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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Joana Ribeiro em "Os Papéis do Inglês": "há momentos em que somos só nós e o deserto. Isso pode ser assustador, mas também é libertador."

Hugo Gomes, 25.10.24

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Os Papéis do Inglês (Sérgio Graciano, 2024)

Sul de Angola, deserto de Namibe, na demanda por uns papéis, um macguffin, um tesouro incógnito que ditos e suspeitas o rodeiam, por entre aquele território enigmático, de horizontes infinitos e de gente ligada a um tempo fora, Ruy (João Pedro Vaz), um poeta, um escritor, um cineasta, homem de artes e de palavras em geral, revela-se numa figura quase quixotesca e enxuta na demanda dessa preciosa papelada e nos mistérios acarretados nele. 

Neste novo filme de Sérgio Graciano - Os Papéis do Inglês - a obra de Ruy Duarte de Carvalho (1941 - 2010) revela-se em matéria maleável para a ficção e à autognose, à aventura pouco convencional, e à reflexão de uma terra e das suas assinaturas, e, sobretudo, do seu lugar no Mundo, seja em África ou nos escritos. O escritor deu carta branca para o produtor Paulo Branco adaptar a sua trilogia “Os Filhos de Próspero”, e o resultado é uma homenagem, ora sentida, ora exótica, ora trovada e entendida no seu consciente. No seu seio, outros se juntam à busca pelos registos em parte incerta, seja o fiel David Caracol, ou mais tarde, um retornado angustiado Miguel Borges, acompanhado pela juventude em forma de Carolina Amaral e de Joana Ribeiro, aqui como Camila, arqueóloga com fascínio pela poesia de Carvalho, e que, através das suas lentes, ‘penetra’ nesta África desconhecida, do berço da Humanidade até às longitudes mais distantes da civilização.

O Cinematograficamente Falando… conversou com a atriz, no Cinema Nimas momentos antes da antestreia nacional de “Os Papéis do Inglês”, numa breve passagem pelo seu papel e pela sua colaboração constante com as produções de Paulo Branco e de novos projetos que chegarão a nós num ápice. Fiquemos assim na companhia de Camila, a jovem aventureira…

Começo pelo início: a sua chegada a “Os Papéis do Inglês” …

A chegada a este filme aconteceu durante um almoço com o Paulo Branco, onde ele me falou deste projeto, que era completamente desconhecido para mim, pois até então não estava familiarizada com a obra de Ruy Duarte de Carvalho. Confesso que o interesse surgiu não só pela evidente ligação à obra de vida de Ruy, o qual teria a oportunidade de o “descobrir”, como também pela personagem da Camila, que interpreto. Em criança, o meu primeiro sonho era ser astronauta, mas também havia um desejo em mim de ser arqueóloga. Assim, ao surgir a oportunidade de interpretar uma personagem ligada a essa área, mesmo sem muita arqueologia durante as filmagens, pareceu-me uma experiência interessante e fez todo o sentido.

Depois do dito “Sim” ao projeto, chegou a ler a obra de Ruy Duarte de Carvalho?

Li pois … Li a trilogia “Os Filhos de Próspero”, que como se bem sabe, serve de inspiração para este projeto, e também “Vou lá visitar Pastores”, pois a minha personagem referencia esse livro e, na época em que o filme decorre, tinha acabado de o ler, por isso fiz o mesmo. Troquei depois várias ideias com o João Pedro Vaz sobre o escritor e a sua obra, uma vez que ele realizou uma pesquisa intensa e profunda sobre o autor para o seu papel.

E como trabalhou, ou preparou, esta Camila?

Esta personagem foi principalmente construída com base na leitura dos livros. Tivemos ensaios, todos na Leopardo [Filmes, produtora de Paulo Branco], e grande parte do trabalho veio da relação que desenvolvi com a Carolina Amaral. Já conhecia a Carolina, mas não éramos amigas, e neste projeto ficámos muito próximas. Foi realmente isso: a conexão com os outros atores, o que estava no guião e na leitura da obra do Ruy.

os-papeis-do-ingles (1).jpegOs Papéis do Inglês (Sérgio Graciano, 2024)

E tendo esse espírito aventureiro, como foi essa ida a Angola?

Foi incrível! Angola foi espectacular e até então foi uma das viagens de trabalho de que mais gostei. É um lugar muito especial, mas também já tinha uma carga, um significado para mim, porque o meu avô esteve em Angola e o meu pai também passou lá muito tempo. Sempre tive o desejo de visitar o país e essa oportunidade surgiu no ano seguinte ao falecimento do meu avô, o que tornou a experiência ainda mais especial. Foi muito emocionante visitar um sítio de que ele falava tanto e de que tanto gostava.

O deserto do Namibe é o mais antigo do mundo, e sente-se uma carga energética única quando se está lá. Num dos locais onde filmámos, havia um monte de pedras à entrada, onde, segundo se dizia, era preciso adicionar uma antes de entrar, e se isso não acontecesse não conseguiriamos sair do deserto. Ao longo da rodagem, senti essa energia e a importância do lugar.

Há uma frase muito bonita de Ruy Duarte de Carvalho em “Vou lá visitar Pastores", que me acompanhou durante as filmagens. Vou lê-la, porque já não a sei de cor, embora a tenha decorado na altura, pois era uma fala minha. Entretanto, outros projetos surgiram e fui esquecendo. A frase é:

Para nós, o deserto faz falta quando estás noutro lugar. Quando estás lá, vocês não dá-se nem conta; mas quando não estás, sentes-lhe a falta. Mas não é de te exaltar o deserto que tu precisas, nem é isso que te faz correr para lá. É estar lá só, e estar antes onde talvez ele possa ver-te, o deserto, e não tu a ele.

