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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Falando com Carla Maciel, de "Légua" à condição de atriz: “temos que resistir, resistir, resistir, resistir, resistir”

Hugo Gomes, 22.06.23

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Légua (João Miller Guerra & Filipa Reis, 2023)

"Sou uma atriz com os pés assentes na terra", assegurou-nos Carla Maciel, uma atriz presente no "mercado" (vamos chamar-lhe assim) há mais de 30 anos, recorrendo às mais diversas formas de arte, seja num palco ou num pequeno e grande ecrã, vivendo sem ilusões, mas com ambições em relação à sua performance e ao seu compromisso artístico.  E é com "Légua", a nova longa-metragem da dupla João Miller Guerra e Filipa Reis (a estrear dia 19 de junho nos cinemas portugueses), que finalmente encontra um papel de protagonista, embora não de forma unilateral, uma vez partilha o holofote com a "não-atriz" Fátima Soares, numa espécie de bailado de corpos em decadência. Aceitando o convite do Cinematograficamente Falando…, Maciel participou numa conversa sobre esta sua experiência, abordando temas que vão desde o performativo até às questões geracionais e sociais, bem como o seu percurso enquanto atriz. Mais uma vez, destacou o seu caminho, que foi trilhado a custo de muito trabalho, resistência e sensatez.

A Carla encontra-se neste território [o Cinema] há anos, mas só agora é que se tornou protagonista, isto sem contar com a curta assinada por João Lopes - “Luís” - onde dava ‘corpo’ ao Camões.

Sim, de facto. Acredito que, após 30 anos, finalmente conquistei um papel principal. Mudar no cinema não é fácil e depende muito dos realizadores não assistirem aos filmes de outros realizadores. Por padrão, acredito também que os realizadores não frequentam muito o teatro, pois veem o teatro de uma forma ... Não é que não gostem, mas não se identificam com a sua linguagem. Normalmente, consideram os atores como detentores de uma interpretação exagerada, pois é uma linguagem distinta a do cinema. A menos que o teatro seja um pouco mais intimista. Portanto, não costumam ir muito ao teatro para ver, nem repescar os atores. Acredito que isso tenha sido uma das coisas que desmistifiquei neste filme, inocentemente digamos. Porque o João e a Filipa preferem trabalhar com "não-atores" ou "atores não profissionais"...

Sim, eles preferem esse termo, “atores não profissionais” …

E a juntar isso, o facto de trabalhar maioritariamente com elementos documentais. Acredito que os convenci de que há atores capazes de fazerem excelentes trabalhos de forma subtil, leve, como eles desejam, e também, ao mesmo tempo, de forma livre, estando disponíveis e abertos ao que os realizadores pretendem. Normalmente, eles têm sempre a ideia de que o ator vem completamente preparado para o papel, definindo as suas regras e limites. Isso depende dos atores. Portanto, é necessário fazer castings ou conversas com os atores para perceber se estão disponíveis para o projeto em questão. Para o que estão a fazer. E sim, este é o meu primeiro protagonista e estou mesmo muito feliz por ter, pela primeira vez, conseguido estar num filme do início ao fim [risos], o que é muito importante para um ator, poder sentir o filme, sentir o papel, sentir a evolução, o arco dramatúrgico. Foi muito libertador trabalhar nesse sentido.

Neste papel, vai contracenar com uma "não profissional", que é a Fátima Soares. Ao falar sobre a sua liberdade enquanto artista, gostaria de referir que este é um filme muito performativo, culturalmente performativo. Começamos "Légua" consigo alegremente a cantarolar "Fruta Fresca", e depois temos um vislumbre do seu corpo jovial em contraponto com a decadência da Fátima. Existe uma consistência corporal presente. Também é importante destacar o facto de contracenar com uma "não profissional", como fez, e trabalhar nesse seu papel.

Quando aceitei verdadeiramente este projeto, a Filipe e o João foram muito específicos e abertos, demonstrando muita sensibilidade. Tornou-se claro que estaríamos disponíveis para explorar várias versões e abordagens. Estudei profundamente o papel, questionando-me sobre como retratar essa mulher inspirada na pessoa que trabalhou na casa do João Miller. Realizei uma imersão, trabalhando tanto o estado físico quanto emocional da personagem. Sempre tive em mente a Celina, a pessoa que me inspirou, mas também quis imprimir o meu toque pessoal. Em suma, desejei emprestar a minha essência à personagem, usando as minhas próprias experiências e vivências. Como ator, é isso que fazemos: utilizamos as nossas ferramentas para dar vida à personagem e servi-la da melhor forma possível.

