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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Joana Ribeiro em "Os Papéis do Inglês": "há momentos em que somos só nós e o deserto. Isso pode ser assustador, mas também é libertador."

Hugo Gomes, 25.10.24

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Os Papéis do Inglês (Sérgio Graciano, 2024)

Sul de Angola, deserto de Namibe, na demanda por uns papéis, um macguffin, um tesouro incógnito que ditos e suspeitas o rodeiam, por entre aquele território enigmático, de horizontes infinitos e de gente ligada a um tempo fora, Ruy (João Pedro Vaz), um poeta, um escritor, um cineasta, homem de artes e de palavras em geral, revela-se numa figura quase quixotesca e enxuta na demanda dessa preciosa papelada e nos mistérios acarretados nele. 

Neste novo filme de Sérgio Graciano - Os Papéis do Inglês - a obra de Ruy Duarte de Carvalho (1941 - 2010) revela-se em matéria maleável para a ficção e à autognose, à aventura pouco convencional, e à reflexão de uma terra e das suas assinaturas, e, sobretudo, do seu lugar no Mundo, seja em África ou nos escritos. O escritor deu carta branca para o produtor Paulo Branco adaptar a sua trilogia “Os Filhos de Próspero”, e o resultado é uma homenagem, ora sentida, ora exótica, ora trovada e entendida no seu consciente. No seu seio, outros se juntam à busca pelos registos em parte incerta, seja o fiel David Caracol, ou mais tarde, um retornado angustiado Miguel Borges, acompanhado pela juventude em forma de Carolina Amaral e de Joana Ribeiro, aqui como Camila, arqueóloga com fascínio pela poesia de Carvalho, e que, através das suas lentes, ‘penetra’ nesta África desconhecida, do berço da Humanidade até às longitudes mais distantes da civilização.

O Cinematograficamente Falando… conversou com a atriz, no Cinema Nimas momentos antes da antestreia nacional de “Os Papéis do Inglês”, numa breve passagem pelo seu papel e pela sua colaboração constante com as produções de Paulo Branco e de novos projetos que chegarão a nós num ápice. Fiquemos assim na companhia de Camila, a jovem aventureira…

Começo pelo início: a sua chegada a “Os Papéis do Inglês” …

A chegada a este filme aconteceu durante um almoço com o Paulo Branco, onde ele me falou deste projeto, que era completamente desconhecido para mim, pois até então não estava familiarizada com a obra de Ruy Duarte de Carvalho. Confesso que o interesse surgiu não só pela evidente ligação à obra de vida de Ruy, o qual teria a oportunidade de o “descobrir”, como também pela personagem da Camila, que interpreto. Em criança, o meu primeiro sonho era ser astronauta, mas também havia um desejo em mim de ser arqueóloga. Assim, ao surgir a oportunidade de interpretar uma personagem ligada a essa área, mesmo sem muita arqueologia durante as filmagens, pareceu-me uma experiência interessante e fez todo o sentido.

Depois do dito “Sim” ao projeto, chegou a ler a obra de Ruy Duarte de Carvalho?

Li pois … Li a trilogia “Os Filhos de Próspero”, que como se bem sabe, serve de inspiração para este projeto, e também “Vou lá visitar Pastores”, pois a minha personagem referencia esse livro e, na época em que o filme decorre, tinha acabado de o ler, por isso fiz o mesmo. Troquei depois várias ideias com o João Pedro Vaz sobre o escritor e a sua obra, uma vez que ele realizou uma pesquisa intensa e profunda sobre o autor para o seu papel.

E como trabalhou, ou preparou, esta Camila?

Esta personagem foi principalmente construída com base na leitura dos livros. Tivemos ensaios, todos na Leopardo [Filmes, produtora de Paulo Branco], e grande parte do trabalho veio da relação que desenvolvi com a Carolina Amaral. Já conhecia a Carolina, mas não éramos amigas, e neste projeto ficámos muito próximas. Foi realmente isso: a conexão com os outros atores, o que estava no guião e na leitura da obra do Ruy.

os-papeis-do-ingles (1).jpegOs Papéis do Inglês (Sérgio Graciano, 2024)

E tendo esse espírito aventureiro, como foi essa ida a Angola?

Foi incrível! Angola foi espectacular e até então foi uma das viagens de trabalho de que mais gostei. É um lugar muito especial, mas também já tinha uma carga, um significado para mim, porque o meu avô esteve em Angola e o meu pai também passou lá muito tempo. Sempre tive o desejo de visitar o país e essa oportunidade surgiu no ano seguinte ao falecimento do meu avô, o que tornou a experiência ainda mais especial. Foi muito emocionante visitar um sítio de que ele falava tanto e de que tanto gostava.

O deserto do Namibe é o mais antigo do mundo, e sente-se uma carga energética única quando se está lá. Num dos locais onde filmámos, havia um monte de pedras à entrada, onde, segundo se dizia, era preciso adicionar uma antes de entrar, e se isso não acontecesse não conseguiriamos sair do deserto. Ao longo da rodagem, senti essa energia e a importância do lugar.

Há uma frase muito bonita de Ruy Duarte de Carvalho em “Vou lá visitar Pastores", que me acompanhou durante as filmagens. Vou lê-la, porque já não a sei de cor, embora a tenha decorado na altura, pois era uma fala minha. Entretanto, outros projetos surgiram e fui esquecendo. A frase é:

Para nós, o deserto faz falta quando estás noutro lugar. Quando estás lá, vocês não dá-se nem conta; mas quando não estás, sentes-lhe a falta. Mas não é de te exaltar o deserto que tu precisas, nem é isso que te faz correr para lá. É estar lá só, e estar antes onde talvez ele possa ver-te, o deserto, e não tu a ele.