Esta frase acompanhou-me muito ao longo da rodagem. O especial que é estar no deserto, porque há momentos em que somos só nós e o deserto. Isso pode ser assustador, mas também é libertador.

Um sentimento de estar sozinha num deserto?

Sim, mas gosto desse sentimento e aceito-o, porque ali tudo é imenso, tudo é grandioso. A vista perde-se, e houve momentos e situações em que realmente se sentiu a imensidade do deserto e daquilo que estávamos a ver. Havia, por exemplo, um campo que me fez lembrar o filme do Terrence Malick com o Sam Shepard.

“Days of Heaven”?

Sim, exatamente, “Days of Heaven”. Com aquele cenário! Houve um momento em que tive que tirar fotografias e tudo, porque aquilo foi mesmo incrível. Lembro-me de ver o Mário Castanheira, o nosso diretor de fotografia, a filmar o Miguel Borges, o João Pedro Vaz, o Sérgio Graciano, e todos os outros ao redor. Aquilo fez-me mesmo recordar esse mesmo filme, que adorei ver, aliás, aqui no Cinema Nimas.

Houve também várias paisagens que me fizeram lembrar momentos de filmes que adoro. É isso que é tão bonito nos filmes: trazem-nos paisagens e imaginários que ainda não vimos, mas que, quem sabe, um dia poderemos ver. Adorei essa parte de filmar em Angola.

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Days of Heaven (Terrence Malick, 1978)

Esse recorda-me … aliás, farei uma ponte a um outro filme que participou - “Diálogos Depois do Fim” - adaptação de "Diálogos com Leucó" de Cesare Pavese, que foi filmado nos Açores. Recordo semelhante sentimento, a de isolamento, ou de estar em estado remoto, na Ilha do Pico.

Sim, porque acho que, quando estamos num lugar tão imenso e cheio de história, há momentos em que, ao olhar para o horizonte, não vemos ninguém. Atrás de mim estava toda a equipa e o elenco, mas se me virasse para determinado lado, não havia uma única pessoa por quilómetros. Isso é incrível; adoro essa sensação de estar completamente sozinha e, de repente, ao virar-me, perceber que há toda uma gente atrás.

Mencionei “Diálogos Depois do Fim” nem de propósito. Tal como nesse filme de Tiago Guedes, como este de Sérgio Graciano, contracena maioritariamente com o ator Miguel Borges. Está encontrada dupla? 

Pois é [risos]. Olha, foi uma surpresa maravilhosa. O Miguel Borges é um ator que admiro muito, e não é de agora, já há bastante tempo, e tem sido incrível poder trabalhar em diferentes projetos e vê-lo em ação. Gosto muito dele, do Miguel, mesmo muito. Tenho um carinho enorme por ele. Nos “Diálogos”, mais para o final, tivemos um trabalho mais próximo e direto. Neste projeto, não tanto, mas estivemos juntos em Angola durante um mês, mas já tem sido constante a colaboração.

Miguel Borges é um dos atores recorrentes nas produções de Paulo Branco, assim como a Joana. “A uma Hora Incerta” (Carlos Saboga, 2015), também da sua produção, foi o seu inaugural papel no cinema. Desde então, tem sido uma presença habitual neste rol de filmes, incluindo os “projetos-órfãos”, curiosamente, como “O Homem que Matou D. Quixote” (inicialmente de Paulo Branco). Gostaria que me falasse um pouco sobre esta parceria.

Sim, o Paulo foi o primeiro produtor a dar-me uma oportunidade no cinema. Quando fazia televisão, ainda havia uma visão algo pejorativa sobre isso no cinema português. O Paulo foi o primeiro produtor português a apostar em mim e a acreditar no meu trabalho. Gosto muito dele; acho que é um produtor imenso. Quando estou com ele, o nosso diálogo sobre cinema é espectacular, e adoro ouvi-lo falar sobre cinema, das histórias sobre das dificuldades que já enfrentou para conseguir produzir filmes, ou seja, do seu universo.

Enquanto o Paulo quiser trabalhar comigo e eu puder, cá estarei. Até agora, todos os projetos para os quais o Paulo me convidou foram possíveis, e foram também projetos dos quais gostei muito de fazer. O futuro é incerto, mas espero que esta parceria continue.

Pelo que percebo é que, hoje em dia, estando bastante presente na televisão, está a ser muito difícil conciliar com outros projetos paralelos.

Não. Por acaso tenho tido sorte, tenho conseguido conciliar os projetos, mesmo agora que estou a trabalhar numa novela. Este ano, por exemplo, tinha uma série da Bando À Parte, em Guimarães, e em breve vou filmar em Manteigas com o Mário Patrocínio, num projeto produzido pela APM, em novembro, e tem sido possível conciliar tudo com a novela, o que é ótimo, porque nada me dá mais ansiedade do que perder um projeto por causa de outro. Tenho tido muita sorte nesse aspecto, e até agora não houve nada que tivesse perdido por conflito de agenda. Aliás, houve um, produzido pelo Paulo … é verdade, que não consegui porque estava em Londres, mas isso já envolveu outras questões. Foi na altura do Covid, e tornou-se muito complicado gerir essa situação.

Nessa altura, mais concretamente em 2020, integrou o European Shooting Stars. Gostaria que me falasse sobre as “portas” que a participação desse programa abriu. 