Trabalhar com a Fátima foi como embarcar numa montanha-russa, nunca sabendo o que esperar. Foi um desafio para mim, pois nunca tinha trabalhado com uma pessoa “não-profissional”. Essa experiência também me permitiu ser menos metódica, não ficar presa a pensamentos excessivos sobre as cenas, já que era a personagem principal e desejava interpretá-la da melhor maneira.

Permite-me ter liberdade e deixar-me levar pelas indicações do Miller e da Filipa, assim como pela própria Fátima. Foi importante perceber e escutar atentamente, pois isso faz parte do trabalho de um ator: escutar o outro. Estive sempre muito atenta, e acredito que essa atenção tenha se refletido na minha interpretação. A personagem servia intensamente a outra personagem, e acredito que, de forma inconsciente, também fiz isso na realidade, durante a interpretação. Estive sempre a servir a Fátima e o filme como um todo, por meio das ações. O "Légua" realmente destaca essas ações, mostrando os cuidados que uma mulher tem com outra, com delicadeza, poesia nos movimentos e amor dedicado a essa relação entre duas mulheres, uma mais velha e outra mais nova.

Acredito que alcançamos esse objetivo, e digo isso sem falsa modéstia, pois é a realidade. O filme realmente conseguiu destacar esses cuidados de forma bela e poética. Trabalhar neste filme foi extremamente gratificante para mim nesta fase da minha carreira, com 30 anos de experiência. Foi um novo desafio deixar de lado a preparação prévia detalhada e mergulhar completamente na atmosfera daquela casa no campo.

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Légua (João Miller Guerra & Filipa Reis, 2023)

Além disso, já tive experiências anteriores relacionadas ao tema, pois minha mãe foi cuidadora de pessoas mais velhas. Cresci imersa nessa linguagem do cuidado, pois ela trabalhava como auxiliar no Hospital São João e, mesmo após se aposentar, continuou a cuidar de idosos. Portanto, esse filme é uma homenagem à minha mãe, que infelizmente já não está mais aqui. Ela faleceu durante a pandemia e foi uma grande fonte de inspiração para mim. Ela costumava dizer que ninguém quer cuidar dos idosos e que as pessoas não têm paciência para eles. Essa mentalidade é prejudicial para o futuro, afinal, todos nós vamos envelhecer e planejamos nosso próprio futuro, não querendo nos tornar um fardo para os nossos filhos, considerando eventualmente a possibilidade de ir para um lar. Infelizmente, os lares ainda não são devidamente valorizados; falta amor e carinho neles. Os idosos são frequentemente desvalorizados devido a preconceitos sobre possíveis odores desagradáveis que possam ter.

Eu mesma costumava pensar dessa forma: de que os idosos cheiram mal, enquanto os bebês cheiram bem. Essa ideia estava enraizada em mim, baseada nas experiências e referências da minha vida pessoal, e isso foi algo que entreguei à personagem. O trabalho no campo também foi algo que vivenciei quando adolescente, por meio de uma amiga que vinha de uma família de agricultores. Passei minhas férias de verão ajudando-a no campo. Portanto, eu tinha essa conexão com o campo também. Esse papel realmente foi... Se não fosse para mim, teria que ser para alguém que tivesse essas referências. Era necessário que fosse alguém que soubesse do que estava falando. 

Quando li o guião, pensei: "Eu faria isto muito bem". E isso é algo raro de acontecer para um ator. De repente, olhas para um guião e pensa: "Uau, eu faria isso muito bem, nem precisaria me esforçar tanto". É algo natural, não forçado. Claro que não disse isso diretamente à Filipa e ao Miller, obviamente, mas senti essa conexão ao ler o argumento. Identificava-me com aquilo, conhecia esses sinais, essas rotinas, esses detalhes do cuidado com uma pessoa mais velha, porque também cuidei do meu pai quando ele estava doente. Portanto, todas estas ações estavam entranhadas em mim de forma instintiva e espontânea.

