de violência anestesiada. A trupe “Looney Tunes” também entra na equação, outro efeito igualmente escapista que são aqueles desenhos animados que renegam as leis da física e da lógica, com personagens maleáveis, inquebráveis e de ferro para contrariar a fragilidade e a mortalidade do ser vivente. É dessa forma que “Folie a Deux" abre com um prólogo animado, e é desses códigos que Joker, não Fleck, se manifesta.
E como havia feito no desconforto da prequela, Phillips solicita as ferramentas do universo super-herois para as capturar num “cinema adulto”. Novamente, é um caso de um Cavalo de Troia, personagens de comics enfiadas numa linguagem maturada, sóbria e de técnicas reconhecíveis aos novos clássicos com selo prestigioso. Mas o que mais desafia essa tendência super-heroica, é o seu anti-clímax alicerçado a uma sensação de consequência, a sua tremenda decepção interior em prometer montanhas e oferecer-nos somente colinas, subverter as nossas expectativas ou conformidades, e por sua vez, guiando no espelho na animação-referência, retirar a natureza indestrutível que o universo de super-herois assumiu quer na tela, quer no imaginário do novo espectador “de cine”. A morte é definitiva, cada ato carrega o seu peso.
Shyamalan havia feito algo idêntico em “Glass”, em estender a toalha para um terceiro ato frenético, parindo somente um contido e confinado conflito final, um autêntico anti-super-heroi. “Joker: Folie à Deux” é de igual registo, chega-nos como um cinema infiltrado, resultar em outra pária, talvez no prolongado das alegorias do populismo viscoso e desesperante - alimentado pelo sensacionalismo do espectáculo que os medias se converteram - na busca de agentes de caos que possam conduzir-nos a um “Novo Mundo”. Joker de Phoenix continua como esse 'messias' fabricável, mas no fundo é um miserável que procura a empatia do qual sempre lhe fora negado.