Parece que foi há tanto tempo [risos]. A maior porta que se abriu para mim foi, sem dúvida, conhecer outros atores europeus na mesma situação e poder trocar experiências e sonhos. Conheci pessoas com quem ainda hoje mantenho contacto, como o Bartosz Bielenia [Corpus Christi”], que é um ator incrível. No ano passado, ele veio a Portugal e chegou a ficar em minha casa - ele vive na Polónia, tenho família por lá, por isso, quando lá for, provavelmente também o irei visitar - fez um espectáculo com o Albano Jerónimo e a Iris Cayatte [“O Carro Falante”, de Agnieszka Polska], na Culturgest. Mas o que realmente me marcou foram estas amizades que permanecem e a partilha de experiências.

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Diálogos Depois do Fim (Tiago Guedes, 2023)

Foi também nos Shooting Stars que soube que tinha conseguido o papel na série “Das Boot", e isso foi, em parte, graças ao evento, pois os produtores estavam lá e viram-me. Claro que isso ajudou. Na altura, recebi também convites para outros castings. Depois veio o Covid, mas foi por causa dos Shooting Stars que consegui a minha agência nos Estados Unidos, a Gersh. Comecei a ter reuniões logo a seguir ao evento, e foi esse network que, ainda hoje, continua a ser importante para mim.

O que poderia-me dizer sobre esses novos projetos?

O de Manteigas… Não sei o que posso partilhar sobre ele. A minha personagem é uma mulher que viveu a vida toda lá, nunca saiu de lá, e vai ter um reencontro com alguém com quem esteve envolvida há alguns anos. As coisas não correram bem entre eles, e o filme explora esse reencontro – pelo menos, essa é a parte da minha história que será retratada.

No próximo ano, tenho um filme chamado “Augusta & Kátia”, realizado e escrito por Lud Mônaco e produzido pela Promenade, que será rodado a meio do ano, creio eu. É um filme sobre duas amigas e a forma como lidam com questões sociais, económicas e profissionais num país que não é o delas. É uma abordagem mais virada para a comédia, e tenho gostado bastante dessa diferença entre drama e comédia. 

A comédia é difícil, sem dúvida, mas tenho-me divertido muito. Acho que o filme “Sonhar com Leões”, que fiz com o Paolo Marinou-Blanco pela Promenade, também foi uma experiência nesse sentido. Foi a minha primeira experiência em comédia, e estava apavorada, porque achei que seria possível.

Mas, no final, adorei e diverti-me imenso. Pouco depois, fiz o casting para “Augusta & Kátia”, que também é uma comédia. Pensei: “Isto é demais, não vou conseguir.” Mas fiquei com o papel! Se calhar, tenho mais jeito para a comédia do que pensava. Quem sabe?

Os salteadores dos papéis perdidos ...

Hugo Gomes, 19.10.24

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Paulo Branco manifestou o quão pessoal este filme é, da sua experiência, e amizade para com o escritor e poeta Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010), aos serviços “emprestados” na produção de um dos seus poucos trabalhos em cinema [“Móia: O Recado das Ilhas, 1989”], e a vontade que era em adaptar para grande ecrã a sua mais célebre criação literária, a trilogia “Os Filhos de Próspero”. Para tal necessitou encontrar um escritor/argumentista à altura dos seus calos nestas lides africanas, esse cargo calhou ao não menos talentoso José Eduardo Agualusa. Quanto à realização, segundo o produtor, a busca foi ainda mais exigente, pois era preciso encontrar um olhar que dignificasse e compreendesse a realidade subsaariana. 

O achado deu-se com Sérgio Graciano, que Paulo Branco viu num determinado filme (deste lado apostamos em "O Som que Desce na Terra", 2020), do qual o realizador demonstrou uma sensibilidade especial para com aqueles cenários e pessoas. Assim se formou a equipa: um realizador grosseiramente televisivo, um escritor que nos últimos tempos se tem aventurado no cinema ("Nayola", "Sobreviventes"), e um produtor conhecedor da obra de Carvalho, unindo forças para trazer este “Os Papéis do Inglês”, extracto memorial e temporal do eixo Namibe / Angola em ares coloniais. 

Debatendo não só essa identidade e como essas invocações do lusotropicalismo, o filme utiliza também um subtil “macguffin”, os ditos “papéis do inglês” (será um tesouro?) para “burlar” o espectador, e desta feito convidando-o a permanecer num tempo que parece estagnado, revisitado, poetizado em prol deste tributo a Carvalho. Curiosamente, Sérgio Graciano apresenta aqui o trabalho mais equilibrado da sua carreira, onde se notam os seus sacrifícios enquanto “autor”. Despojado dos vícios televisivos ou de o conceito de cinema “para todos os portugueses” (a tal trincheira comercial), através desse trato algo mefistotelicos (para com um produtor que por si é um autor por direito) reforça-se por diálogos ricos e interpretado de forma vigorosa por um elenco rico e multicultural, e adquire espaço e tempo do seu lado para induzir num ensaio de olhares e escutas, de histórias antológicas trovadas como painel multi-narrativo acima da eventualidade etnográfica e até antropológica. 

Não recorre a clichés técnicos, não cede ao excessivo uso de drones (César Mourão estou a olhar para ti) ou outros artifícios banais de esquadrias narrativas (o filme detém uma força anti-natural ao tempo do seu desenrolar, como se requeresse a nossa paciência e atenção a uma demanda remota) e os seus atos raivosamente ditadores. No fundo é uma viagem para longe, quer de nós, quer das memórias da civilização, dos contos dos expatriados, e no seu interior a história de um homem, Ruy Duarte de Carvalho (aqui interpretado por João Pedro Vaz), na sua demanda pelo seu lugar. 