Pegando nessa frase da sua mãe, "ninguém quer tomar conta de velhos", e sabendo que “Légua” presta uma homenagem aos cuidadores voluntários, também aborda a história de três gerações diferentes de mulheres e os valores que as separam. No seu caso, por fazer parte da geração "do meio", a sua personagem torna-se uma espécie de mártir. Ela é consumida pela gradual não-existência de Fátima, mas, ao mesmo tempo, o filme dá-lhe a liberdade de manifestar a sua própria presença. Pode-me falar destas presenças e das suas respectivas relações com o mundo que as rodeia?

Essas mulheres estão a desaparecer. As mulheres que cuidam das casas. As mulheres possuíam um espírito de sacrifício, partindo de um ensinamento antigo. Cresci com uma mãe e um pai que nos ensinavam a seguir os nossos sonhos, a fazer aquilo que gostamos, mas advertindo que existem momentos em que temos de fazer sacrifícios pelos outros, ou seja, olhar para o próximo. Muitas vezes, em prol do outro, prejudicamo-nos. Aprendi isso muito bem e tento transmitir essas lições aos meus filhos. Não é que eles devam prejudicar-se ou fazer isso frequentemente, pois isso criaria um culto de vampirismo em relação a certas pessoas, e esse não é o propósito. Mas sim, quando sentimos que, por mais que falemos da história, que a personagem da Fátima tenha sido má (porque assim foi construída), a personagem da Ana não a quis abandonar. Ela poderia ter tido uma vida melhor com o marido lá fora. Podia ter ido com ele, mas acabou por abdicar da sua própria felicidade para cuidar dela, porque também se envolveu nessa situação.

A gratidão é, de facto, muito importante, não é verdade? São valores que estão a perder-se nos tempos de hoje, também como o espírito de sacrifício e até mesmo o amor pelo próximo. Estes valores estão a desvanecer-se à medida que as pessoas se tornam mais individualistas, mais centradas em si mesmas. Parece que dizem: "Não me importo com os outros, só quero avançar e ir mais longe". Estes ensinamentos têm um significado profundo para a Ana, e ela deseja transmiti-los à sua filha, mas esta não os compreende completamente, uma vez que pertence a uma diferente geração. Uma geração que já não dá tanta importância a possuir uma casa, já que vivem em vários lugares. O tema da família já não é tão valorizado como antigamente. São gerações que ainda desejam ter uma família, mas estão mais focadas na construção pessoal. Assim, existem aspectos positivos nessa evolução, mas também se perdem valores fundamentais nas relações com os outros.

Quanto à Ana, apesar de mártir, ela também encontra a sua emancipação no preciso momento em que recusar ir com o seu marido para a França. Ela gosta de ali estar, daquele sítio, que lhe faz bem, e entre ir limpar “a merda dos franceses”, como diz a certa altura no filme, e ficar ali a tomar conta da ‘velha’. Ela acaba por escolher a ‘velha’, porque esta sempre lhe fez algo, a ajudou durante muitos anos a criar os filhos enquanto o marido estava na França. Não pretende deixá-la sozinha, portanto, é uma questão de lealdade e de princípio ético. Ela também não a quer porque ela gosta do cão, gosta das flores, de estar naquele sítio que a faz sentir bem.

E, portanto, há aqui uma tomada de posição da Ana. Ela decide, tem o poder de decisão ali. Isso também é importante no filme, pois para ela, como mulher, é um passo acima, está a evoluir de alguma forma. 

Conversei com o João Miller Guerra em três ocasiões diferentes, e m todas elas me falava de um projeto sobre o fim da ruralidade. Ou seja, a desertificação destas áreas. E neste caso, você é a mulher cujo marido vai para outro país e a filha muda-se para a cidade, contudo, a sua posição é ali. O plano final do filme é da agência imobiliária pendurando na fachada da casa, naquele campo de batalha, uma placa de “Vende-se”. Por outras palavras, indiretamente, “Légua” é o tal desertificação rural …

Para dizer a verdade, eu agora coloco em causa esse “fenómeno”. Tenho notado que muita gente da cidade está a procurar um cantinho rural. Houve uma altura em que pensávamos que essa tendência ia desaparecer, mas depois da pandemia comecei a perceber que muitos gostam da vida no campo, e não só pelo bem-estar psicológico, mas também como uma espécie de investimento, uma forma de poupança. Se algo acontecer, sempre teremos uma casa com algum terreno. Acredito que a pandemia não acabou com a ruralidade como pensávamos. Quanto às pessoas cuidarem das casas, acho que já não há muitas disponíveis para alugar. Os chamados caseiros estão em extinção. 