Esta frase acompanhou-me muito ao longo da rodagem. O especial que é estar no deserto, porque há momentos em que somos só nós e o deserto. Isso pode ser assustador, mas também é libertador.

Um sentimento de estar sozinha num deserto?

Sim, mas gosto desse sentimento e aceito-o, porque ali tudo é imenso, tudo é grandioso. A vista perde-se, e houve momentos e situações em que realmente se sentiu a imensidade do deserto e daquilo que estávamos a ver. Havia, por exemplo, um campo que me fez lembrar o filme do Terrence Malick com o Sam Shepard.

“Days of Heaven”?

Sim, exatamente, “Days of Heaven”. Com aquele cenário! Houve um momento em que tive que tirar fotografias e tudo, porque aquilo foi mesmo incrível. Lembro-me de ver o Mário Castanheira, o nosso diretor de fotografia, a filmar o Miguel Borges, o João Pedro Vaz, o Sérgio Graciano, e todos os outros ao redor. Aquilo fez-me mesmo recordar esse mesmo filme, que adorei ver, aliás, aqui no Cinema Nimas.

Houve também várias paisagens que me fizeram lembrar momentos de filmes que adoro. É isso que é tão bonito nos filmes: trazem-nos paisagens e imaginários que ainda não vimos, mas que, quem sabe, um dia poderemos ver. Adorei essa parte de filmar em Angola.

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Days of Heaven (Terrence Malick, 1978)

Esse recorda-me … aliás, farei uma ponte a um outro filme que participou - “Diálogos Depois do Fim” - adaptação de "Diálogos com Leucó" de Cesare Pavese, que foi filmado nos Açores. Recordo semelhante sentimento, a de isolamento, ou de estar em estado remoto, na Ilha do Pico.

Sim, porque acho que, quando estamos num lugar tão imenso e cheio de história, há momentos em que, ao olhar para o horizonte, não vemos ninguém. Atrás de mim estava toda a equipa e o elenco, mas se me virasse para determinado lado, não havia uma única pessoa por quilómetros. Isso é incrível; adoro essa sensação de estar completamente sozinha e, de repente, ao virar-me, perceber que há toda uma gente atrás.

Mencionei “Diálogos Depois do Fim” nem de propósito. Tal como nesse filme de Tiago Guedes, como este de Sérgio Graciano, contracena maioritariamente com o ator Miguel Borges. Está encontrada dupla? 

Pois é [risos]. Olha, foi uma surpresa maravilhosa. O Miguel Borges é um ator que admiro muito, e não é de agora, já há bastante tempo, e tem sido incrível poder trabalhar em diferentes projetos e vê-lo em ação. Gosto muito dele, do Miguel, mesmo muito. Tenho um carinho enorme por ele. Nos “Diálogos”, mais para o final, tivemos um trabalho mais próximo e direto. Neste projeto, não tanto, mas estivemos juntos em Angola durante um mês, mas já tem sido constante a colaboração.

Miguel Borges é um dos atores recorrentes nas produções de Paulo Branco, assim como a Joana. “A uma Hora Incerta” (Carlos Saboga, 2015), também da sua produção, foi o seu inaugural papel no cinema. Desde então, tem sido uma presença habitual neste rol de filmes, incluindo os “projetos-órfãos”, curiosamente, como “O Homem que Matou D. Quixote” (inicialmente de Paulo Branco). Gostaria que me falasse um pouco sobre esta parceria.

Sim, o Paulo foi o primeiro produtor a dar-me uma oportunidade no cinema. Quando fazia televisão, ainda havia uma visão algo pejorativa sobre isso no cinema português. O Paulo foi o primeiro produtor português a apostar em mim e a acreditar no meu trabalho. Gosto muito dele; acho que é um produtor imenso. Quando estou com ele, o nosso diálogo sobre cinema é espectacular, e adoro ouvi-lo falar sobre cinema, das histórias sobre das dificuldades que já enfrentou para conseguir produzir filmes, ou seja, do seu universo.

Enquanto o Paulo quiser trabalhar comigo e eu puder, cá estarei. Até agora, todos os projetos para os quais o Paulo me convidou foram possíveis, e foram também projetos dos quais gostei muito de fazer. O futuro é incerto, mas espero que esta parceria continue.

Pelo que percebo é que, hoje em dia, estando bastante presente na televisão, está a ser muito difícil conciliar com outros projetos paralelos.

Não. Por acaso tenho tido sorte, tenho conseguido conciliar os projetos, mesmo agora que estou a trabalhar numa novela. Este ano, por exemplo, tinha uma série da Bando À Parte, em Guimarães, e em breve vou filmar em Manteigas com o Mário Patrocínio, num projeto produzido pela APM, em novembro, e tem sido possível conciliar tudo com a novela, o que é ótimo, porque nada me dá mais ansiedade do que perder um projeto por causa de outro. Tenho tido muita sorte nesse aspecto, e até agora não houve nada que tivesse perdido por conflito de agenda. Aliás, houve um, produzido pelo Paulo … é verdade, que não consegui porque estava em Londres, mas isso já envolveu outras questões. Foi na altura do Covid, e tornou-se muito complicado gerir essa situação.

Nessa altura, mais concretamente em 2020, integrou o European Shooting Stars. Gostaria que me falasse sobre as “portas” que a participação desse programa abriu. 

