Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A Caixa de Pandora: Entre os mortais e os desvanecidos

Hugo Gomes, 15.05.21

MixCollage-05-Oct-2024-12-47-PM-7639.jpg

O ascendente espaço de comunhão

A experiência é conhecida e mais que sabida: o físico austríaco Erwin Schrödinger, hipoteticamente, fechou um gato com um frasco de veneno ao seu dispor no interior de uma caixa. Até à abertura da mesma, lançou-se a hipótese do gato estar vivo como estar morto, sendo que ambas realidades coabitam, naquele preciso momento, no mesmo espaço. Este conjunto de possibilidades tornou-se a base de muita tese quântica ou até extradimensional, aqui encaremos o experimento como um paradoxo, mas fora isso, assumimos nele os contornos da espiritualidade. Imaginemos então o gato enclausurado no interior daquela caixa, atribuímos a este animal a consciência da sua prisão e mais ainda, da sua iminente morte, o veneno engarrafado prestes a ser partido. No sentido poético, há aqui uma resistência ou uma cedência da sua vida, mas uma ‘coisa’ é certa, aquele espaço, cúbico, torna-se no seu tormento.

Saímos então do Gato de Schrödinger, e passamos para outro caso, Elisa Lam, estudante canadiana, cujo corpo foi encontrado no reservatório de água de um hotel dos EUA, em 2013, após as queixas de um cliente com o “sabor estranho” da água canalizada. O caso ganhou mediatismo após a polícia ter divulgado as últimas imagens de Lam viva, a de uma câmara de vigilância no interior de um elevador. Nesta mesma, a jovem demonstrou um comportamento bizarro, amedrontado e gesticulando uma conversa com, o que aparenta ser, ninguém. O vídeo alcançou popularidade após ter disseminado nas redes levando às mais variadas teorias, desde transtornos psíquicos em Lam, até a manipulação digital do mesmo, e como não deveria deixar de ser, a presenças sobrenaturais.

Tão “normalizados” na nossa sociedade, é bem verdade que os elevadores são hoje uma fobia comum, diversas vezes alicerçados à claustrofobia. Um cerco espelhado, onde as inúmeras possibilidades são ali refletidas. Como o gato de Schrödinger, convivemos com os nossos medos, frustrações, a nossa existência em geral, até este turbilhão ser interrompido pelo alívio da abertura de portas. O nosso piso, a nossa satisfação por termos sobrevivido. E os elevadores preenchem esse imaginário de terror, desde whodunits sobrenaturais com a marca de M. Night Shyamalan (“Devil” de John Erick Dowdle, 2010) até a defeitos tecnológicos que atribuem uma vida assassinada a estes mecanismos (“De Lift” de Dick Maas, 1983), um ambiente perfeito para temores.

7d3094a3-01e0-4b40-a4a8-c28a58d1032e.tmp

Elisa Lam

 

Pedro Costa e o terror

Por um lado, colocamos de parte toda a temática de elevação ao terror (não confundir com o termo agora bastante em voga, “elevated terror”), e seguimos para a edição de 2020 do MotelX: Festival Internacional de Cinema de Terror em Lisboa. No seio da pandemia, o evento cultural e terrorífico que atingiu o 14º ano, apresentou Pedro Costa como homenageado na sua rubrica de cinema português de género, o Quarto Perdido. Escolha improvável para um festival que recebeu no passado nomes como George A. Romero, John Landis, Ruggero Deodato, Dario Argento e Tobe Hooper, que como se pode confirmar, realizadores inteiramente focados no consolidado género do terror. Pedro Costa soava como um “objeto estranho” nesta seleção, porém, defendido com garra por um dos integrantes da direção do festival, João Monteiro, relembrando os tempos da CTLX: Cineclube de Terror de Lisboa, em 2005, quando foi programado “Ossos” (1997).

“Na altura recebemos emails e as pessoas achavam que éramos atrasados mentais. Agora que Pedro Costa venceu o Festival de Locarno [“Vitalina Varela”], as marcas do cinema zombie – não o de Romero mas sim de Tourneur – continuam a prevalecer e a marcar a estética da obra daquele que é, provavelmente, o cineasta português mais importante no mundo“.