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Légua (João Miller Guerra & Filipa Reis, 2023)

Mas isso não poderá ser causado com a gentrificação de algumas cidades?

Sim, é verdade. Lisboa está a empurrar os seus habitantes para “fora”, e estes “deslocam-se” para as periferias. Por sua vez, as periferias estão a ficar cheias, e as pessoas acabam por encontrar um cantinho mais afastado. Mais de 90% dos jovens estão a perceber que se sentem bem lá, na verdade. Daqui a uns anos, Lisboa pode estar vazia. Não sabemos, mas é o mais provável, considerando as dificuldades em encontrar ou alugar uma casa neste momento, especialmente para os jovens. Por isso, que estes veem a casa como algo flexível. Não é um lugar fixo, como costumava ser nos anos 90, ou como os meus pais viam nas décadas de 60, 70, 80 e 90. Agora, com as oportunidades no estrangeiro, os jovens não pensam mais "ah, vou sair da faculdade e comprar uma casinha". É difícil. Por isso, talvez não seja o fim da ruralidade como pensávamos. O que achávamos que ia acontecer.

Sobre essa frase que proferiu há bocado - “sou uma atriz com os pés assentes na terra” - gostaria lhe colocar uma questão, talvez mais abstracta mas isso poderá a abordar por onde quiser, e do facto de estar presente, há vários anos (devemos salientar) nas três plataformas - cinema, teatro e televisão - como é ser atriz em Portugal?

Há muita resistência. Como a Nina diz na peça de Tchekhov - "A Gaivota" - “temos que resistir, resistir, resistir, resistir, resistir”. Não é fácil, como costumo dizer aos jovens que estão a começar e a trabalhar comigo, se realmente gostas disto, tens que resistir. Agora, com o aumento das plataformas, das redes sociais, tudo está a mudar rapidamente, é tudo muito mediático, tudo gira em torno dos seguidores. Mas quando queres fazer um trabalho consistente, começas pelo teatro, vais gradualmente entrando no cinema e na televisão. São todas linguagens diferentes.

Acredito que o teatro amador contribuiu muito para esta época. Comecei muito jovem, a cantar, tinha um grupo de música popular e fazia teatro amador com o meu pai nas freguesias. A ideia de atuar nas freguesias e nas coletividades pode parecer um pouco modesta, mas não é. Isso nos dá força, porque percebemos o quão difícil é ser ator em Portugal. Ou atriz em Portugal, especialmente para as mulheres, quando queres seguir um caminho sério e mostrar o teu trabalho, sem ter um nome conhecido, sem seres filha de alguém famoso, sem ter sangue azul, sem ter conexões especiais.

Portanto, quando és uma pessoa completamente desconhecida e decides sair da tua zona de conforto e aventurar-te, a regra é nunca desistir. Não vou dizer que foi fácil. Em 2000, deixei o Porto e vim para Lisboa. Tentei de tudo, fiz revista, explorei todas as oportunidades. Sou uma atriz versátil e posso orgulhar-me disso, a vida me ensinou a ser assim. Tive que me desenrascar, porque não tinha dinheiro nem recursos. Não pude estudar em Londres ou na França, como gostaria, se tivesse ido para lá aos 18 anos, hoje certamente não estaria aqui. Tenho consciência disso e sei o meu valor. Daqui a 30 anos, não subestimarei as minhas capacidades. Trabalho muito, escuto muito, e gosto de colaborar com pessoas que me estimulam e me desafiam. Nesta fase da minha vida, não tenho tempo para más vibrações. Prefiro envolver-me em projetos onde também seja valorizada, porque valorizo muito os projetos em que me envolvo.

Sou alguém que se entrega a 200%, e quem trabalha comigo pode confirmar isso. Vim do Porto para Lisboa em 2000 e enfrentei inúmeras adversidades, fiz cerca de 400 audições e consegui apenas uma. Às vezes, quando os jovens dizem "tantas audições, tantas self-tapes", eu só posso dizer: "Antes, os castings eram presenciais. Eu fazia viagens constantes entre o Porto e Lisboa para castings e esperava meses para saber se fui escolhida ou não."

