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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A Década '10 traduzido a Cinema Português

Hugo Gomes, 19.12.19

O que reter numa década de cinema português? Um desafio difícil e um pouco ingrato, esse de deixar de fora uma produção que tem lutado contra anos zeros, faltas de apoios, público e por vezes falta de ideias. Mas este é o cinema que amo com todos os seus defeitos e virtudes (alguns dos filmes mais belos são sem dúvidas portugueses). Como tal, eis os 10 selecionados para marcar 10 anos de arte à portuguesa.

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A Batalha de Tabatô (João Viana, 2013)

Verão Danado (Pedro Cabeleira, 2017)

A Fábrica do Nada (Pedro Pinho, 2018)

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Cartas da Guerra (Ivo M. Ferreira, 2016)

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Tabu (Miguel Gomes, 2012)

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Vitalina Varela (Pedro Costa, 2019)

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Mudar de Vida - José Mário Branco, a vida e a obra (Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro, 2014)

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Ama-San (Cláudia Varejão, 2016)

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O Gebo e a Sombra (Manoel de Oliveira, 2012)

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As Mil e uma Noites (Miguel Gomes, 2015)

Quando a loucura nos conforta

Hugo Gomes, 09.12.18

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Por mais (más) críticas que existam, assim como desprezo vindo (principalmente) da imprensa portuguesa, “A Batalha de Tabatô” foi possivelmente um dos primeiros filmes nacionais a apresentar uma África sob uma perspetiva fora do olhar colonialista. Uma canção de amor frente ao ódio, assim como mandam as melodias reconhecíveis e imortalizadas de John Lennon. Pegando agora em “Our Madness”, a segunda longa-metragem de João Viana, “Tabatô” ficou além, converteu-se num espectro cada vez mais longínquo (até de certa maneira, parte integrante dessa nova conceção). Nesta nova “loucura”, a narrativa torna-se mais críptica, o simbolismo apodera-se da encenação do real, os horrores tornaram-se abstratos, assim como a nossa memória da história.

Aqui, a Guiné de “Tabatô” é substituída por Moçambique, um país registado pelos olhos da loucura oriundos de um sanatório, onde um muro separa esse biótopo utópico das diferentes devaneações para com o vermelho-sangue dos assombrados. Como Gil Vicente e as suas Barcas Infernais, o Louco corresponde à figura do verdadeiro sem o filtro da cordialidade civil, hoje, equiparado a discursos populistas. Em “Our Madness”, essa loucura materializa-se em fantasias impactantes em direção ao centro da raiva exercitada pela Humanidade. Novamente a Guerra Colonial serve de fronte às sentenças da culpa branca, e a Escravidão um elo para com o ensurdecedor silêncio que se faz sentir.

É um filme que presta no seu “surrealismo”, assim chamaremos com a nossa indiscrição, à vontade de ser decifrado. Contudo, o críptico deste amontoado de representações prende-se, não fechando um filme mas tornando-o vaporoso, não denso, e sim etéreo. As interpretações são múltiplas nesta viagem por uma narrativa quase isenta de diálogos, onde a voz off sussurrante atenta-se de forma xamânica nas diferentes questões (essa encruzilhada representativa leva-nos a encontrar gratuidade nas próprias reinvenções do físico). Desde o país imaginário nunca concretizado, aquele visto pelos olhos do louco(a), ou dos ídolos ocidentais que não se vingam em terras sangrentas cujo vermelhão é diversas vezes filtrado pelo preto-e-branco (a fotografia é da autoria de Sabine Lancelin, que trabalhou com cineastas como Manoel De Oliveira, Raoul Ruiz ou João Mário Grilo) ou até mesmo pelo negativo (o contraste do eros e thanatos).

Our Madness” é assim, uma viagem por grifes da irracionalidade, o único pensamento digno de uma Humanidade em autodestruição. João Viana aproxima-se mais das montanhas sagradas de Jodorowsky, é o diálogo profano a prevalecer sob a naturalidade das coisas. Mas falamos de temas abstratos aqui, o colonialismo continua a prevalecer como algo (não)concreto apenas enraizado na fé de alguns. Tabatô está longe, a Loucura sente-se, e João Viana persiste.

A música que se ouve em Tabatô

Hugo Gomes, 11.01.14

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Há 4500 anos, enquanto tu fazias a tua guerra, criámos a agricultura. Há 2000 anos, enquanto tu fazias a tua guerra, criámos a boa governação dos reinos. Há 1000 anos, enquanto tu fazias a tua guerra, criámos o chão do reggae e do jazz. Hoje, perante a tua guerra, criaremos contigo a tua paz.

Começo por citar John Lennon, “make love, not war”, frase, essa, celebrizada na cultura pop e muitas vezes adoptada em diversas manifestações sociais, aplica-se de tal forma a esta nova obra de João Viana, “A Batalha de Tabatô” (extensão da sua curta-metragem intitulada somente por Tabatô, que fora também apresentado no último Festival de Berlim), como forma de consolidar com os “fantasmas”, sendo que ainda se encontram presentes, na Guiné-Bissau. Viana parece utilizar as mesmas armas de Lennon nesta conquista da paz, sonho eterno e talvez inalcançável segundo os mais pessimistas, o que faz por via da música, neste caso o realizador ressurge com um trabalho de pesquisa de mais de cinco anos sobre as tradições, folclore e as questões sociais do país em questão, para nos trazer uma obra que se refere a muito, mas que igualmente parece dizer pouco.

Sem querer cair no equívoco, saliento que “A Batalha de Tabatô” é uma espécie de retrato pacifista, onde as críticas e as crónicas levadas a cabo pelo realizador são colocadas no grande ecrã através do sentido figurado. Viana utiliza influências dos mestres vanguardistas portugueses (talvez fruto do seu trabalho como assistente de realização), planos longos, simetricamente enquadrados, salientando uma consideração étnica a Guiné-Bissau, a representação generalizada de um povo que tem que lidar e exorcizar os seus próprios espectros. 

Em cada plano, João Viana remete às mais diferentes questões e através dos seus “truques de câmara” liberta-se perante elas, desde as almas dançantes referentes a um estado de espírito libertador até à fotografia vermelha que desperta repentinamente como sangue que remete os horrores de uma guerra que parece ter deixado um povo de certa forma fragilizado e afetado com os tais “estilhaços” e as casualidades bélicas. Até os mesmos cenários transmitem tal mutação como as diferentes faces de Guiné-Bissau, invocadas também elas nas personagens que raramente cruzam o olhar entre si, transmitindo a ideia de medo nas interações ou nos afetos humanos, tudo isto resumindo em desempenhos algo vazios e diálogos escassos mas prolongados através de pausas por via do silêncio em memória daquilo que não deve ser pronunciado, mas sim esquecido.

“A Batalha de Tabatô” é um filme que em termos estéticos e aparentes soa a vácuo, e quase nada invoca em termos emotivos, mas que nos deixa assombrados perante uma alma inerente após do seu vislumbre. Desde então apercebemo-nos que por vezes é por via do silêncio que somos remetidos à paz de espírito, contudo é através da música que consegue ser o nosso meio de libertação, uma liberdade que precisa ser alcançada prioritariamente por dentro de cada um de nós. Vencedor do Prémio Revelação do último Festival de Berlim, “A Batalha de Tabatô" é uma obra com alma.