Parece que foi há tanto tempo [risos]. A maior porta que se abriu para mim foi, sem dúvida, conhecer outros atores europeus na mesma situação e poder trocar experiências e sonhos. Conheci pessoas com quem ainda hoje mantenho contacto, como o Bartosz Bielenia [Corpus Christi”], que é um ator incrível. No ano passado, ele veio a Portugal e chegou a ficar em minha casa - ele vive na Polónia, tenho família por lá, por isso, quando lá for, provavelmente também o irei visitar - fez um espectáculo com o Albano Jerónimo e a Iris Cayatte [“O Carro Falante”, de Agnieszka Polska], na Culturgest. Mas o que realmente me marcou foram estas amizades que permanecem e a partilha de experiências.

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Diálogos Depois do Fim (Tiago Guedes, 2023)

Foi também nos Shooting Stars que soube que tinha conseguido o papel na série “Das Boot", e isso foi, em parte, graças ao evento, pois os produtores estavam lá e viram-me. Claro que isso ajudou. Na altura, recebi também convites para outros castings. Depois veio o Covid, mas foi por causa dos Shooting Stars que consegui a minha agência nos Estados Unidos, a Gersh. Comecei a ter reuniões logo a seguir ao evento, e foi esse network que, ainda hoje, continua a ser importante para mim.

O que poderia-me dizer sobre esses novos projetos?

O de Manteigas… Não sei o que posso partilhar sobre ele. A minha personagem é uma mulher que viveu a vida toda lá, nunca saiu de lá, e vai ter um reencontro com alguém com quem esteve envolvida há alguns anos. As coisas não correram bem entre eles, e o filme explora esse reencontro – pelo menos, essa é a parte da minha história que será retratada.

No próximo ano, tenho um filme chamado “Augusta & Kátia”, realizado e escrito por Lud Mônaco e produzido pela Promenade, que será rodado a meio do ano, creio eu. É um filme sobre duas amigas e a forma como lidam com questões sociais, económicas e profissionais num país que não é o delas. É uma abordagem mais virada para a comédia, e tenho gostado bastante dessa diferença entre drama e comédia. 

A comédia é difícil, sem dúvida, mas tenho-me divertido muito. Acho que o filme “Sonhar com Leões”, que fiz com o Paolo Marinou-Blanco pela Promenade, também foi uma experiência nesse sentido. Foi a minha primeira experiência em comédia, e estava apavorada, porque achei que seria possível.

Mas, no final, adorei e diverti-me imenso. Pouco depois, fiz o casting para “Augusta & Kátia”, que também é uma comédia. Pensei: “Isto é demais, não vou conseguir.” Mas fiquei com o papel! Se calhar, tenho mais jeito para a comédia do que pensava. Quem sabe?

Os salteadores dos papéis perdidos ...

Hugo Gomes, 19.10.24

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Paulo Branco manifestou o quão pessoal este filme é, da sua experiência, e amizade para com o escritor e poeta Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010), aos serviços “emprestados” na produção de um dos seus poucos trabalhos em cinema [“Móia: O Recado das Ilhas, 1989”], e a vontade que era em adaptar para grande ecrã a sua mais célebre criação literária, a trilogia “Os Filhos de Próspero”. Para tal necessitou encontrar um escritor/argumentista à altura dos seus calos nestas lides africanas, esse cargo calhou ao não menos talentoso José Eduardo Agualusa. Quanto à realização, segundo o produtor, a busca foi ainda mais exigente, pois era preciso encontrar um olhar que dignificasse e compreendesse a realidade subsaariana. 

O achado deu-se com Sérgio Graciano, que Paulo Branco viu num determinado filme (deste lado apostamos em "O Som que Desce na Terra", 2020), do qual o realizador demonstrou uma sensibilidade especial para com aqueles cenários e pessoas. Assim se formou a equipa: um realizador grosseiramente televisivo, um escritor que nos últimos tempos se tem aventurado no cinema ("Nayola", "Sobreviventes"), e um produtor conhecedor da obra de Carvalho, unindo forças para trazer este “Os Papéis do Inglês”, extracto memorial e temporal do eixo Namibe / Angola em ares coloniais. 

Debatendo não só essa identidade e como essas invocações do lusotropicalismo, o filme utiliza também um subtil “macguffin”, os ditos “papéis do inglês” (será um tesouro?) para “burlar” o espectador, e desta feito convidando-o a permanecer num tempo que parece estagnado, revisitado, poetizado em prol deste tributo a Carvalho. Curiosamente, Sérgio Graciano apresenta aqui o trabalho mais equilibrado da sua carreira, onde se notam os seus sacrifícios enquanto “autor”. Despojado dos vícios televisivos ou de o conceito de cinema “para todos os portugueses” (a tal trincheira comercial), através desse trato algo mefistotelicos (para com um produtor que por si é um autor por direito) reforça-se por diálogos ricos e interpretado de forma vigorosa por um elenco rico e multicultural, e adquire espaço e tempo do seu lado para induzir num ensaio de olhares e escutas, de histórias antológicas trovadas como painel multi-narrativo acima da eventualidade etnográfica e até antropológica. 

Não recorre a clichés técnicos, não cede ao excessivo uso de drones (César Mourão estou a olhar para ti) ou outros artifícios banais de esquadrias narrativas (o filme detém uma força anti-natural ao tempo do seu desenrolar, como se requeresse a nossa paciência e atenção a uma demanda remota) e os seus atos raivosamente ditadores. No fundo é uma viagem para longe, quer de nós, quer das memórias da civilização, dos contos dos expatriados, e no seu interior a história de um homem, Ruy Duarte de Carvalho (aqui interpretado por João Pedro Vaz), na sua demanda pelo seu lugar. 

A geometria do Mito ...

