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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Bifes (III) ...

Hugo Gomes, 19.02.25

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Descontados os levianos temores dos meus verdes anos (era o tempo em que se lia o Sadoul e o Armindo Blanco), nunca partilhei a admiração com que alguns dos meus colegas envolviam a obra de Manuel de Oliveira, nem nunca soube tirar dela qualquer humilde ensinamento. (...) Além do mais, e para simplificar, antipatizo consigo. Se quiser, é uma antipatia de classe, feroz e desdenhosa. Irremediável. Há ainda o seu inconcebível catolicismo de catequista que (diga-se) se traduz num humanismo bolorento e charlatão sempre que o senhor sacrifica o discurso cinematográfico a uma verborreia pseudo-literária para se dar ares de carpideira filosófica preocupada com os pecados do mundo.

João César Monteiro sobre Manoel de Oliveira, numa crítica ao seu “Passado e Presente” (1972), publicado no Diário de Lisboa [Suplemento Literário], 10 de março de 1972.

Manuela Viegas numa conversa sobre as suas glórias: "a imperfeição tem de fazer parte da obra, ela acrescenta algo ao seu sentido."

Hugo Gomes, 02.11.24

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Glória (Manuela Viegas, 1999)

Em 1999, estreava em Berlim aquela que seria a primeira e única realização de Manuela Viegas, uma consagrada montadora no panorama do cinema português. A obra, “Glória”, viria a tornar-se um objeto de culto, um canto obscuro para aqueles que ousassem entrar, penetrar e ficar. A narrativa desenrola-se em torno de Ivan (Francisco Relvas), uma criança levada pela mãe de Lisboa para o interior rural, para viver com o pai numa estação de comboios quase abandonada. Lá, Ivan conhece Glória, uma menina que partilha um destino semelhante ao seu, mas entregue a uma perversidade própria que o guiará até às distantes margens do rio, em busca de um refúgio cavernoso onde possam escapar da cruel intenção dos adultos que os rodeiam.

É um filme com o olhar de uma montadora, como a realizadora reconheceu durante esta nossa conversa em torno da sua obra... e da sua arte. “Glória” desafia o espectador, a sua posição e a sua percepção, recusando narrativas aristotélicas ou de “caracará”. Move-se na profundidade da atmosfera, naquilo que se adensa no coração humano. E no seu recanto secreto, encontramos algumas notas sobre um país em mudança, sobre o abandono das tradições, das suas gentes, do meio rural, em particular. “Glória” regressa agora à vida, sob as vestes de cópia restaurada, tendo sido exibida como tal no Centro Cultural Gil Vicente, em Sardoal, a terra que, há 26 anos, a gerou. Uma retornada, “bem-vindo a casa”!

Esta sessão especial, integrada no programa europeu A Season of Classic Films, promovido pela Associação das Cinematecas Europeias, serviu de motivo para este encontro. Agora reformada, Manuela Viegas falou ao Cinematograficamente Falando … sobre a sua paixão, sobretudo pela montagem, a arquitetura invisível que sustenta um filme, vincando “Glória” como a sua glória de passado, e isso, sem nada a esconder.

Foi montadora durante vários anos, como também contribuiu para a escrita de alguns argumentos, por isso mesmo, pergunto-lhe o que motivou este grande salto na realização do filme?

Desde o início, desde o surgimento do meu interesse pelo cinema. Frequentei o conservatório depois de ter realizado vários estudos noutras áreas distintas do programa de cinema, e, logo nos primeiros anos, surgiu essa possibilidade, o desejo de filmar, etc. Ao entrar numa espécie de comunidade, como é, por exemplo, a do cinema — um seio bastante fechado — sente-se algo contagiante, um poder de contaminação do cinema em relação a todos os outros aspetos da vida, passando e pensando o cinema na vida das pessoas. Sai-se para um bar e as coisas que se encontram e o que se veem, remete-nos ao cinema. Cinema, cinema e Cinema. Assim, o desejo de trabalhar em cinema foi enorme desde o princípio. Tem componentes que me interessam muito e que se ajustam ao meu modo de ser, desde “arregaçar as mangas” e partir para a prática. Mas isto aplica-se a todos os seus departamentos — montagem, realização, tudo. Por um lado, há esse lado prático, e por outro, há um aspecto de ligação com a História do Cinema, que leva a refletir sobre como transpor, digamos, vários interesses, temas e situações para imagens e sons — como filmar e tudo mais.