Uma "ereção violenta" de Cinema

Hugo Gomes, 17.09.24

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A odisseia de um homem que escapa pela rota do Oriente da mulher considerada "a mais teimosa do Mundo" configura um casamento que, movido por uma determinação inabalável, sugere ao semi-protagonista, Edward (interpretado por Gonçalo Waddington), uma sensação de aprisionamento. Esta premissa, aparentemente absurda, dilui-se rapidamente numa alegoria cinematográfica, pois a ideia, independentemente de qual seja, é transcendida, temida e, de certa forma, recusada como passível de negociação. O que seria das aventuras humanas se estas fossem, de alguma maneira, domesticadas?

Não se deve interpretar "Grand Tour" como um mero pesadelo matrimonial, mas antes como uma reflexão sobre os múltiplos simbolismos que o casamento, ou a mera possibilidade deste, acarreta. Esta instituição é aqui retratada como um "macguffin" inquieto, encarnado por Crista Alfaiate, que traz consigo o mais “irritante” dos tiques. Tal alusão ao conformismo ameaça as fantasias humanas, matéria com a qual o cinema frequentemente dialoga, e essas mesmas, apresentadas como relatos de terras distantes e exóticas, são aquilo que nutre o cinema de Miguel Gomes. Há nelas uma violência latente, uma vontade de as capturar, moldar e expor como troféus. 

Miguel Gomes navega nesta densa selva semiótica com plena consciência do seu papel enquanto realizador, mas não para revisitar histórias de colonizações ou evocar memórias do colonizador. Antes disso, é a imagética dos caminhos das especiarias, do exotismo que escapa ao nosso quotidiano, que se torna o verdadeiro estandarte da sua cinematografia. Para Gomes, o cinema permanece como uma janela aberta para o mundo — seja geográfica, intelectual, social, alegórica ou politicamente. É neste território que o realizador se move, onde a busca onírica pelo exotismo inalcançável se entrelaça com o sonho e a pretensão, elementos indissociáveis da linguagem cinematográfica. De certa forma, esta exploração da fantasia humana desde os seus primórdios sapientes confunde-se com a própria essência do cinema, inscrito num mesmo processo evolutivo. Já havia dito que paralelismos causavam-lhe vertigens, tonturas desgarradas nas apresentações da trilogia “As Mil e uma Noites” (2015), contudo, é essa subjugação ao seu mal-estar que Gomes se expõe em tela. 

Um dos momentos de maior destaque em “Grand Tour” ocorre quando Edward, em plena fuga de comboio em direção a Saigão, é envolvido pelos sons imersivos e indecifráveis da floresta. De súbito, uma "ereção violenta" o detém, algo que não vemos, mas que nos é comunicado por um narrador omnisciente e omnipresente. A cena, contudo, apenas nos mostra a perspetiva traseira da carruagem, com os carris que se prolongam infinitamente e um horizonte que se desvanece, preenchido por lugares inexplorados. O narrador informa-nos que Edward adormece, e, assim, o sonho começa por breves instantes. Curiosamente, “Grand Tour”, embora distante da estética murnauiana de “Tabu” (2012), evoca um certo encantamento dos maneirismos do cinema mudo (sente-se mais Dreyer aqui). Existe um "primitivismo" deliberado, uma invocação de uma época em que o cinema surpreendia não apenas pelas suas possibilidades técnicas, mas pelo seu poder de "faz de conta" e lirismo. Todavia, o sonho aqui é a cores, realista e contemporâneo, acima de tudo documental — o expoente máximo do cinema moderno. Uma bela alegoria: o cinema a preto e branco que sonha em cores, o cinema do passado que sonha com o futuro, o cinema fabulista que sonha com o real.

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É possível que Miguel Gomes, com o seu passado de crítico de cinema, esteja constantemente a falar sobre a própria arte nos seus filmes. Mais do que utilizar narrativas lineares ou transmitir mensagens explícitas, “Grand Tour”, a sua quinta longa-metragem a solo (se considerarmos “As Mil e uma Noites” como uma única obra), funciona como um espelho do Cinema e do seu Cinema, não apenas o referenciado, mas também o que pratica. Nesta "demanda", o espectador é convidado a ver as costuras do filme, identificando nelas os "tiques e manias" que marcam as suas obras anteriores: o cruzamento de tempos, memórias e naturezas, todos condensados num único espaço, tal como a narrativa, que se divide em dois atos, alternando conforme a perspetiva do seu eventual protagonista. Havia feito, salientemente, com “A Cara que Mereces” (2004) e com “Tabu”. Esse salto ao eixo. Se Edward prossegue a sua jornada pela Ásia Oriental como uma comédia de acasos, fisicamente débil, já Molly (Alfaiate) encarna uma tragicomédia de uma determinação implacável até à exaustão. E é através de Molly — novamente com uma interpretação exuberante de Alfaiate — que sentimos o fado desta arte, do Cinema propriamente dito e sem hesitações, na ilusão do seu happy ending idealizado, e nunca materializado, esperado o trágico com que a existência da determinação se afunda nas sua próprias projeções. 

“Grand Tour” é Miguel Gomes sendo Miguel Gomes, sendo a Molly, corajosa e irrefutável, que persegue o seu Edward, por mais avisos que lhe dirigem. A isso, chamamos de autor … 

Um palhaço enforcou-se!

