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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Memory Box": um baú de recordações, um museu sobre a existência

Hugo Gomes, 01.03.22

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Há uns tempos, olhamos para Julie como “A Pior Pessoa do Mundo” no mais recente e elogiado filme de Joachim Trier, contudo, a jovem que deixa de ser jovem na entrada da casa dos 30 não é uma “agressora genuína”, e sim uma vítima das imposições sociais: o que ela nos estabelece, as suas limitações, julgamentos, no fundo somos seres reféns desses artificiais biótopos criados por algo que denominamos de Civilização. Entre “The Worst Person in the World” e este “Memory Box”, da dupla Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, as diferenças soam abismais, por isso perdoem-me do ponto introdutório referente a um filme sobre europeus confortáveis para embarcar num “caixinha memorialista” com atalhos aos confrontos do Líbano nos anos 80. O que importa aqui é considerarmos que não somos “autênticos” e “puros”, somos frutos das nossas origens, e nesse ponto, mesmo disfarçando, continuamos esclavagistas de uma sociedade que espera algo de nós.

Em “Memory Box”, o ponto é outro, as recordações coletadas que nos lançam a um passado inconfortável, as antípodas de um Primeiro Mundo (o Canadá onde a nossa protagonista reside) e de um “Outro”, geograficamente longínquo como temporalmente longínquo (o passado da sua mãe no Líbano, apercebendo da sua génese e ainda mais, da “chocante” revelação de que a sua progenitora viveu uma juventude plena, apaixonada e igualmente conturbada). Aqui, a narrativa execita uma ginástica para caber essas lembranças endereçadas nos mais diferentes formatos; fotografias, vídeos caseiros, palavras embutidas nas páginas de um diário ou nas “mixtapes” compostas por algo mais que êxitos, músicas de vivências, de momentos e de experiências.

Esse esforço memorístico é coordenado pela descendência de quem as protagoniza, a filha de Maia (Rim Turki / Manal Issa) - Alex (Paloma Vauthier) - que ignorando qualquer aviso “abre” a tal “Caixa de Pandora”, onde as desgraças mitológicas são substituídas por retalhos vividos pela sua mãe. “Memory Box” parte de um sentido e percorre as encruzilhadas identitárias aí geradas, seja através da perspetiva "egocêntrica" de uma só pessoa num pedaço de História recente, seja pela aproximação de filha-mãe / mãe-filha a partir dessas confissões silenciosas e invisíveis ou da forma como consolidamos o passado com objetivo a reconsiderar o futuro. Um filme de cicatrizes saradas que nunca verga pelo dramatismo enfático, a ficção com inspiração autobiografia encontra a sua medida certa, não enganando nem sobressaindo da sua simplicidade nos ditos e feitos.

A guerra está presente neste coming-of-age de camadas (não há que negar), por vezes explicitando o conflito que o espectador procura por entre aquele recolhido álbum, ou embelezando essa distância temporal como “manda o ditado” (“as nossas memórias podem atraiçoar-nos”), como é o caso daquele passeio de mota, convívio entre duas almas harmoniosas para com o seu espaço enquanto o cenário em redor é bombardeado reduzindo-se a “cinzas e poeira”, gancho mais tarde captado no “Dust in the Wind” dos “Kansas” que toca (e toca-nos) como uma bela nostalgia - “não há jeito a dar, voltar atrás seria inconsciente” - e é então que o filme retorna à hipotética “casa de partida”, contrariando o senso comum. “Não voltes ao lugar onde já foste feliz”, neste caso é o confronto com esses lugares que nos tornamos mais fortes, e nem por isso menos emotivos.

Tal como Julie idealizada por Trier, Maia é também um exemplo daquilo que a sociedade pretende que sejamos, no seu caso é esquecer um passado e integrar uma atualidade como tantos outros. Ambas personagens lutaram contra essa peça de engrenagem, e em seu jeito foram bem sucedidas. Até parece que a homogeneidade é prima da modernidade?