A montagem é precisamente esta construção que me fascina, que dá vida a uma pessoa: descobrir os filmes que estão dentro dos materiais, das imagens, dos sons, do filme inicialmente idealizado, em diálogo constante com os realizadores, até os filmes materializarem e ganharem a sua devida forma. Assim, a montagem torna-se quase como uma pequena oficina criativa; é como fazer filmes também, só que em colaboração com outra pessoa, o que é muito… Enfim, é melhor do que nos afundarmos nas nossas próprias intenções e objetivos, isso é algo a evitar o máximo possível. Trata-se de entrar, por assim dizer, numa abordagem conjunta, ouvir os outros, ser ouvido, falar e trazer para as conversas uma visão sobre o mundo, através dos planos que se descobrem. É um processo fantástico, muito enriquecedor.

… e ao mesmo tempo é como se fosse uma arquitecta dentro do meio.

Sim, podemos dizer que há uma construção que se faz, mas existe também um enorme desejo de descobrir o essencial de qualquer coisa, de captar o que está por dentro. Não se trata de procurar o que está por trás, mas sim de perceber que, por vezes, o essencial está mesmo à superfície. Trata-se de descobrir lá aquilo que possui profundidade. Este processo ocorre na montagem de forma muito eficaz, entre angústias e alegrias — alegrias que nos fazem quase saltar da cadeira quando encontramos algo significativo, e angústias que nos tiram o sono, transformando a nossa percepção acerca das coisas. Porque os passos que damos são incertos, e ao mesmo tempo, acusamos aqueles que já estão predeterminados, os que fazem parte de esquemas de construção mais convencionais — as chamadas técnicas de escrita, de montagem e outras.

Essas técnicas, ou normas, acabam por ser desafiadas pelo próprio material que encontramos: pelas imagens e pela criação dos sons, que podem imensamente influenciar. Comecei com película, então digamos que trabalhava em bandas de imagem e som de acetato, palpáveis — na altura, tínhamos a imagem e dois ou três sons possíveis em simultâneo, no máximo, dependendo das mesas de edição disponíveis.

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Glória (Manuela Viegas, 1999)

Na película, trabalhei sobretudo em 16 e 35mm, criando coisas absolutamente inventadas e caóticas, muitas delas arriscadas, sempre lado a lado com o realizador. É muito estimulante, esse lado criativo associado à montagem. Portanto, a transição para a realização foi quase como uma extensão disso, mas no próprio terreno — ou seja, filmar com uma equipa enorme, com câmaras de 35 milímetros, em exteriores, à noite, de madrugada, nas horas mais fotogénicas, em locais como as escarpas do Zêzere. Filmar ali implicava arrastar toda a equipa com o equipamento. Na rodagem, acreditava que, baseado na experiência da montagem, seria quase o mesmo processo, com ambos — eu e outros — a fazer filmes. Contudo, a rodagem exige uma rapidez de reação face ao que se encontra na natureza, nas pessoas, na organização das produções, etc., uma rapidez que não permite a concentração que a montagem proporciona. Entramos numa sala de montagem…

Ouço na sua voz uma admiração pela montagem inquebrável, tendo em conta que quase esse cargo está a desaparecer, hoje, chamamos editores, e a edição por via do digital. Perdemos essa concentração a que se refere?

Mesmo na montagem digital, no computador, ainda há aquele contacto, o toque da montagem, que existe mais intensamente na montagem em película do que na digital. No entanto, mesmo em digital, para fazer a montagem, é preciso entrar numa bolha, numa espécie de noite; é uma experiência pessoal. Sei que… sou sempre eu que preciso dessa imersão, é isso que define o meu ritmo, a minha velocidade, é a concentração. A verdade é que é um processo nada fácil. Há sempre muitas interferências, são tantas coisas.

E, portanto, estava, na verdade, sempre a pensar. Morria de saudades da montagem, mas ao mesmo tempo, ao ver os planos, pensava nos planos que gostaria de ver ganhar forma na montagem.

Ou seja, realizava com olhos de montadora, é isso?

Sim, claro, na escrita, desde sempre. Aliás, acho que o nosso pensamento é, de alguma maneira, uma forma de montagem. Trata-se de relacionar ideias, colocar coisas lado a lado e encontrar fios de continuidade, que não precisam de seguir as regras da montagem convencional. Pode ser uma continuidade mais subterrânea, digamos assim, algo que também sinto no “Glória”.