Hugo Gomes, 09.09.24

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Sem Deus posso viver. Sem crédito não posso nesta vida”

Rodrigo Areias, por mais ziguezagues que faça, é na música que sempre se conforta, é dela que restaura a sua vertente cinematográfica, compondo filmes como quem compõe operetas, fazendo dos seus atores deslumbrados performistas que bailam ao som da sua sinfonia. Em “A Pedra Sonha Dar Flor”, um espectáculo visual-sonoro que recorre a textos e a um constante olhar metalinguístico sobre a obra de Raul Brandão, nomeadamente o seu “A Morte do Palhaço”, onde a comédia é vista como uma ilusão do trágico inevitavelmente reservado na vida. Assim, a música, a cargo de Dada Garbeck, reforçada pela fotografia de Jorge Quintela, funciona como anfitriã de um circense caldo de niilismo existencial. 

Trata-se de uma obra que apela insistentemente ao valor da sala de cinema, recusando o espaço doméstico e desejando, como o mineral que sonha brotar vida, transformar o cinema no seu palco. O palco do mundo, talvez! Por isso, não há como negar: “A Pedra Sonha Dar Flor” é a obra mais bela alguma vez feita pelas mãos de Areias (O Pior Homem de Londres, “Surdina”) ou, como ele próprio afirma convictamente, a produção vinda do seu coletivo Bando à Parte, casa de amigos e cooperativismo, até porque é desses conhecidos que formam a trupe encarregada de içar este filme com quem retira o corpo do palhaço enforcado, o símbolo dessa comédia de vida traída. 

É bonito, sim senhor, mas fugaz, efémero; infelizmente, prevalece apenas como a sensação do momento da projeção e nunca responde à exatidão de quem sonha vencer para lá da sua exibição. A narrativa, isso, é uma dor de cabeça para quem se apoia numa dependência lógica. O filme saltita entre filosofias, ora deprimentes, ora simplistas, de tentações ou purezas insufladas, de clandestinidades sentimentais, políticas ou outras quaisquer, ou até de pura heresia — que o diabo me leve! —, garantindo momentos ácidos e hilários sem gerar riso algum (o humor não é mais que a conscientização da nossa mortalidade). 

Talvez haja algo de pedante no seu carácter de ensaio que não agrade ao comum dos mortais ou ao espectador escapista pronto para comédias de teor televisivo ou de drones às carradas, ao invés disso subjuga-se à experiência, à deambulação, porque a vida pede esse “piloto automático”. Se assim for, temos uma sessão para o que der e vier, mas infelizmente a beleza das suas ramas não dão flor, o filme sonha em ser mais do que é; o resultado é traiçoeiro. 

Um filme belo — já o disseste? — eu sei, mas sem pretensões de ir além do momento.

O farrapo humano

Hugo Gomes, 30.05.24

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Eis o salto triunfal de André Marques ao ambicionado território da longa-metragem - após anos e anos dedicados ao formato curta, numa trajetória elogiada nos círculos cinéfilos, críticos e até mesmo académicos [“Yulya”, “Luminita”] - "O Bêbado", um título que por si sugere o tom cruel acarretado pela obra, é um exemplo a merecer ser replicado de como o cinema português poderá adquirir a capacidade de cativar um vasto público sem o auxílio (ou lê-se rendição) da linguagem televisiva. 

Na verdade, deparamos com uma anti-telenovela, um ensaio incorporando em formalismos e terminologias identificáveis do cinema romeno - focando-se no quotidiano e extraindo dele uma crítica social, a estética crua e a câmara predatória para com o protagonista -, ostentando um guião minuciosamente trabalhado, verossímil e silenciosamente eufórico, refletindo o desespero sufocado do protagonista, Rogério (interpretado por Vítor Roriz, arrebatadoramente lacónico e corpóreo), o nosso “bêbado”, um constante refugiado no álcool com intuito de "anestesiar" a sua existência fragmentada e silenciosamente torturante (curiosamente a imagem do filme torna-se mais enevoada de forma a acompanhar o estado de embriaguez da personagem). 

Recebemos como cartão de “boa-vindas” nesse seu mundo ao som de "Quero Viver", a música póstuma de António Variações, interpretada pelo grupo Humanos, uma representação desses desejos ardentes escondidos sob a sua carcaça desanimada, contrastando com o retrato miserabilista de uma decadente Setúbal, aqui equiparada a periferia de sonhos nunca alcançados. Contudo, o filme evita cair no cliché do "farrapo humano" e no moralismo declaradas em guerras contra o alcoolismo, foge do panfletarismo, estabelecendo a sua fixação pela ficção. A sua ambiência é dotada por detalhes de um quotidiano identificável, acreditamos piamente naquele registo, naquele personagem, naquelas dores e naquela realidade, e é por essa via que Marques marca o seu devido ponto, mas não termina aqui. 

É que quadros dardaneanos encontram-se demasiado presos a um cansado discurso social, aqui, é o ‘brinde’ que surge na passagem do primeiro ao segundo ato que apimenta a narrativa, fazendo dirigir por outros caminhos, meio revoltosos é verdade, de um tom de vigilantismo acidental, o “Taxi Driver” à portuguesa que muitos adorarão descrever. O ponto extra deve-se aos seus minimalistas diálogos, principalmente oriundos da personagem de Rogério, mais performativo e expressivo que apenas um debitador-de-texto, um filme que funcionalmente comunica através das suas imagens, não dependendo da verborreia. 

Uma lição estudada, executada e bem-sucedida, do qual “O Bêbado” se orgulha de apresentar como artifício de uma estreia fulgurante no formato longa. André Marques consegue um crível conto de mártires residentes da nossa contemporaneidade. Brinde por isso!

A geometria do Mito ...