Todavia, mesmo confessando as influências do cinema de Jacques Tourneur na sua carreira, Costa despreza o termo ”zombie” para caracterização das personagens que partilham o seu universo cinematográfico, mesmo que, em tempos, sob a chancela de Paulo Branco, tentou filmar uma reinvenção de “I Walked with a Zombie” (Tourneur, 1943) em Cabo Verde, um feliz fracasso que originou “A Casa da Lava” (1994).

É uma conversa sem pés nem cabeça, uma conversa estúpida que a maior parte das vezes vem dos críticos eruditos (…) Dizer que qualquer pessoa que adormece ou acorda, está transtornada ou deprimida, é um zombie… Não é! Esta conversa agora ofende-me mais porque toda a gente que vive para além de Benfica é zombie. (…) Posso imediatamente contrapor a palavra condenada. Parece-me mais justo, mais certo. A Vitalina e o Ventura são pessoas condenadas desde o princípio como os outros que vêm nos barcos. Assim que a Vitalina entra num avião da TAP para vir para cá, seja porque razão for, está condenada. Está amaldiçoada por todos. Passar disso para um zombie, um fantasma… Ela não é um fantasma. Ela tem 58 anos, não tinha papeis há um ano. Foi dificílimo chegar aos papeis da Vitalina. Foi um ano inteiro durante as filmagens para o Marquês de Pombal. (…) Sei por experiência, na Cova da Moura, na Damaia, nas Fontainhas, na periferia eles sabem que são capazes de fazer as coisas e até de concorrer com o Brad Pitt. Não são zombies nenhuns, são grandes trabalhadores. Pessoas muito vivas."

O paradoxo aqui, talvez o Gato de Schrödinger nesta situação, é um autor influenciado por um cinema género e que por sua vez não assume como tal, e um ambiente exterior que encontra na sua cerne a ambiência e as propriedades prototípicas de um filme de terror. Para tal, devemos embarcar na lógica do que é, e o que torna, realmente um filme de terror num filme de terror?

ea96d23c-3c28-4fe4-ade8-ca6a4b068a0b.tmp

A Casa de Lava (1994)

 

Cinema de terror? Não pode!

No livro “Horror”, de Brigid Cherry, na tentativa de definir o cinema desse género, reconheceu que dentro de variedades temáticas, estéticas, formais e mesmo afetivas, o terror levita e evolui de geração para geração encontrando os seus ciclos, estilos e movimentos. Nesse efeito, a aproximação da definição é que este cinema usufrui da sua atmosfera para transpirar emoções, que vão desde os sustos, à inquietude e ao medo. É o detalhe que poderá extrair “Sweet Exorcist” (2012), a curta de Costa para o projeto “Centro Histórico” (que para além do cineasta reuniu outros nomes formidáveis como Aki Kaurismaki, Victor Erice e Manoel De Oliveira) e que mais tarde integrou a longa “Cavalo Dinheiro” (2014), como um objeto respeitante às convenções do terror enquanto género.

Sweet Exorcist", ou “Lamento da Vida Jovem”, remete-nos a Ventura (personagem / personalidade recorrente no cinema de Costa) “perdido” num ascensor para “nenhures”. No seu interior encontra uma figura bélica e colonialista, e acima de tudo espectral, um fantasma de um passado que o nosso protagonista conhece muito bem. “Viveste muitas mortes Ventura”, uma das frases impactantes ouvidas dos lábios emudecidos e imóveis deste espírito atormentado. Ventura é também ele vítima deste embate entre diferentes mundos, perdendo na realidade por vezes imposta pelo ser. Dito desta maneira e jogando nos contornos sobrenaturais, “Sweet Exorcist” soa-nos como um exercício de terror, não necessariamente correspondendo à sede gore e sanguinária que o senso comum guia eventualmente, mas do confronto entre reinos opostos, mas interagidos com diferentes noções de realidade. O elevador torna-se no vínculo para essa coexistência, assim como o Gato de Schrödinger que se deparou numa hipotética caixa a questionada dualidade.

Há que fazer o parêntesis que nem sempre o terror respondeu às necessidades mercantis dos sustos fáceis [“jumpscares”], vísceras e lâminas, o diálogo entre sombras (menção aqui não foi ao acaso) afirmou-se, em tempos, num dos ingredientes fulcrais para o êxito de “The Exorcist” (1973), o badalado filme de William Friedkin com inspiração no best-seller da autoria de William Peter Blatty. Nessa obra o grande climax é, nada mais, nada menos, que a conversação entre dois seres de terrenos antípodas, Padre Merrin (Max Von Sydow) e o demónio autoproclamado de Pazuzu que tinha como canal de transmissão a pequena Regan (Linda Blair), o quarto onde decorre o dito exorcismo transforma-se espectralmente em algo mais que uma mera assoalhada, um espaço de reunião entre as duas realidades. Aquele lugar não é mais um lugar, converteu-se numa incerteza espacial.