Hugo Gomes, 03.03.24

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Na véspera da sua exibição no Festival de Roterdão, os jornalistas portugueses, dirigindo-se ao visionamento de imprensa de “Diálogos Depois do Fim” no Cinema Nimas, foram recebidos pela produtora Ana Pinhão Moura que os elucidou sobre um aspecto peculiar da obra. Inicialmente produzida como uma série televisiva composta por 19 episódios, este filme foi concebido e realizado através da "colagem" de 6 "diálogos". No entanto, em Roterdão, o "filme" seria diferente daquilo a que os profissionais de imprensa iriam assistir, tal como indicou a produtora, essa versão seria de uma montagem diferente, uma compilação de episódios previamente selecionados pela comitiva de seleção do festival holandês. 

Assim, "Diálogos Depois do Fim" estabeleceu-se como um filme fragmentado, composto por partes que são construídas pela iniciativa do curador/espectador, nunca detendo uma estrutura original, mas mantendo a sua essência - a adaptação de "Diálogos com Leucó", a obra predileta do escritor neorrealista italiano Cesare Pavese (1908 - 1950), integrado na sua visão de desapropriação do mito grego e igualmente a sua subjugação à natureza mitológica (“O mito é (...) o esquema de um facto acontecido de uma vez para sempre, e retira o seu valor desta unicidade absoluta que o leva para fora do tempo e o consagra como revelação”, citando o próprio).

Em resumo, é um exercício performativo digno de instalação, onde 39 atores e uma pequena equipa, liderada por Tiago Guedes ("Os Restos do Vento", "Coisa Ruim", "A Herdade"), aventuram-se no arquipélago açoriano para encenar os diálogos totalizados (19 dos 27 originalmente presentes no livro) e extrair as figuras mitológicas e mortais fantásticas de Pavese, em conflito de ideias, orbitadas pelos fascínios declarados pelo autor. Desde a existência à dicotomia entre a morte e a vida, da violência à paz, da utopia à distopia, estas conversas imaginadas com o mar no horizonte e a selvajaria intactamente indomável servem de palco para a teatralidade encontrada.

Embora Straub e Huillet tenham feito destas inspirações muitos dos seus campos elísios, nas mãos do oscilante realizador Guedes, entendemos como uma variação mais digna do seu processo do que da sua própria conclusão. "Diálogos Depois do Fim" é um filme transmutável, sem um lar ao qual possa chamar seu, encaminhado como um gesto produtivo em vez de uma obra finalizada. Os Açores contribuem com o ambiente nesta móvel residência artística, e a sua conjuntura para com o desconhecido apela constantemente à imaginação e crença do espectador. O resto tenta permanecer relevante depois do fim. Não sabemos se resultará com a sua arte ...

"A Sibila", obra infilmável?

Hugo Gomes, 11.10.23

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(...) longe estava de imaginar que aquela mulher, intriguista, sorrateira e tão mesquinha de coração quando cismava uma vingança, intentava um lucro, sempre estuante de atividade e ambiciosa de considerações mundanas, ela, tão rasteira como o pó, fardo de malícia e de estultícia incríveis, ela, uma sibila: ela, alguém que sabia, com o único poder da prece, secar um jorro de pranto e soprar novos alentos numa alma esmorecida e gasta.” 

Sublinhamos que nem Manoel de Oliveira, um colaborador de longa data em atribuir imagética aos escritos de Agustina Bessa-Luís, se atreveu a adaptar o que muitos consideram a sua obra-prima - “A Sibila” [publicado em 1954]. Portanto, quatro anos após a morte da escritora, o tão desejado romance finalmente é alvo de uma adaptação cinematográfica, estando Paulo Branco na alçada da sua produção (quem mais?), confiando o projeto a Eduardo Brito, um realizador que, até então, apenas se aventurou em formatos curtas’. Assim, salta para a sua primeira longa-metragem (uma manobra arriscada e, sem dúvida, um tanto suicida), com um argumento trabalhado e idealizado pelo próprio, um episódio pseudo-biográfico de Agustina (como se acredita) e a ascensão e queda de uma mulher, Joaquina Augusta, que, abraçando o extra-natural e fazendo da sua solidão numa impenetrável fortaleza emocional, emancipou-se até adquirir o título de “dona”. 

Carinhosamente ou respeitosamente apelidada apenas de Quina, é uma mulher dotada de um calculismo frio, rígida na forma como mantém relações até perder a crença no terreno, contrastando com uma ideologia própria situada algures entre a charlatanice e o paranormal. Uma personagem e tanto, poderia ser a vilã de muitas histórias, mas é encarada como uma improvável heroína num mundo (e sobretudo num país) dominado por homens. Talvez seja assim que nos é apresentada e realçada: no meio de homens, com a exceção do seu admirado pai, que são ridículos e imberbes, criaturas animalescas e humilhadas pelo peso do estatuto que ostentam na sociedade. O livro, escrito com uma riquíssima prosa, é um relato detalhado da passagem desta “dona” pelo mundo dos vivos, sugerindo as suas afinidades com os mortos, apresentando uma narrativa que percorre episodicamente ponto a ponto nesta vivência, sem com isto assumir-se convencional ou pormenorizadamente esvaziada.

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Já em “A Sibila” [o filme], a narrativa, ao seguir de perto a falsa passada do livro, assume um registo quase trovadoresco, desprovido de conflitos ou clímax (sublinhando, cinematograficamente convencionais). A obra termina da mesma forma como começa, como uma fábula narrada por entre balanços de uma “rocking-chair” (Agustina Bessa-Luís não traduziu no seu romance, como tal, não irei contrariá-la), evocando um tempo distante à beira do esquecimento, cuja única materialidade remanescente, o "império angariado por Quina", funciona como referência desses encontros. Em outras palavras, tudo nos soa como um flashback prolongado e onipresente pela voz de Joana Ribeiro, aqui interpretando Germa, moça sofisticada, observacional e snob graças aos aos ares de uma certa intelectualidade citadina, relegada a um papel secundário na sua própria história. Portanto, há uma tendência de resumo Europa-América na transição de “A Sibila” para o grande ecrã, um mordiscar aos lugares onde esta Quina (Maria João Pinho) enraizou e “apropriou-se” terreno a terreno, até construir o seu domínio tendo como a Casa da Vessada o epicentro da sua influência.