Gostaria de explorar a questão da subterraneidade, uma vez que o filme evoca uma aura bastante misteriosa. Temos uma narrativa, e, embora esteja focada nessa narrativa, aqui o filme desafia o espectador a tentar decifrar o que está realmente a acontecer, pois nunca nos diz claramente do que se trata. Assim, ficamos em dúvida, absorvidos por aquela atmosfera. O filme é muito atmosférico, no sentido de ser bastante sombrio. Isso também me faz pensar que, apesar de ter assumido o papel de realizadora neste filme, não conseguiu desvincular-se da sua experiência como montadora. Acha que isso a poderá ter influenciado a sua abordagem ao filme?

Sem dúvida! Não tenho dúvida nenhuma quanto a isso. Como já estava a dizer, desde a escrita até à planificação, sinto que há uma continuidade. Devo dizer que, nas cenas filmadas, houve coisas mais bem-sucedidas do que outras; houve material que se revelou impossível de usar. A mise-en-scène, digamos assim, exige uma sensibilidade que, por vezes, questiono se possuo verdadeiramente, mas que sempre esperei conseguir, pelo menos em parte. A mise-en-scène envolve olhar para o espaço, ver as pessoas nele inseridas e ligar tudo organicamente à cena em formação, esse é o ideal, porque as coisas não são só planos e imagens num lado, com o resto separado para outro. Os temas, as questões, e até a História, estão todos interligados, é isso que acredito que define o filme: a imagem e o som, a sua matéria contêm o que chamamos de continuidade.

Portanto, essa sensação que descreveste ao ver o filme, de uma certa ambiguidade sobre o que ele trata — mais ambiente, menos história —, faz parte da intenção.

Sabemos que está a acontecer algo, mas, como espectador, tentamos encaixar todas as peças para entender. E até mesmo a planificação esconde as ações-chave.

Exato, digamos que há um conjunto de opções conscientes, relacionadas com um tipo de cinema em que o essencial das ações, das histórias, ou das situações acontece fora de campo, ou passa para o outro lado. É como se houvesse um território imaginado, no qual filmei várias populações, em diferentes pontos de rios, por exemplo. Imaginei, a partir dessa claridade e diversidade, um território de ficção onde me podia instalar livremente. Sentia-me à vontade para colocar a câmara aqui, ali, em qualquer ponto. Quando filmava num local específico, tinha a noção do que estava a acontecer noutras áreas. Não estava lá com a câmara, mas sabia o que ocorria. Esse "fora de campo", ou “off”, mesmo não estando visível, cria tensão com o que está em cena, remetendo, na verdade, aos efeitos de algo que já ocorreu — os vestígios, os resíduos, o que sobrou ou se desfez após um acontecimento. Talvez esta abordagem reflita algumas influências cinematográficas.

Não sei se consigo explicar exatamente o que é, mas sei que algumas das minhas opções, inclusive na montagem, visam descentrar o foco, deslocar aquilo que normalmente é central, e faço-o, talvez, pela crença de que essa estratégia traga uma compreensão mais profunda do que se está a passar. As histórias, na narrativa tradicional, tendem a relatar factos de forma explicativa: aconteceu isto, que se liga com aquilo, e foi causado por tal coisa. No entanto, a construção de um filme, com esta abordagem, procura algo diferente — algo menos explícito e mais evocativo.

Penso que a intensidade da nossa percepção, ao capturar as possibilidades e o significado das cenas, torna-se mais incisiva, mais forte, quando tudo não está diretamente à vista. Mizoguchi faz algo assim. Embora seja um realizador clássico, ele utiliza essa técnica. Por exemplo, um gesto fundamental entre um homem e uma mulher que vão ser crucificados aparece apenas no final do plano e quase não se vê. Esse “quase” — o risco de quase perdermos o gesto — cria uma perceção fulminante da situação. Em Mizoguchi, essa sensação é imediata, quase explosiva; no meu trabalho, talvez não tenha o mesmo impacto, mas uso o mesmo princípio: filmar o que está entre uma coisa e outra, explorar os efeitos, como um sorriso ou uma luz que ilumina subitamente um rosto, sem que imediatamente se compreenda o motivo. É algo que se percebe mais tarde, é como uma aposta — não dar tudo de imediato, mas permitir que se revele aos poucos.

Acredito que com isto se ganha uma presença muito forte do que está em campo, exatamente porque está tensionado pelo que não se vê.

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The Crucified Lovers (Kenji Mizoguchi, 1954)

O grande ponto de atração do seu filme é a curiosidade. Sim, sentimos curiosidade em descobrir aquilo, ganhamos pistas e juntamos as peças, como disse. Não se trata de algo concreto ou óbvio, mas de algo mais intangível.

