A Soma de todos os Medos
Beau (Joaquin Phoenix) vive num constante amontoar de medos; o medo da sua genética (reza a sua árvore genealógica que nenhum dos “machos” viveu além da noite de núpcias), o medo de viajar, o medo do seu bairro, dos vizinhos, de água, de relações, do sótão e dos monstros que o albergam, do psiquiatra, das pessoas em geral, mas no topo disso, a sua mãe, recentemente falecida, com o corpo a esfriar, aguardando a apropriada cerimónia fúnebre, esta, apenas validada pela presença do próprio Beau, que se encontra impedido devido a forças maiores que a dele (assim crêem). Poderemos desta maneira, resumir o quanto basta a nova incursão de Ari Aster - realizador da angústia e do medo, particularmente da sombra maternal, e em consequência o desmoronamento da ideia tradicional de família - sem ferirmos a susceptibilidade da “cultura no spoiler” propagada pela extensão das produções instantâneas de streaming.
Desde as sua demanda no formato curta (resalvamos “The Strange Thing About the Johnsons”), o seio familiar é um espaço demente, em pleno conflito e de ódios extremados, porém, reprimidos quanto à base divinal do seu conceito, esses ecos que elevaram “Hereditary”, a primeira longa e ainda imbatível fábrica de tenebras atmosferas. Em “Beau is Afraid”, Aster faz do uso de Phoenix, do seu corpo decadente e desbotado como maquete de dor e de penosa existência, mas é na sua mente que reside o espectro, ora fantasmagórico, ora desdobrado nas dualidades entre personagem e realizador, quase como um ajuste de contas, um heterónimo (sabendo que o realizador assume-se adepto de Fernando Pessoa e dos labirínticos reflexos entre personagens e identidades criadas de raiz enquanto satisfações pessoais, ou meras necessidades existenciais), uma carta endereçada, selada e remetida ao seu grande MEDO, a responsável da repulsa, a responsável da cadeia e da soma de tudo o resto.
Vejamos, Phoenix “sai-se bem na fotografia”, como sempre, entrega-nos o desempenho esperado, aludido à martirologia, ao comprimido humano, imprevisível e igualmente identitário, e por sua vez, Aster revela-se um engenhoso adornista de climas lucernários, aqui, concebendo uma espécie de “Alice nos País das Maravilhas” degolado, uma malapata reforçada e fortalecida no seu “miserabilismo-privilegiado”. “Não bate a bota com a perdigota” a última e adjetiva conjugação, mas também não interessa, porque passados umas, sensíveis, duas horas de thriller teatralmente orquestrado (impressão minha mas Shyamalan é referência na logística destes pesadelos confinados), a cortina cede, voltando a içar para um terceiro e epifânico ato, como o velho jingles das “pilhas Duracell”, dura e perdura.
A raíz do mal é decifrada pelo espectador faz tempo, só que a partir desse “renascimento” o significado deixa de ser decifrável e passa a ser umbiguista, redecorando os anteriores passos como lições dadas, e de dedo riste e apontado ao antagonista afronta-se numa psicanálise visual. “Eu”, “eu” e “eu”, são as palavras de ordem que ruminam nesta narrativa, o filme deixa de ser um filme (digo partilhável, é claro), e passa a ser uma longa terapia de choque. Se tal como a escrita, a velha máxima de que os escritores escrevem sempre sobre eles próprios, no cinema, consideremos os filmes à imagem do seu autor.
Aster realizou e escreveu, assinante da imagética e do conceito, da ideia e da repreenda. Mas a terapia também serve para estas ‘coisas’, evitar que sejamos torturados por três horas de perturbadoras confissões e divãs freudianos (cores edipianas à baila mais uma vez).