Comecei de forma humilde e olhava para as novelas com admiração, sonhando em trabalhar com atores talentosos. Eventualmente, consegui oportunidades de trabalho e fui progredindo na minha carreira. Sempre perseverei e segui os meus sonhos, mesmo quando as condições eram difíceis. Tive altos e baixos, mas continuei a lutar.

Além disso, sou casada com um ator [Gonçalo Waddington] e temos o desejo de construir uma família. Tenho dois filhos, um deles começou a faculdade em Roterdão recentemente. Quando se quer constituir uma família e ter uma vida decente, as coisas ficam (ainda) mais complicadas, especialmente em Portugal. A minha filha está a estudar Belas Artes e ficou impressionada com as instalações da universidade em Roterdão, que estão num nível completamente diferente do que temos no nosso país.

Encorajei-a a seguir os seus sonhos no estrangeiro, porque aqui as oportunidades podem ser limitadas. Tanto eu como o meu marido trabalhamos arduamente e produzimos os nossos próprios projetos. Não dependemos do nome dos nossos pais. A minha filha também não quer depender do nosso nome.

Hoje, com 49 anos, continuo a fazer self-tapes, a preparar projetos e a submeter guiões. Precisamos criar o nosso próprio trabalho e sermos versáteis. Comecei na música e atuei em musicais, revistas e muito mais. Quando vim para Lisboa, o meu primeiro trabalho foi na revista no ABC, onde desempenhei funções de liderança. Ninguém me conhecia na altura, e era uma altura em que o Porto e Lisboa estavam bastante distantes no mundo das artes. Foi um processo de conquistas constantes e muita resistência. Muitas vezes, pensei em desistir ou mudar de profissão, mas continuei. A incerteza financeira é uma constante, mesmo hoje em dia, mas é algo que faz parte deste caminho.

Já que menciona a idade como um fator, lembro-me de uma entrevista com Luís Miguel Cintra, durante a apresentação da cópia restaurada de "Ilha dos Amores", de Paulo Rocha, em Cannes. Questionei-o sobre a falta de personagens mais velhas, e a sua resposta foi: “Portanto, se a pessoa envelhece provavelmente tem um destino diferente. Mas vamos esperar o quê? Que os mais novos inventem personagens de velhos?  Não conhecem. Não têm conhecimento de como funciona um velho. Portanto, a imaginação deles não vai para velhos. Por isso temos de nos resignar, como em tudo na vida.

Agora, cada vez mais, vemos mais representatividade das gerações mais velhas nas novelas. Há uns 4 ou 5 anos, senti que os idosos estavam a ser esquecidos na indústria. As personagens mais velhas existem na vida real, na ficção e em todas as áreas. Felizmente, começou a haver uma maior procura por atores mais velhos, até mesmo nas próprias televisões. Estão a reconhecer a importância de manter os artistas a trabalhar, o que é fundamental. É triste e desrespeitoso quando um artista é esquecido após uma longa carreira. Muitos desses atores foram incríveis em tempos e ainda podem continuar a sê-lo.

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Luís (João Lopes, 2012)

Claro que hoje em dia se escrevem menos textos longos, porque as pessoas têm outras capacidades e nem todos conseguem decorar texto de um dia para o outro, especialmente os mais velhos. No entanto, atores talentosos e experientes podem contribuir muito para o cenário artístico em Portugal. É importante escrever mais papéis para personagens mais velhas.

Curiosamente, acho que a faixa dos 30 anos é mais desafiadora do que a dos 40. No meu caso, não foi um percurso fácil. A partir dos 45 anos, comecei a ter mais oportunidades de trabalho e maior visibilidade. No entanto, a competitividade entre as atrizes mais jovens, na faixa dos 20 anos, é intensa, pois há uma abundância de personagens disponíveis para essa faixa etária. O período entre os 30 e os 40 anos é um território incerto.

E juntando ao envelhecimento o factor mulher?