Não é curiosidade pelo que está ali, mas pelo que surge a partir disso. Juntamos as peças, como disse: não é o concreto, mas o que ele evoca. Não é a curiosidade pelo que está diretamente em cena, mas pelo que vem dessa presença. Não se trata da ação, mas de filmar as margens da ação, os efeitos, como se estivesse a filmar um abalo de terra. Não filmo o epicentro, mas sim as ondas provocadas, e é através dessas ondas que o sentido se vai revelando. Mas é importante que se entenda claramente, que não seja apenas um jogo de esconde-esconde. Não se trata de um jogo; é uma busca séria de formas de fazer passar o sentido, sem recorrer ao "Ah, isto já sei o que é, já vi isso 500 vezes na televisão". É, de certa forma, uma recusa disso, uma tentativa de fazer com que os elementos surjam como se estivessem a nascer.

No final, penso que algumas dessas cenas têm uma presença muito forte, especialmente as que resultaram de uma rodagem mais intensa e satisfatória, embora sejam só duas ou três cenas. A certa altura, notava-se que a equipa inteira estava ali concentrada. Era uma equipa muito grande, e ninguém estava a pensar no almoço ou no lanche; estávamos todos focados no que se estava a criar. São só duas ou três coisas que se expandem e, se derem um pouco a volta ao filme, ele já ganha outra dimensão.

Há pouco disse-me algo que me fez pensar, mas primeiro deixe-me perguntar: é devota do Kenji Mizoguchi?

Acho o Mizoguchi extraordinário!

Perguntei isto, porque um dos elementos recorrentes na cinematografia de Mizoguchi é a presença do rio. Desde “O Intendente Sansho” [“Sansho the Bailiff”, 1954], “Os Amantes Crucificados” [“The Crucified Lovers”, 1954], “A Vida de O'Haru” [“The Life of Oharu”, 1952], até “Contos da Lua Vaga” [“Ugetsu”, 1953], todos os filmes têm essa presença marcante do rio, como fosse uma personagem própria, um elemento que conduz estas personagens ou os leva a cometer os seus atos e confrontar dilemas. Em “Glória” existe essa igual presença com o rio …

Bom, aproveitando este paralelismo com Mizoguchi — embora não haja um verdadeiro paralelismo, pois estamos a falar de coisas absolutamente extraordinárias —, há realmente algo na presença dos rios, tanto em Mizoguchi como aqui, no “Glória”. A água e os rios têm um poder imenso, e creio que representam a energia desse território, o rio, ou melhor, os rios. Em certos momentos, o rio assemelha-se a um paquiderme, imóvel, com costas castanhas, vasto e pesado; noutros momentos, irrompe e rasga, numa força intensa. Essa energia parece aglutinar a dispersão que constitui o filme. Não sei se posso descrevê-lo assim, mas não é um conjunto de coisas dispersas, sem ligação, saltando de uma coisa para outra. Em vez de uma continuidade linear, o rio é a presença que flui entre tudo, presente também no som, como uma energia aglutinadora.

Por outro lado, os rios, ou aquele rio que vemos no filme — são vários pontos do mesmo rio, diferentes rios ligados entre si — têm uma espécie de força de atração que, em certo ponto, parece até um pouco maléfica. Exerce uma atração particularmente forte sobre os miúdos, porque o filme procura mostrar o ponto de vista deles: não é a minha perceção, ou a de um adulto sobre eles, mas sim o olhar dos próprios miúdos. E, assim, os medos, os pesadelos, os desejos, as alegrias, as brincadeiras — tudo tenta ser visto a partir desse ponto de vista. O rio exerce sobre eles, os miúdos, mais do que sobre os adultos, uma espécie de atração inevitável, uma força que quase roça o maléfico. Talvez seja isso… talvez, mas não sei ao certo.

Perverso?

Exato, é como se ela fosse arrastada para lá; essa é, no fundo, a essência da história, quando a vemos do ponto de vista das crianças. Elas observam os adultos e veem neles comportamentos aberrantes, ficam incrédulas ao ver como são capazes de certas atitudes, como podem ser violentos uns com os outros. Mas, então, a Glória [a personagem interpretada por Raquel Marques] arrasta o rapaz para o rio, como se algo dela o tocasse, o contagiasse — e é isso que acaba por marcar profundamente a minha própria vida. Esse poder, essa energia, impede que o filme seja apenas uma manta de histórias soltas, dando forma a um território próprio onde se movem as crianças, os adultos, todos. E há nesse poder de atração algo inexplicável, mas sentimos que algumas das vivências da Glória se tornam visíveis, que captamos algo do seu passado ou do que ainda a assombra.