O filme presta-se apenas a servir como acompanhamento visual do próprio livro, não ostentando vida própria para além da espectralidade da sua ligação. Contudo, há dois tópicos pessoais nesta ilustração, sobressaindo a mão de Brito (resistindo em não se revelar anónimo) do que o escrito de Bessa-Luís. O primeiro, e mais evidente (talvez mais estetizado), é o retrato de família, o único, constantemente diagonalizado na sua esquadria, a imagem-chave de uma família nunca linear, marcada pela tragédia, uma maldição, uma profecia ou algo mais banalizado, possivelmente uma simples “estranheza”. A fotografia de reunião é endireitada, contemplada por olhares melancólicos ou de afirmações, por gerações e gerações. 

A segunda vontade encontra-se no vazio cénico, novamente requisitado por Eduardo Brito como um prodigioso veículo para a história contada. Neste aspeto, extraindo do que dele sugere; os corredores apenas percorridos por correntes de ar, aquela cadeira solitária em amplo salão, a casa decadente, a um passo da ruína, sem antes atravessar o seu esquecimento genealógico. É o regresso a "Penumbria", a sua curta de 2016 onde imagina através do nada um ponto geográfico, uma esquecida Atlântida. Em “A Sibilia”, com um cenário sem vivalma, esse “toque” presta-se a ser mais narrativo do que a própria narração. 

Infelizmente, essas marcas não chegam para aliviar o atlante fardo. Poderemos considerar "A Sibila" infilmável? Até agora ... afirmativo.

O "Homem" que Matou Terry Gilliam de La Mancha

Hugo Gomes, 02.03.22

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De momento não consigo desassociar Dom Quixote de Terry Gilliam. Não pelo cansativo “fado” que se concentrou no realizador e ex-Monty Python para levar a cabo a sua (re)adaptação (para conhecer mais recomenda-se uma espreitadela ao documentário “Lost in la Mancha” de Keith Fulton e Louis Pepe), mas porque encontramos naquela figura decadente e alucinatória um pouco de Gilliam, um homem deslocado da sua realidade que vê gigantes em moinhos, negando a extinção da Idade da Cavalaria, é Quixote de la Mancha como poderia bem ser o cineasta.

O falso-nobre que persegue a sua não-conquistada Dulcineia (uma idéia acima da mulher, da mesma forma que Ofélia foi para Fernando Pessoa), acompanhado pelo seu arrastado escudeiro Sancho Pança, manifestou-se como peça-chave do nosso imaginário moderno, do trágico, da inegável teimosia, e da contracorrente contra manifestações culturais, isto numa obra literária de Miguel de Cervantes y Saavedra, história essa, tal como a distorção hoje vulgarizada de tragédia (ora trágico, ora cómico, conforme o nosso olhar), maleável a diferentes interpretações. Já o cinema de Gilliam (que só não partilha essa multi-perspectiva), mais desprezado do que amado, é um trabalho árduo e hercúleo que condiz com a sua trabalhada designação de enfant terrible do realizador, homem incapaz de cumprir orçamentos, demasiado fascinado por atos maiores que si.

Por entre um seguro “Twelve Monkeys” (1995) e “Brazil” (1985) ou do mais convencional “The Fisher King” (1991), existem assumidos falhanços que nem por isso deixam de ser interessantes e cativantes no sentido da idealização e ambição do projeto do propriamente do resultado final, seja “The Adventures of Baron Munchausen” (1988), “The Brothers Grimm” (2005) ou "The Imaginarium of Doctor Parnassus" (2009), todos distinguidos por uma fantasia algo impenetrável e em seu jeito deselegante, mas que conservam um espírito fértil nunca deveras transposto para o grande ecrã. “The Man who Killed Don Quixote”, em outra medida, é um desastre que respira Gilliam em todos os seus poros, não somente pelo mundo fantástico que choca sem medos com o real evidentemente egocêntrico, mas pela desorganização que a alucinante alternativa dimensional se comporta. Um vertiginoso "agressor" que, de nenhuma maneira, se faz de convidado, ao invés disso, invade-nos, interrompe-nos e intromete no nosso imaginário. Assim, surge entre nós um filme perturbado de produção perturbada - com atrasos e mais atrasos face ao imbróglio judicial - um “conquistador” cansado, linguarudo e ausente deste mesmo mundo.

É cliché resumir a tudo como uma “produção fora do seu tempo”, mas é catastroficamente fora deste mundo, e convém dizer que é preferível um Gilliam assim, que riposta em gigantes invisíveis (acredito que não seja o filme imaginado pelo realizador desde a sua primeira abordagem nos ano 90, mas entre querer e ter vai uma distância), do que um Gilliam domesticado. Nesse sentido, Gilliam é o nosso, e último, Dom Quixote do Cinema.

Um fio tênue que unifica as nossas mais mórbidas fantasias ...