Exatamente. Para as mulheres, é ainda mais complicado. Porquê? Porque parece que é esperado que estejam sempre jovens. Não concordo com isso. As pessoas devem envelhecer naturalmente. Não vou contra isso e não farei cirurgias para parecer sempre jovem e manter a aparência de alguém com 30 ou 40 anos. Claro, cuido de mim com uma boa alimentação e exercício, mas isso também faz parte do meu trabalho. Não tenho a ambição de parecer jovem para sempre. Quero ter papéis aos 50, 60 e 70 anos. A partir de agora, parece que as pessoas estão a mudar a forma como veem os "40". No último ano, tenho sentido como se tudo o que fiz ao longo dos anos finalmente estivesse a ser reconhecido. O cinema trouxe visibilidade, é verdade, mas o teatro também, pois tenho trabalhado com diversos criadores e encenadores. A minha busca constante é aprender e conhecer pessoas, especialmente compreender a mente dos encenadores e como eles dirigem. Gosto de ser dirigida por diferentes pessoas. Devemos continuar a escrever mais boas histórias e a criar bons filmes.

Acredito que a sociedade atual está muito centrada na imagem. Tudo tem que ser belo, perfeito e impecável. Parece que nada pode estar fora do lugar. Mas o mundo real não é assim. Existem pessoas com diferentes aparências, algumas podem não ser consideradas bonitas à primeira vista, mas são incríveis atrizes e atores. A beleza ainda é muito valorizada e tem um grande poder nesta indústria.

Essa questão da beleza é igualmente própria da televisão.

Sim, é verdade. No cinema, vemos muito disso também. Chamam muitas celebridades populares, o que atrai audiências e faz sentido, desde que estejam comprometidas com a indústria cinematográfica. No entanto, é importante lembrar que não deve ser "tudo ou nada". Existem pessoas que trabalham na área há muitos anos e merecem reconhecimento. Falo, não apenas por mim, mas por pessoas que têm formação, experiência e que dedicam suas vidas a esta arte, e de repente, são esquecidas. Isso acontece mesmo com artistas mais jovens. Há muitos jovens talentosos que saem dos conservatórios e não conseguem oportunidades. Por quê?

Vivemos numa sociedade demasiado preocupada com a estética?

Posso falar do caso português, e sim. Noto que quando vemos produções nórdicas ou sul-coreanas, por exemplo, acreditamos na existência daquelas pessoas, por parecem-nos exatamente isso, pessoas. Claro que vemos atores que cuidam da sua aparência e podem fazer alguns ajustes, mas sem exagerar. O culto da beleza e da perfeição é cada vez mais evidente. 

Em Portugal, parece que se dá demasiada importância à imagem superficial, como o carro que se conduz, a casa onde se vive, a roupa que se veste, e as pessoas são frequentemente julgadas por esses critérios. Infelizmente, este foco excessivo na imagem muitas vezes leva as pessoas a negligenciar o seu crescimento interior.

As pessoas não leem tanto quanto deveriam, não procuram enriquecer os seus horizontes e não buscam conhecimento. Se dedicássemos mais tempo a isso, talvez nos sentiríamos mais realizados e não sentiríamos a necessidade de nos expormos de forma tão exagerada. É importante frisar que a verdadeira riqueza está nas nossas experiências profundas e na nossa capacidade de crescer enquanto seres humanos, ao invés de apenas focar na superfície.

Dentro dessa ideia, podemos dizer que o “Légua” é um filme contra essa estética?

Não sei explicar, mas não é a beleza exterior convencional. É mais uma beleza que se manifesta nas ações, nos movimentos, na performance, de alguma forma, e sim, vindo da Natureza.

Um pássaro sem asas não voa

Hugo Gomes, 18.10.21

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Há uns tempos um debate lançado por uma distribuidora (a ex-maior do país) tentou culpabilizar os filmes portugueses pela sua falta de adesão pública. A questão foi "O que os portugueses desejam ver no seu cinema?". Mas antes que haja respostas à pergunta de "milhões", há que entender que os filmes não caem do céu. Muitos necessitam de outros fatores, entre os quais a dita distribuidora falhou ou indiferentemente negligenciou, ou seja, não se faz "omelete sem ovos". O crítico João Lopes utilizou o Diário de Notícias para incentivar esse pensamento ou simplesmente facto.

2020: uma odisseia na crítica de cinema

Hugo Gomes, 28.03.20

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 Les Sièges de l'Alcazar (Luc Moullet, 1989)

Uma “nova normalidade” que poderá ditar uma futura revalorização do cinema como experiência de sala, mas por enquanto é o trabalho do crítico de cinema a derradeira prova de fogo para estes dias negros. Há uns dias a comunidade da crítica de cinema sofria com um abalo sísmico: o fim anunciado da Cahiers du Cinèma, a revista francesa encarada, mesmo nos dias de hoje, como a sagrada instituição deste ramo profissional. Atualmente, a profissão, à semelhança de praticamente todas as outras, sofre com a vinda de uma nova realidade, a de uma declarada pandemia do Covid-19, que desencadeou uma série de alterações sociais, económicas, culturais, etc.