Costa, por sua vez, transfere essa interdimensionalidade para a sequência do elevador, Ventura [vivo] debate-se com a morte, enquanto que o Morto ostenta a sua vivacidade. As duas entidades são transferidas para um limbo, um lounge neutro para com as suas existências (ou falta delas). Anos mais tarde, no seu “Vitalina Varela”, a personagem-título, uma viúva cinquentona que regressa a Lisboa para se reencontrar com o seu falecido marido, tenta contactar o espírito do seu sucumbido homem através de uma língua colonialista (o “português”). O espectador não vê, mas adquire a noção automática de que quando Vitalina utiliza o português na sua (suposta) solidão, o fantasma do seu ente marca presença no mesmo espaço. Ela não está sozinha e a constante invocação remete a área, tal e qual o elevador de “Sweet Exorcist”, numa conferência comum entre mundos.

the-exorcist.webp

The Exorcist (1973)

Podemos com isto crer que existe em Pedro Costa a subtileza e a sugestibilidade que fizeram Tourneur, o seu padroeiro, num dos exímios operacionais do cinema de género, apesar de orientar num cinema plural e de conotações várias. De igual maneira que “Stars in my Crown” (1950) o é para Costa.

“Não é um filme de terror, também não é um western. É um semi-western sobre um pastor no oeste numa pequena aldeia. Há duas coisas que acontecem: há uma peste, um miúdo que bebe água e aquilo propaga-se. E há um milagre – uma pessoa que está muito mal com essa maleita e ressuscita. (…) Tourneur soube trabalhar os géneros, porque é um filme sobre uma peste, como é que a coisa se infecta, mas não só a peste, também o racismo.”

O nosso amor vem do Mundo que nascemos e daquele que integramos ao crescer”, e é com esta citação do filme, aliás, o derradeiro filme, do realizador “maldito” Jean-Claude Brisseau - “Que le diable nous emporte” (2018) – que me concentro na essência de Costa enquanto cineasta. “Aprendendo” com os mestres da sua cinefilia, é certo que manejar os diferentes géneros numa só pasta embutida, na ideia de fazer um filme, que não o filme imaginado, mas que se assume como um outro filme. É certo que Pedro Costa emana o cinema de terror apropriando-se dos seus códigos comuns, mas contrariamente implementando em telas divergentes. O terror deixa de ser terror e simultaneamente o é, enquanto isolado e interpretando à luz desses mesmos códigos. Com isto prova-se que a questão de géneros só tem utilidade quando expostos num panorama mercantil, um chamativo pavloviano de apelo de conformidades algorítmicas.

 

Elevadores uma ala para outro mundo (e entre mundos)

Desta maneira tentamos o seguinte exercício, pegar num outro exemplo em que o elevador torna-se essa passagem partilhável entre viventes e mortos, e esclarecer os códigos que encostam “Sweet Exorcist” ao terror convencional. O filme em contraposição é “The Eye” (2002), horror à moda de Hong Kong dos irmãos Pang, a história de uma mulher cega que recebe um transplante córneo e após essa cirurgia começa a testemunhar entidades não pertencentes ao seu próprio mundo. Em uma determinada cena, já consciente da anomalia que a sua visão apresenta, a protagonista depara-se com um “fantasma” (chamaremos assim) dentro do recinto do elevador do qual tem que aceder.

O confronto entre vivo e morto neste caso apresenta-se na mesma plenitude de “Sweet Exorcist”, a dominância do espírito perante a mortalidade de Ventura, recolhido ao seu medo e dúvidas. Por sua vez, o temor desta jovem, de costas voltadas para o seu fantasma, uma sequência de tensão sob os ensinamentos hitchcockianos (aqui vemos o espírito malicioso a aproximar lentamente da "vítima", o espectador tem todo o conhecimento dos elementos), torna a viagem lenta e angustiante, mesmo que este anti-”jumpscare” desenrola em apenas 4 minutos, enquanto que Ventura lida com a sua assombração em pouco mais de 20 minutos.