Hugo Gomes, 05.10.20

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Entre “kiss me” e “kill me” existe uma ligeira divergência fonética que não impede que ambos os “pedidos” se enquadram na igual esfera do Desejo. Aliás, esse signo é identificável numa colheita de curtas que jogam com a carne e a perversão da mesma como objetivos-irmãos, seja pela heresia interior nas imagens sacras (“Carne”), quer nos limites do aceitável imaginário (“Coelho Mau”) ou simplesmente o desejo repreendido (“Boa Noite Cinderela”), um universo que Carlos Conceição nestes últimos tempos deixou-nos “babar” por uma inadiável estreia no formato das longas.

Infelizmente, “Serpentário” (ainda sem estreia comercial) não correspondeu a essa constelação do desejo ardente, enfraquecido por um caminho serpentino à sua determinante chegada, esta algo memorialista e longe da sensorialidade. Contudo, é com “Um Fio de Baba Escarlate”, uma média-metragem (50 e poucos minutos contamos nós de duração) no limiar da estância seguinte, que funciona como estreia “longuíssima” que tanto ansiávamos e que nos negaram, por culpa do próprio Carlos Conceição.

Um filme que se concentra nessa incestuosa relação entre o desejo a ser consumado e a depravação nunca ocultada, enriquecida numa trip estetizada e sanguinariamente glamorosa de um serial killer (Matthieu Charneau) atingido pelo constante efeito “fregoli” (todas as suas vítimas são representadas pela mesma face – Joana Ribeiro – assim, como o seu redor, homogéneo) e pela língua inexata e imperceptível aos nossos ouvidos (somos “atirados” a um enésimo “não-lugar”). Aqui, o seu “fetiche” (menorizando a sua vontade de matar é claro!) é interpolada por um incidente / acidente que o converte numa equivocada estrela viral. Para a insaciável fome existe uma veneração messiânica que o transporta num (nunca justo) dilema moral. Mas a racionalidade não é inabalável perante a cedência pecaminosa e carnal dos seus desígnios (Conceição joga ainda com os seus “lugares-comuns” para tracejar uma linha direta entre as efémeras ambições [fama] pela negritude da sua caixa-negra [a fantasia]).

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Confessamos, e novamente repescando o ponto inicial, que este é o trabalho que pretendíamos como primeira longa-metragem, um ensaio incorporado nos ditos gestos de Conceição, fortalecido com o estilismo superlativo e artificializado que nos convoca para uma falsa sensação de devaneios oníricos. E na entrada para esse campo de sonhos e pesadelos diluídos numa só cor, o travelling serpentário (melhor juz ao tão desperdiçado título) que se “cola” a Joana Ribeiro, materializando-a num desiludido amor de perdição. Resumindo movimentos contraditórios (temos testemunhado muitos destes nos últimos anos) que corroem a tradição da artificialmente estática que muito do cinema português tem vivido.

E é na clareza da sequência que persegue a sua personagem-mártir (coincidência um filmes destes presentear-nos Leonor Silveira, a protagonista de um dos mais belos travellings que o nosso cinema nos ofereceu – “O Vale Abrão”, de Manoel de Oliveira) que novamente bradamos pelo regresso em platina de um dos nomes mais promissores deste chamado “novo cinema português”.

Rita Nunes em "Linhas Tortas": "Sou uma realizadora como sugere a terminologia americana"

Hugo Gomes, 27.06.19

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Deus escreve direito por linhas tortas”, já Rita Nunes concebe Linhas Tortas por uma escrita direita e sem engodos para além da sua mensagem. Mas não pensem que com isto esteja a reduzir o filme a uma temática que seja - há um óbvio tratado sobre as nossas relações e as identidades nesta era digital agravada com a dominância das redes sociais, esse romance tímido prendido a desejos e telas enquanto barreiras entre Américo Silva e Joana Ribeiro - mas existe uma sobriedade narrativa sem nunca vergar pelos códigos televisivos ou a linguagem imaturada enquanto colheradas de “papas para bebé”. 

Produzido por Paulo Branco, “Linhas Tortas” estreia nas nossas salas com um sabor de zeitgeist, um filme português que anseia falar do nosso tempo com a modernidade mas nunca com a sua imediatismo nem pop(ismo). O Cinematograficamente Falando … falou com a realizadora numa breve conversa sobre este seu novo projeto. 

Queria que me falasse sobre a génese deste "Linhas Tortas"? Da sua ideia até ao seu processo de escrita.

O projeto começou em 2014, foi precisamente na altura em que falei com o Paulo [Branco], o qual queria que escrevesse com outra pessoa. Aliás, eu não assino como argumentista, mas Carmo Afonso sim.

Sou uma realizadora como sugere a terminologia americana – director – ou seja, dirijo todo o processo, do início ao fim. Executo, para ser mais exata, e esse processo foi o desenvolvimento da escrita que remota a 2014.

O projeto, então, evoluiu durante um ano, até ser submetido ao concurso do ICA, acabando por ganhar o de Longas-Metragens de Baixo Orçamento … um valor ridículo! Para quem não tem noção dos valores dos apoios de produção no cinema, neste caso foram cedidos 250 mil euros, muito baixo, de facto… mas pronto, iria ser um filme muito simples, com poucos décors e o Paulo decidiu arriscar nesses concursos … o qual ganhamos.

Avançou-se então para a pré-produção. As rodagens estavam marcadas para 2016, mas só foi possível iniciá-las no ano seguinte devido a certas razões. Bem, o que quero dizer é que tudo começou com a vontade de fazer um filme, uma longa, visto que há 22 anos, concretizei uma curta que acabou por me lançar. Mas desse episódio até 2019, muito aconteceu, desde projetos e claro, a minha vida. Tentei arrancar outros projetos do qual não consegui financiamento, por isso tive que abandoná-los. Obviamente, que fazer longas sem subsídio é possível, porém, o tipo de projetos que pretendia fazer neste hiato requeria mais do que austeridade. 