Hugo Gomes, 03.03.24

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Na véspera da sua exibição no Festival de Roterdão, os jornalistas portugueses, dirigindo-se ao visionamento de imprensa de “Diálogos Depois do Fim” no Cinema Nimas, foram recebidos pela produtora Ana Pinhão Moura que os elucidou sobre um aspecto peculiar da obra. Inicialmente produzida como uma série televisiva composta por 19 episódios, este filme foi concebido e realizado através da "colagem" de 6 "diálogos". No entanto, em Roterdão, o "filme" seria diferente daquilo a que os profissionais de imprensa iriam assistir, tal como indicou a produtora, essa versão seria de uma montagem diferente, uma compilação de episódios previamente selecionados pela comitiva de seleção do festival holandês. 

Assim, "Diálogos Depois do Fim" estabeleceu-se como um filme fragmentado, composto por partes que são construídas pela iniciativa do curador/espectador, nunca detendo uma estrutura original, mas mantendo a sua essência - a adaptação de "Diálogos com Leucó", a obra predileta do escritor neorrealista italiano Cesare Pavese (1908 - 1950), integrado na sua visão de desapropriação do mito grego e igualmente a sua subjugação à natureza mitológica (“O mito é (...) o esquema de um facto acontecido de uma vez para sempre, e retira o seu valor desta unicidade absoluta que o leva para fora do tempo e o consagra como revelação”, citando o próprio).

Em resumo, é um exercício performativo digno de instalação, onde 39 atores e uma pequena equipa, liderada por Tiago Guedes ("Os Restos do Vento", "Coisa Ruim", "A Herdade"), aventuram-se no arquipélago açoriano para encenar os diálogos totalizados (19 dos 27 originalmente presentes no livro) e extrair as figuras mitológicas e mortais fantásticas de Pavese, em conflito de ideias, orbitadas pelos fascínios declarados pelo autor. Desde a existência à dicotomia entre a morte e a vida, da violência à paz, da utopia à distopia, estas conversas imaginadas com o mar no horizonte e a selvajaria intactamente indomável servem de palco para a teatralidade encontrada.

Embora Straub e Huillet tenham feito destas inspirações muitos dos seus campos elísios, nas mãos do oscilante realizador Guedes, entendemos como uma variação mais digna do seu processo do que da sua própria conclusão. "Diálogos Depois do Fim" é um filme transmutável, sem um lar ao qual possa chamar seu, encaminhado como um gesto produtivo em vez de uma obra finalizada. Os Açores [Pico] contribuem com o ambiente nesta móvel residência artística, e a sua conjuntura para com o desconhecido apela constantemente à imaginação e crença do espectador. O resto tenta permanecer relevante depois do fim. Não sabemos se resultará com a sua arte ...

Um talentoso senhor português em Londres

Hugo Gomes, 07.02.24

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Rodrigo Areias [em entrevista à Agenda Cultural Lisboa] desafia os espectadores a discordarem do título da sua nova longa-metragem - “O Pior Homem de Londres” - que aborda o chantagista, trapaceiro e manipulador negociador de arte, Charles Augustus Howell (1840 - 1890), figura digna de uma Londres vitoriana à luz de Arthur Conan Doyle (aliás é sabido que o escritor inspirou nele para compor um dos arqui-inimigos de Sherlock Holmes, e o filme mantém a sua presença como easter egg para os mais atentos). Aqui, interpretado por Albano Jerónimo em generosas doses de pomposidade, estabelece-se como um dos responsáveis pela difusão e influência do grupo de Pré-Rafaelitas, autores e artistas que na ordem de discordar da estética corrente e acadêmica, regressam às bases românticas e góticas, procurando nelas uma espécie “honestidade artística”. Dessa colheita surgiram personalidades como John Everett Millais e Dante Gabriel Rossetti, este último como estrutura óssea do drama de época aqui imposto, e cujos espíritos estabelecem pontes entre as ambições de Howell e a sua sensibilidade artística, deveras ambíguo devido à natureza da sua personagem-central.

Areias, produtor prolífico (“O Barão”, “Listen), une-se a Paulo Branco para trazer esta história sob uma perspectiva portuguesa, visto que o infame Howell tinha umas quantas “costelas lusitanas”, e tal como o manifesto artístico serviente como cenário, “O Pior Homem de Londres” anseia a regressão, instalar-se no belo conforto do “filme de época”, e para tal abre-se o armário de um vistoso guarda-roupa, até à criatividade, sem falhas, de converter Viana do Castelo numa Londres “faz-de-conta”, ou pela fotografia de Jorge Quintela, a declaração artística Pré-Rafaelitas, aliando-se à câmara irrequieta e igualmente dócil com que cada travelling por salões afora é "pincelado". É um filme com o seu "quês" de oliveriano com injecção generosas de naturalismo, ou do romantismo com que Visconti se encantou nos seus exercícios “de época”, ou, com influências de Branco, a prolongação da “portugalidade do tempo da outra senhora” de Raúl Ruiz.

Contudo, com rasgos ali e acolá, a sua narrativa devidamente esquemática (assinado por Eduardo Brito, o mesmo autor na conversão da obra-prima de Bessa-Luís ao reinado do cinema) expressa um travão a qualquer criatividade fora das quatro linhas, sentimos preso à convencionalidade em um jogo que tem tanto de televisivo (sentimos alojados a um espírito à la BBC) e de uma passividade que nunca exalta devidamente a figura de Howell (apesar de Albano Jerónimo estar em grande forma, como também está Victoria Guerra na sua representação de Elizabeth Siddal, uma das principais musas do movimento Pré-Rafaelitas). E como falou-se em “território televisivo”, e pelo andar da carruagem das nossas produções cinematográficas, não seria de estranhar a passagem de “O Pior Homem de Londres” como série, expandida e adequadamente recortada ao pequeno ecrã.