The_Eye_(2002)_by_Pang_Brothers.png

The Eye (Danny Pang & Oxide Chun Pang, 2002)

As viagens ascendentes fazem seguir por aí, Ventura e o seu soldado tornam-se líderes daquele espaço, “esmagados” pelo som do ligamento de aço que os ascendem e do vazio impactado no cubo metálico, e por sua vez, interagem com o tempo de maneira oposta com a de “The Eye” (cujo tempo é medido pela localização dos andares), possivelmente exaltando ainda mais o cenário como cápsula de um outro registo temporal, quântico e sucessivamente espiritual.

“O Tempo governa o reino da interioridade, no qual tanto a subjetividade quanto a lógica, o privado e o epistemológico, a autoconsciência e o desejo, devem ser assumidos.” Friedric Jameson

O Gato de Schrödinger mais uma vez! Ventura vive entre os mortos ou Ventura morre entre os vivos. Conforme seja o estado, se é que iremos saber o seu (real) estado, “Sweet Exorcist” é terror para alma, nele sentimos as mesmas piscadelas que um exemplo assumido como “The Eye” evidencia, tememos por Ventura, pela sua integridade, psicologia e até mesmo vida. Em termos semióticos, o quadro respeita as linhas, as pinceladas, por outro lado, encaminharam o ensaio para uma outra direção. Contudo, ambos se complementam com um medo comum, supersticioso e expressivamente idealizado. Após o fecho de portas, o espaço limitado do elevador recebe passageiros vindos de todo o lado (e não somente da fisicalidade), uma redoma quadrada onde duas faculdades se tornam possíveis.

Sweetexorcist5.jpg

Theeye2.jpg

Sweetexorcist4.jpg

Theeye4.jpg

Sweetexorcist.jpg

Theye3.jpg

Sweetexorcist2.jpg

Theeye1.jpg

Sweetexorcist3.jpg

Theye5.jpg

Sweet Exorcist (Pedro Costa, 2012) / The Eye (Danny Pang & Oxide Chun Pang, 2002)

Conspiração Macedo

Hugo Gomes, 30.10.17

Nos-Intersticios-da-Realidade-ou-o-Cinema-de-Anton

Para João Monteiro, existiu uma “conspiração”, uma tentativa de fazer esquecer aquele que, para além de ter desafiado um regime e uma religião, insurgiu-se com a forma de fazer cinema em Portugal. António de Macedo, um dos nossos raros exemplos de cineastas do cinema de género, foi esse rebelde, um corpus de estudo neste filme que visa procurar as causas do seu (in)voluntário afastamento, assim como a rendição de certos e velhos inimigos (António-Pedro de Vasconcelos).

Monteiro, um dos programadores do MOTELx, encontrou na figura assombrosa de Macedo um motivo para as inúmeras edições da sua mostra, com foco na secção Quarto Perdido, que consistia em “vasculhar” em arquivos por filmes que Portugal esqueceu, muitas vezes não por querer, mas sob derivações de forças maiores. Depois do trabalho terreno, Monteiro comprimiu toda a sua investigação e concebeu-a num formato de documentário. Um formato sem forma, assim por dizer, de molde televisivo com rigor jornalístico, mas esquivo no que refere à linguagem cinematográfica. Mas, em todo o caso, o objetivo não foi a construção de um documento expressivo com “garra” de transgredir toda uma arte. Falemos de “Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo” como um exemplar recheado de uma certa motivação de ativismo, com ansiedade de ser sobretudo ouvido, neste caso, visto e refletido.

Não é só o legado de Macedo que está em causa aqui. Monteiro, seguindo esta via, questiona todo um Cinema que foi direcionado por uma única vaga de pensamento. Até certa altura culpa-se os “godardianos”, os seguidores fundamentalistas do cineasta francês, de tamanha importância histórica (vamos ser fatuais), cuja imagem tornara-se iconoclasta, divindade acima de cinéfilos esclavagistas. Macedo tem palavras fortes para todo este movimento e a Jean-Luc Godard em particular, neste seu holofote. E refletindo nesse “todos querem ser um novo Godard” percebemos no estado que o nosso cinema parece ter atingido atualmente, um pensamento meta indiciado por um filme tão disforme, quase centralizado a um lado pedagógico, sobre um dos realizadores mais interessantes e dedicados que Portugal soube alguma vez produzir. 