A quarentena forçada levou ao cancelamento de diversos eventos cinematográficos, pois nenhum é imune à ameaça patológica. A própria ida à sala do cinema tornou-se restrita, para não dizer nula,  e nem mencionamos o trauma que virá a seguir e que a China – país onde já reabriram centenas de salas – está já a revelar. Na verdade, o cinema isolou-se agora em múltiplas plataformas de streaming, no VOD, Home Video ou simplesmente na incerteza. O trabalho do crítico de cinema tem novos desafios e a questão que se coloca é: como sobreviver perante estes novos (e forçados) hábitos de ver e escrever sobre cinema sem diluir-se na esfera da opinião pública, onde se competirá com milhares de vozes que habitam as redes sociais e outras plataformas de partilha? Será que a profissão vai-se desintegrar perante a crise financeira anunciada e suscitada como efeito secundário desta epidemia?

EUA, Reino Unido e França, três países onde a crítica de cinema ainda goza do estatuto presencial na cultura popular e intelectual, debatem-se nas “sombras” pela futura existência deste modo de pensar em cinema, e como se enquadrará no mundo pós-2020. Em Portugal, mesmo que o mercado e público seja menor que nos países referidos, a preocupação não é menor, até porque os críticos de cinema profissionais são “espécies em vias de extinção”, que tentam ainda encontrar novos meios de comunicação para com os seus seguidores. Alguns deles usufruem mesmo da imagem de “guru”, figuras de culto de uma cinefilia em perpétua mudança. Como encaram os nossos profissionais neste novo cenário? Como irá evoluir a crítica de cinema, ou como muitos vão subsistir perante este hiato? Será esta a derradeira ameaça para a definição tradicional de crítica de cinema?

Nem todas as perspetivas são catastróficas, como aponta Vasco Câmara, um dos três críticos em atividade no jornal Público e editor do suplemento Ípsilon. O mesmo partilhou uma feliz experiência desse “enclausuramento“, dando o exemplo do número saído na passada sexta-feira (20/03), “todo ele feito em isolamento” e que mesmo assim resultou, segundo as suas palavras, “nas melhores coisas” que o jornal já fez. Para Câmara, estamos a viver “uma nova normalidade”, conceito que é partilhado por outros colegas.

Jorge Leitão Ramos, um dos críticos do semanário Expresso, desmonta a preocupação alarmista que muitos vêem nesta realidade ainda por digerir: “até agora, a grande diferença profissional é não escrever sobre filmes em sala, mas sobre ‘coisas’ na Internet.“. Já João Lopes, crítico veterano do Diário de Notícias, para além de colaborar na rubrica Cartaz Cultural da SIC Notícias, sublinha que “não há volta a dar: todas as atividades humanas, das mais essenciais (a defesa da saúde pública) às de reflexão e pensamento (em que, melhor ou pior, se inclui a crítica de cinema), estão a ser desafiadas nos seus pressupostos e fronteiras.“. O mesmo salienta, sem uma visão completamente catastrófica sobre o seu ramo profissional, que “não deixámos de ser espectadores e a dimensão drástica daquilo que estamos a viver tem, para muitos de nós, o efeito paradoxal de reforçar a nossa atividade enquanto espectadores. Nesta perspetiva, o labor específico do crítico de cinema não muda: ‘Lawrence of the Arabia’ não foi feito para ser visto na estreiteza do nosso ecrã de computador (muito menos de telemóvel), mas resiste a todas as dimensões de ecrã e contextos de visão…

Já para Inês Lourenço, também ela colaboradora do Diário de Notícias, para além de ser a voz do programa de rádio A Grande Ilusão, é difícil neste momento perspetivar, a longo prazo, o efeito desta situação no seu trabalho como crítica e jornalista. “Naturalmente, a cessação abrupta das estreias em sala é algo que, desde logo, se impõe como uma mudança no quotidiano e provoca uma sensação de estranheza e apreensão. Mas depois há as alternativas do streaming e da televisão (entre outras), que ganham terreno nisto que se espera ser uma considerável fatia de tempo até que tudo volta à “normalidade“. Talvez com o correr desse tempo a angústia aumente, mas por agora tenho algum otimismo de que quando se puder regressar às salas de cinema haverá uma revalorização da experiência – um bocado aquela ideia de que é quando estamos privados de algo que aprendemos a dar valor. Nestes dias, o mais importante é tentar ser criativo para contornar a limitação dos “conteúdos” habituais.