"A Sibila", obra infilmável?

Hugo Gomes, 11.10.23

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(...) longe estava de imaginar que aquela mulher, intriguista, sorrateira e tão mesquinha de coração quando cismava uma vingança, intentava um lucro, sempre estuante de atividade e ambiciosa de considerações mundanas, ela, tão rasteira como o pó, fardo de malícia e de estultícia incríveis, ela, uma sibila: ela, alguém que sabia, com o único poder da prece, secar um jorro de pranto e soprar novos alentos numa alma esmorecida e gasta.” 

Sublinhamos que nem Manoel de Oliveira, um colaborador de longa data em atribuir imagética aos escritos de Agustina Bessa-Luís, se atreveu a adaptar o que muitos consideram a sua obra-prima - “A Sibila” [publicado em 1954]. Portanto, quatro anos após a morte da escritora, o tão desejado romance finalmente é alvo de uma adaptação cinematográfica, estando Paulo Branco na alçada da sua produção (quem mais?), confiando o projeto a Eduardo Brito, um realizador que, até então, apenas se aventurou em formatos curtas’. Assim, salta para a sua primeira longa-metragem (uma manobra arriscada e, sem dúvida, um tanto suicida), com um argumento trabalhado e idealizado pelo próprio, um episódio pseudo-biográfico de Agustina (como se acredita) e a ascensão e queda de uma mulher, Joaquina Augusta, que, abraçando o extra-natural e fazendo da sua solidão numa impenetrável fortaleza emocional, emancipou-se até adquirir o título de “dona”. 

Carinhosamente ou respeitosamente apelidada apenas de Quina, é uma mulher dotada de um calculismo frio, rígida na forma como mantém relações até perder a crença no terreno, contrastando com uma ideologia própria situada algures entre a charlatanice e o paranormal. Uma personagem e tanto, poderia ser a vilã de muitas histórias, mas é encarada como uma improvável heroína num mundo (e sobretudo num país) dominado por homens. Talvez seja assim que nos é apresentada e realçada: no meio de homens, com a exceção do seu admirado pai, que são ridículos e imberbes, criaturas animalescas e humilhadas pelo peso do estatuto que ostentam na sociedade. O livro, escrito com uma riquíssima prosa, é um relato detalhado da passagem desta “dona” pelo mundo dos vivos, sugerindo as suas afinidades com os mortos, apresentando uma narrativa que percorre episodicamente ponto a ponto nesta vivência, sem com isto assumir-se convencional ou pormenorizadamente esvaziada.

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Já em “A Sibila” [o filme], a narrativa, ao seguir de perto a falsa passada do livro, assume um registo quase trovadoresco, desprovido de conflitos ou clímax (sublinhando, cinematograficamente convencionais). A obra termina da mesma forma como começa, como uma fábula narrada por entre balanços de uma “rocking-chair” (Agustina Bessa-Luís não traduziu no seu romance, como tal, não irei contrariá-la), evocando um tempo distante à beira do esquecimento, cuja única materialidade remanescente, o "império angariado por Quina", funciona como referência desses encontros. Em outras palavras, tudo nos soa como um flashback prolongado e onipresente pela voz de Joana Ribeiro, aqui interpretando Germa, moça sofisticada, observacional e snob graças aos aos ares de uma certa intelectualidade citadina, relegada a um papel secundário na sua própria história. Portanto, há uma tendência de resumo Europa-América na transição de “A Sibila” para o grande ecrã, um mordiscar aos lugares onde esta Quina (Maria João Pinho) enraizou e “apropriou-se” terreno a terreno, até construir o seu domínio tendo como a Casa da Vessada o epicentro da sua influência.

O filme presta-se apenas a servir como acompanhamento visual do próprio livro, não ostentando vida própria para além da espectralidade da sua ligação. Contudo, há dois tópicos pessoais nesta ilustração, sobressaindo a mão de Brito (resistindo em não se revelar anónimo) do que o escrito de Bessa-Luís. O primeiro, e mais evidente (talvez mais estetizado), é o retrato de família, o único, constantemente diagonalizado na sua esquadria, a imagem-chave de uma família nunca linear, marcada pela tragédia, uma maldição, uma profecia ou algo mais banalizado, possivelmente uma simples “estranheza”. A fotografia de reunião é endireitada, contemplada por olhares melancólicos ou de afirmações, por gerações e gerações. 

A segunda vontade encontra-se no vazio cénico, novamente requisitado por Eduardo Brito como um prodigioso veículo para a história contada. Neste aspeto, extraindo do que dele sugere; os corredores apenas percorridos por correntes de ar, aquela cadeira solitária em amplo salão, a casa decadente, a um passo da ruína, sem antes atravessar o seu esquecimento genealógico. É o regresso a "Penumbria", a sua curta de 2016 onde imagina através do nada um ponto geográfico, uma esquecida Atlântida. Em “A Sibilia”, com um cenário sem vivalma, esse “toque” presta-se a ser mais narrativo do que a própria narração. 

Infelizmente, essas marcas não chegam para aliviar o atlante fardo. Poderemos considerar "A Sibila" infilmável? Até agora ... afirmativo.