O "menosprezo" da importância do cinema de investigação

Hugo Gomes, 25.10.17

image.jpg

Quem é Bárbara Virgínia? (Luísa Sequeira, 2017)

Há uma vertente que levemente tem surgido no panorama do documentário português, uma vertente jornalística, não a de mera entrega de informação, mas de investigação. Essa no qual poderá denotar o pessoal (identitário) ou coletivo (demanda para a divulgação, preservação de memória). Este tipo de documentários, que se prolongam ou evitam o cinema como mera lente de documentação de imagens (que porventura poderá anexar-nos a memórias etnográficas e épicas), não são de todo bem vistas na comunidade-nicho da cinefilia. Há quem os acuse de aligeirar o poder e possibilidades (de momento infinitas) de Cinema, desde a sua narrativa até ao estilo intrínseco e extrínseco, porém, e tendo em conta a muita da seleção presente de um Doclisboa, poderemos considerar esta “básica” forma de fazer documentário num registo outsider e porque não, na maioria dos casos, mais experimentais e concisos na sua abordagem.

Como exemplo desse cinema-investigação, Catarina Mourão elevou-se numa busca ínfima de autodescoberta com “A Toca do Lobo”, onde seguiria o paradeiro do avô da realizadora, figura que não conhecera por completo mas que deixou marcas. A realizadora / documentarista apresenta-nos um objetivo claro na sua proposta (“descobrir quem é este homem”), convite claro que o espectador retém no seu arranque, a viagem, essa, vinculada num híbrido entre a investigação propriamente dita e a deambulação pelas memórias pessoais. Em todo o caso, porque não reconhecer “A Toca do Lobo” como um objeto no limiar do intimismo e da retribuição social.

De estética pessoal, mas de caráter mais urgente, está “Quem é Bárbara Virgínia?”, de Luísa Sequeira, outra investigação [presente nesta edição do Doclisboa] que regista um pedaço de História portuguesa, neste caso Bárbara Virgínia, a multifacetada artista que se tornou na primeira mulher realizadora nacional, atualmente “apagada”, é o corpus de estudo que despoleta uma tremenda jornada de conhecimento pessoal com vista maioritária para o público e memória futura na “salvação” deste personalidade. O objetivo neste caso encontra-se no título (Quem é Bárbara Virgínia?). O espectador tem com isto a certeza do que vai encontrar, a proposta é clara. Quanto à forma como a mensagem é emitida, essa tem a sua razão de divergir dos moldes, digamos, televisivos. Luísa Sequeira consegue sobretudo uma investigação com uma apresentação intimista, até porque esta procura torna-se, para todos os efeitos, bastante pessoal (apercebemos o quanto a imagem de Bárbara Virgínia transgride da meta de estudo para a transferida pessoalidade numa determinada sequência, a anunciada morte de Virgínia e a reação da nossa documentarista perante tal).

34892_46297_86347.webp

Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo (João Monteiro, 2016)

Porém, talvez de caráter urgente acima da sua pessoalidade, temos “Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo”, de João Monteiro, uma contagem de linguagem televisiva que visa em projetar o legado de Macedo e apurar as causas do seu “desaparecimento”. Obviamente que este documentário completamente destilado por entre footages e talking heads possui um propósito de preocupação pública e patrimonial, mas se o considerarmos como um objeto cinematográfico de requinte, a sua pobreza não o exaltará como algo mais. Contudo, o objetivo de Monteiro é mais do que simplesmente integrar uma teoria estilística, social e cinematográfica, é como um apelo, um ato ativista, esse, que poderá originar consequências futuras, quem sabe, a revalidação absoluta de Macedo, não simplesmente como tentador do cinema de género em Portugal, mas como cineasta. Estes três exemplos recentes de documentário português, uma minoria perante a divulgação dos festivais, formam um cinema de causa-efeito, a investigação como uma narrativa que não deve ser sobretudo desprezada.

O outro cinema, com exceção de alguns casos que conseguem através dos seus meios desbravar a sua linguagem, apresenta-se como máscara, escondendo a incapacidade e o amadorismo de muitos “documentaristas” pretensiosos, em busca do caminho fácil do estatuto autoral. Esse anti-cinema não deve ser sobretudo erguido como o Cinema, assim como o cinema na sua forma mais clássica, universalmente empática, não deve ser rebaixado a anti-cinema.