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Depois decidi baixar a fasquia e desistir de outro projeto que tinha, e iniciei a escrita com a Carmo. Ela esteve sempre disponível para explorar uma ideia que teve como base um episódio na vida real dela. Depois foi-se transformando, transformando, até se tornar na escrita de 2017 que é completamente distinta do material que tínhamos em 2016. É um processo de contínua escrita e realização, possivelmente se começasse a filmar daqui a uma semana o filme sairia completamente diferente. Ter um projeto escrito e estagna-lo no momento é praticamente impossível.  

Quais foram os maiores desafios durante a pré-produção e produção de "Linhas Tortas"?

Muita resistência, persistência, perseverança, quase todas essas palavras que significam a mesma coisa. É um processo de luta contínua, até mesmo quando já se tem o subsídio, é preciso lutar contra os produtores, às adversidades, até ao fim.

A Rita Nunes termina a sua primeira longa-metragem depois de 22 anos ter se iniciado neste meio, se não estou em erro …

Para cinema sim …

E como acabou de me dizer foi uma curta que a lançou, “Meno Nove”, estreado em 1997 …

Exato!

Mas gostaria que me falasse sobre um outro dos seus primeiros projetos, uma curta que esteve associada à Expo’98, “Amália por Nós”?

É uma coisa muito curta, quase um videoclipe. O que acontece é que em ‘98, na Expo, havia uma praça chamada Praça Sony que possuía um grande ecrã, onde ocorriam concertos e passavam certos filmes sob a programação do cineasta Rui Simões. Nessa curadoria decidiram passar diversos vídeos sobre diversos temas e eu fiquei encarregue de trabalhar algo sobre a Amália Rodrigues. Foi um dos dois vídeos que fiz para a Praça Sony. 

E qual foi essa sua abordagem? É que não é fácil aceder a esses trabalhos …

Pois, o que acontece é que foi algo que ficou perdido no tempo. O outro trabalho para a Praça Sony foi um documentário, com 10 minutos de duração sobre o lixo, a recolha e o processo de tratamento. Enquanto que o da Amália, esse projeto foi de uma proposta vaga para homenagear diversos artistas. Esse trabalho contou com diferentes realizadores e eu acabei por ficar com a Amália, até porque sempre gostei do seu trabalho. É apenas um clip, algo pequeno, um playback do “Barco Negro”, cantado pela própria fadista, em que diversas pessoas integravam essa mesmo playback. Desde desconhecidos de Alfama até amigos que apanhei durante o processo, levei-os ao meu local de trabalho e pus-os a cantar, e pronto, a edição simboliza toda uma diversidade que por sua vez representam Portugal sob os acordes de Amália. Possivelmente é algo sem relevância cinematográfica. 

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Rita Nunes

Você já considerou voltar a fazer curtas-metragens?

Nunca mais. [risos]

Como surgiu a ideia de incluir a música "Not For Me" de Bobby Darin no filme "Linhas Tortas"?

É o acontece em ter grandes amigos ligados à música e outras artes, neste caso foi um amigo meu do Porto que também está acreditado no genérico, que é o Paulo Vinhas, que de vez em quando partilha umas playlists pelos amigos. Então, por vezes venho sempre carregada com músicas para ouvir. Há vários anos uma das músicas dessa playlist me fascinou, que foi a tal de Bobby Darin, “Not For Me”. Tinha vontade de colocá-la num filme, não sabia o como, quando ou o contexto, só sabia que aquele tema era tão cinematográfico. Dada a altura na escrita do guião apercebi que havia uma forma de inseri-la no filme, usufrui então do mecanismo diegese, onde a música teria que encaixar na narrativa. Vejamos, eu não queria uma música qualquer, portanto utilizei esta que tanto pretendia. 

O que aconteceu foi um encaixe de vontade, porém, esta “Not For Me” adequa-se ao enredo; as letras, o som, tudo interagiu na perfeição. Fazia sentido aquele tema.

"Linhas Tortas": porque jamais se endireitam …

Hugo Gomes, 23.06.19

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Por linhas tortas, Deus escreve direito! Os desígnios do destino transmitem a natureza deste “encontro” entre duas almas conturbadas numa cidade que cada vez mais se associa ao universo das redes sociais; aqui ninguém se toca, apenas deseja-se.

Os afetos são distanciados em lugar térreo enquanto as personas virtuais se aproximam num espaço não-físico, tendo como consequência a deterioração das relações “concretas” e a sobrevalorização dessa presença espectral no digital e tecnológico. Linhas Tortas, sim, assim intitulado este filme de Rita Nunes, realizadora experiente da televisão, mas que antes revelou-se na sua curta de final de curso (“Menos Nove”, que foi premiado em Locarno), vem beber dessa (desi)interação da mesma forma que Fernando Lopes ficcionou o seu penúltimo filme: “Os Sorrisos do Destino” (2009).

Uma salada simples de elementos que graficam um espaço urbano pelas rotinas deturpadas das suas personagens, com Joana Ribeiro e Américo Silva, desafiando o antagonismo anexado ao chamado “ageismo” num romance de quarentena onde a questão de trocas de identidades vai acelerando a intriga para um iminente choque. Contudo, a procrastinação é cúmplice da passividade e esses atributos acompanham o júbilo destas identidades tecnológicas. Aqui, as redes sociais são apenas desculpas para o bovarismo das personagens, presas de um lado ao seu cinzentismo, e do outro ao pessimismo de um futuro incerto. É o tema de “Linhas Tortas” que nos leva a esmiuçar o nosso quotidiano, e sobretudo a cedência deste para com a nossa dependência virtual. A sugestão não é levada para filosofias. Mais do que poucos recursos, existe no argumento desenvolvido por Rita Nunes e Carmo Afonso uma vontade de simplificar.