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Lawrence of Arabia (David Lean, 1962)

Essa revalorização não é somente uma ideia de Inês, pois o seu colega João Lopes referiu também esse regresso da sala de cinema como um marco de superação da era de confinamento e sequencialmente a sua ribalta: “O “lugar” de consumo dos filmes envolve uma questão adensada ao longo dos últimos anos: creio que é fundamental continuar a defender a especificidade do cinema como um acontecimento da sala escura, para a sala escura — um acontecimento social, enfim. Ao mesmo tempo, seria um ‘lirismo’ sem fundamento negar, ou renegar, o modo como as alternativas do streaming criaram uma nova paisagem de consumo, não só recheada de oportunidades como também, convém não esquecê-lo, quase sempre menos dispendiosa do que a visão dos filmes em sala. A situação de pandemia agravou esta clivagem, transformando-nos a todos em espectadores online, ao mesmo tempo que, mesmo por perversa ironia, nos faz (re)valorizar a experiência insubstituível da sala. Já com saudade.

Para Rui Tendinha, também crítico do Diário de Notícias, para além dos seus trabalhos na televisão sob o formato Cinetendinha, esta “nova normalidade” defendida por alguns dos seus colegas são “dias de apocalipse“. O crítico expressou as suas preocupações, confessando que estes tempos poderão prejudicar o seu trabalho, mesmo que “felizmente”, ainda haja cinema online. “Mas não é o mesmo”, remata, acrescentando: “Sou crítico de cinema e não de Home Cinema. Acredito muito no cinema em grande ecrã. Também estou a ser prejudicado como programador – 3 dos festivais que trabalho foram adiados… Perdi também entrevistas que tinha marcado no estrangeiro e uma série de outras possibilidades. O melhor de tudo isto é que estamos todos a levar um curso crash para sabermos viver com menos. O streaming vai crescer e poderá deixar marcas de hábito. Quem descobre um ‘Uncut Gems’ na Netflix talvez comece a querer perder o hábito de pagar um bilhete de cinema. Preocupa-me muito a situação dos cinemas mais independentes. A pirataria vai voltar a ter dias mais felizes e isso dos festivais online também vai proliferar. Se me perguntam se isso é melhor do que não haver, sou o primeiro a dizer que não, mas temo os efeitos futuros. A ressaca de tudo isto vai fazer com que haja depois um período longo em que muitos não vão querer estar numa sala escura cheia a ver cinema. Será psicossomático. O cinema vai mudar, a vida de um crítico de cinema também.“ Não foi apenas Rui Tendinha a expressar uma visão negativa em todo este cenário: um crítico que preferiu não ser identificado, mencionou que como “não há estreias, as páginas de cultura diminuíram ainda mais”. “Não publico, logo não ganho“, concluiu.

Terminando esta ronda pela crítica profissional, João Lopes terminou a nossa conversa com ambiguidade, mas sobretudo crença na conservação do papel do crítico no futuro pós-coronavírus: “o crítico de cinema, seja qual for o seu talento, não é um profeta, muito menos um adivinho. Quando se pergunta a um crítico ‘…quem vai ganhar os Oscars’, convém começar por responder o mais rudimentar: ‘Não sei.’ Ou seja: ninguém consegue antecipar o que está para vir, desde a economia global até ao universo tão particular do cinema. Digamos apenas o óbvio: nada será como dantes. O que quer dizer que o labor específico do crítico — e, em particular, do crítico ligado às formas clássicas de imprensa — vai enfrentar dúvidas e temas para os quais, em boa verdade, não estava preparado. De um modo ou de outro, será preciso continuar a defender/pensar o cinema, não como um mero “gadget” de usar e deitar fora, antes como uma forma de expressão artística & industrial com mais de um século de história (com coronavírus ou sem coronavírus, comemorar-se-ão este ano 125 anos da primeira projeção pública de filmes). As incertezas desse futuro obrigam-nos a sermos suficientemente ágeis e inteligentes na preservação da memória cinéfila.