Caretos e caretices

Hugo Gomes, 21.09.22

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Não menosprezando a “A Herdade” (2019), filme que por vários momentos parece atingir o teto da cinematografia portuguesa no que requer a contrair uma linguagem universal e intermediário nas duas “facções” (cinema comercial sem a capacidade alarvo-televisiva), é uma obra cuja narrativa corresponde ao formato quase aristotélico. Ou seja, de “A” passa para “B”, com o encaminhamento do “C” [o terceiro e último ato]. Esta equação, que devo salientar nada contra, atribuiu um tom convencional ao trabalho de Tiago Guedes, o que por sua vez não encontramos em muita da sua obra, de “Coisa Ruim” (2005) ao “Entre os Dedos” (2008), da “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” (2019) e, o qual não devemos de todo esquecer, “O Coro dos Amantes” (2014) - essa curta-metragem que nos reservou um dos melhores split-screens do nosso cinema. 

Aqui, nesta nova jornada sob a alçada de Paulo Branco (colaboração que o levou a pisar a passadeira vermelha de Cannes na 'Sessão Especial') seguimos numa aldeia transmontana, de localização indefinida, na pisada de uma tradição pagã. O arranque demonstra esse serpentear por rituais, praxes e hinos à masculinidade tóxica legitimada por estas pregadas “entidades divinas”, um cerco de rapazes com rapazes para rapazes, sustentado por violência e desejo de posse. Este evento assume como a cerne dos homens daquela aldeia, uma herança milenar, um pacto de cuspo e sangue, de pauladas e de máscaras de serapilheira. Porém, a nossa introdução naquele mundo termina num acto de marginalização. 

Dá-se uma elipse, um corte abrupto e vários anos passaram num “ápice”, esses marginais, agora “homens feitos” adquiriram novas faces, e bem conhecidas para nós, aliás. Albano Jerónimo, o outrora latifundiário orgulhoso de “A Herdade” é despromovido a “louco da aldeia” (quase como uma peça vicentina, com direito ao seu lugar na Barca do Paraíso), um errante protegido por uma matilha de cães bravios de nome Laureano. Os seus possíveis amigos? Talvez. Do outro lado, mais bem-sucedido, deparamos com Nuno Lopes, Samuel, a figura-chave, de tom corleonesco, daquele sítio. Dois homens, distintos, unidos por uma tradição passada e que em breve serão confrontados pela mesma, reunidos por um crime, um misterioso “whoddunit” que despertará rituais há muito adormecidos. A hibernação terminou.

Os Restos do Vento” passeia-se num campo de minas, de géneros, bem poderemos dizer, aliciados perante nós como aromas primaveris. Ora o folk horror ali … sente-se … o thriller acolá … reconhece-se o tom … e o policial frustrado … soa quase burla, mas “andiamo”. O resultado é um filme resolvido em dar-nos um “universo” (que palavra tão em voga!) a ser explorado, sugerido e imaginado (que becos esconderá estas ruelas?), tal como fora “Coisa Ruim”, essa panóplia de lendas e de folclore num embrulho de cinema de género, cuja narrativa não parte do facilitismo, é uma criatura disforme, não linear, que simplesmente passeia pela sua mostra de “antiguidades”. Ambas as obras apostam maioritariamente no seu ambiente, ou atmosfera, criando um clima temperado e de fluidez moralista (mesmo em resquícios de ambiguidade quanto aos seus meios). Nesse aspecto, “Os Restos do Vento” afasta-se de “A Herdade”, não ansiando a convencionalidade, o novelesco como parece entender. 

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Digo até, que vamos ao (re)encontro da genuína essência de Guedes, do seu cinema de perguntas, e não de respostas, do seu “storytelling” camuflado na portugalidade (seja rural, seja urbana [“Entre os Dedos”], seja geracional [“Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”]), espírito ruminado e pendurado como exibição. Como tal, a história, a sua percepção, é o que menos importa, porque os ditos encontram-se lá, entendidos nos silêncios, nas insinuações, no segredo levado a cabo e porventura decifrado por todos. Por outras palavras, o “whoddunit” que vos falei (“quem matou quem?”) é transcrito para segundo plano, é um elemento instigador da trama, o seu meio, mas nunca o seu derrame, o que interessa é saber de onde esta narrativa vem e para onde vai. Destino? À entrega de uma moral impiedosa. 

Contudo, Tiago Guedes em conformidade com o seu “cúmpliceTiago Gomes Rodrigues, apresentou-nos um argumento nunca cedido ao novelesco, mas que infelizmente trai a sua ideia base - o culto aos “caretos improvisados” como fulcral elemento para a “caçada” - o espectro da violência mundana levado a cabo como quotidiano e sistema de hierarquização. Para essa ligação com a “genese”, faltou-lhe a reencenação da simbologia da mesma, a espinha dorsal vinculada nessa ‘coisa’ de rapazes com os negócios destes agora formados homens. Portanto, a densidade com que esta comunidade rural subjugada a um animado ritual é também ele o nó na corda no clímax do filme. E a prova disso, é a previsibilidade do ato ao invés da sensação de impotência no espectador (caindo no conto do mártir).

É uma outra “festa na aldeia”, retirando o rural da sua ingenuidade ignóbil e ao mesmo tempo não mergulhá-la na selvajaria provinciana. Uma aldeia como tantas outras, onde Lisboa, esse prometido oasis, é adiado por via de tragédias que movimentam a sua obscura História. Novamente, Guedes procurou em “Os Restos do Vento” as “coisas ruins” de um Portugal oculto, sem com isto deixar-se encantar pelos mesmos. Género ou não, é a passagem como rito de emancipação, o filme que reivindica o cinema seu depois do “A Herdade”.