Até porque é a simplicidade que dita os costumes, e é nela que encontramos a mais sincera das suas virtudes. Nunca indo além do visto, sentido e possuído, por vezes é esse mesmo simplismo que falta no seio do cinema português. E não falo do chavão de “somente contar uma história”, mas restringir-se aos básicos códigos da narração em prol de uma interpretação clara.

Há algo de fresco e revitalizado por estas bandas, e não é somente a energia trazida por «Not for me» de Bobby Darin.

Apontamentos de um gesto desaparecido à lá Ruiz

Hugo Gomes, 14.10.18

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A pomposidade dos dramas de época levam-nos a este antídoto, uma reconstituição míope, despojada, que se apoia sobretudo na palavra e na crença ostentada pelas suas personagens em tempos expirados. Adaptação de “O Livro Negro de Padre Dinis”, uma espécie de prequela de “Os Mistérios de Lisboa” de Camilo Castelo-Branco, o testemunho deixado por Raoul Ruiz à sua mulher, Valeria Sarmiento, torna-se numa bandeja à memória pós-tumulo do seu “eterno amante”, tendo como objetivo máximo a concretização de uma “ressurreição”. Triste será dizer que não encontramos alternativa, nem regresso a espíritos passados: Ruiz desapareceu do nosso Mundo (infelizmente teremos que aceitar isso), Sarmiento apenas arma uma fita com o afeto memorial.

Talvez seja por isso que exista aqui um certo desdém, diríamos antes, sentimento de estranheza, como um substituto deslavado se tratasse, mas é dentro dessa mesma irreconhecibilidade que somos afrontados com um romance de outrora e de salvaguardado fatalismo, que despeja lirismo nos seus gestos automatizados com uma fé inabalável. Prolongando a linha … diríamos antes … as “Linhas de Wellington” (projeto inacabado de Ruiz que Sarmiento assumiu sem alternativa), em “O Caderno Negro” somos puxados à limitação cénica e conflituosa, mas nem por isso ilimitados da nossa imaginação.

Não se sentia assim desde o primitivismo trazido pelos “teatros de época” de Oliveira ou a manobra temporal de Olmi em “Il Mestiere delle Armi” (2001), a reconstituição que não prima pelo detalhe visual nem sequer assumindo a réplica aludida, mas a recomposição de um certo parecer, antes de mais ser. É um filme enquadrado numa vontade, o gesto assimilado ao invés do gesto realizado da credibilidade, de facto, ficamos no impasse de uma obra cuidada e alegadamente cúmplice do seu artificialismo. E mesmo sob uma passiva narrativa de contos e recontos de uma adaptação reduzido ao esquematismo, algo quase alicerçado a um certo cinema de autor, “O Caderno Negro” provém de uma veia classicista, não no seu formato mas das contrações espirituosas. Aliás, somos conduzidos à tragédia de romances incumpridos, como juras de amor que imobilizam vidas e imortalizam mortes. Aí deparamos, o seu vínculo reafirmado da pomposidade da palavra e dos sentimentos anexados.

Falando em “anexos” e antes que seja tarde, miremos a beleza e a doçura amargurada de Lou de Laâge, a mera figura acorrentada a um drama maior que ela própria.

Através do buraco da fechadura

Hugo Gomes, 15.10.15

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Depois do arranque com “Photo”, em 2012, um filme que orquestrou as memórias de um Portugal regido ao salazarismo e que resultou num ensaio mais feliz que o seu primo de grande produção “Night Train to Lisbon”, Carlos Saboga regressa ao seu esforço de realizador emancipador (e com cunho produtivo de Paulo Branco) com um outro olhar ao nosso país em pleno anos 40: “A Uma Hora Incerta”. 

Nesta sua nova obra, o tema dos refugiados é invocado refletidamente num período onde a Fantasia Lusitana parece cada vez mais vincada numa nação de fronteiras encerradas. A Segunda Guerra era vivida lá fora sob horrores inimagináveis ao povo português, mas o cerco construído entre nós, o sistema político que tentava levar um país à obscuridade, corrompia qualquer ligação exterior, quanto mais fugitivos de uma guerra inexistente, segundo os livros portugueses. Esse factor torna-se na combustão para esta intriga de um inspector da PIDE (Paulo Pires) fascinado por uma “desertora” francesa (Judith Davis), uma obsessão que se torna a sua respectiva salvação.

A Uma Hora Incerta” instala-se como uma produção de baixo-orçamento, o qual se referencia na limitação da sua variedade cénica que como tudo converte-se numa imagem aludida à saúde que o nosso país apresentava no seu predilecto esconderijo da Guerra. Eis um filme que nos fala da ignorância social estabelecida pelos nossos líderes políticos e pela ligação fortalecida com os órgãos religiosos, pelo meio indiciamos a repressão sexual, o constrangimento que tem muito de bíblico como de um erotismo digno de “buraco de fechadura”. 

Quanto ao primeiro adjectivo, a história de incesto de Lot revela-nos o vector acrescente, onde a jovem atriz Joana Ribeiro dá cartas com uma interpretação calorosa e um misto de ingenuidade sexual com níveis elevados de complexidade de Electra. A juntar a isto, uma montagem profissional em conformidade com uma fotografia de Mário Barroso, que expele essa salada de sentimentos e sensações que este “A Uma Hora Incerta” evoca. Possivelmente uma curiosa experiência na produção nacional, apenas há que dar uma oportunidade e abraçar os nossos “defeitos” enquanto povo.