Sabemos que há crianças pequenas, filhos de imigrantes, deixadas ao cuidado daquela senhora, a Teresa [personagem interpretada por Isabel de Castro]. Não é propriamente uma “mãe”, e a própria Glória é uma delas, deixada ali desde sempre. Ninguém a veio buscar. Ao contrário das outras crianças, cujos pais tentam sempre ir buscá-las, ninguém vem por ela. Talvez o rio tenha qualquer coisa que transcende a razão e que, em última análise, molda o filme. No trabalho que fizemos agora, a digitalização parece fazer ressaltar a irracionalidade dos comportamentos daquelas pessoas apanhadas sem saída, ou talvez seja só uma questão de som, de definição do som — como se o rio encarnasse uma figura quase mítica, uma força irracional e inconsciente. Não quero ser pretensiosa, nem afirmar nada de forma categórica...

Mas, no fundo, o rio liga-se a um inconsciente coletivo, principalmente o rio à noite, ligado aos desejos, medos, pesadelos — tudo isso, os sonhos dela, ou pelo menos da Glória

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Glória (Manuela Viegas, 1999)

“Glória” esconde na sua “carne” uma espécie de crónica, ou crítica, do seu espaço sócio-político. Do seu tempo, aliás, visto ter sido rodado por volta do ano 1998 …

Talvez tenha sido até antes, não me lembro ao certo. Talvez tenha sido escrito em 1995. Na altura, os grandes fogos ainda estavam muito presentes, tal como as novas “estradas cavaquistas”, que estávamos a filmar, fruto de uma certa cultura de expansão rodoviária.

O que eu queria mesmo era situar esse contexto temporal, porque há um plano no seu filme, com o Ivan numa esquina, junto a uma montra, onde se vê o logotipo da Expo 98. Foi um tempo de mudança neste país, e igualmente demonstra isso, subtilmente em “Glória” com o desaparecimento daquela ferrovia, a dar lugar a uma auto-estrada, uma conexão rápida entre as metrópoles e o interior algo decadente …

Não sei se se pode considerar uma crónica ou algo mais lógico, mas, do ponto de vista político, há uma ideia de que estamos a lidar com uma zona do país que apresenta velocidades diferentes, mas simultâneas. Por um lado, temos partes do país que continuam lentas, enquanto outras evoluem rapidamente, com a construção de vias mais rápidas e a presença de grandes bancos, por exemplo. No entanto, essas novas estradas acabam por deixar para trás as populações, criando uma divisão sociológica entre os mais pobres e os desamparados.

A extinção da ruralidade, de alguma forma.

Exato! No filme há uma abordagem muito consciente e profundamente política, uma reflexão sobre o que é o progresso, o desenvolvimento do país, etc. Do ponto de vista político, a minha ideia é que o progresso é algo sustentado em roubos de matérias-primas, em sacrifícios, numa separação cada vez maior entre grupos e corpos, tudo isto é construído com base nesse processo, portanto, não sabemos bem. Também há algo que costumava referir nas aulas, já com alguma idade, relacionado com "The Magnificent Ambersons" ("O Quarto Mandamento") de Orson Welles.

Nesse filme, onde se trata da invenção do automóvel e da mudança de época, há uma cena com um longo plano fixo em que o patriarca da família sentado olha horrorizado para fora de campo onde parece haver uma lareira. Ele está à beira da morte e há uma "voz off" melancólica de Orson Welles que fala do tempo da História e, onde todos parecem ver uma cadeia linear de acontecimentos ligados pela ideia de progresso e de futuro, o velho patriarca vê a acumulação de ruínas sobre ruínas. Tem os olhos esbugalhados como se atingido por uma explosão, uma catástrofe. Falávamos disso em Teoria da Montagem. Pensar a História como um tempo de vazios súbitos, descontínuo, não linear. O velho dos Ambersons é quase um Anjo da História, como aquele do quadrinho do Paul Klee.

Quero dizer, é uma ideia bem conhecida. Talvez não seja algo que me pertença, mas que é complementado por outras ideias. No entanto, essa ideia de desenvolvimento e progresso exige que perguntemos: progresso para onde? O que é esse "para onde"? O que está a acontecer no mundo? Continuamos a lidar com a questão das matérias-primas, mas isto ainda não terminou, ainda há mais e mais coisas para serem apropriadas. Portanto, diria que talvez, e não sei se isto é muito rebuscado – provavelmente só pensei nisto depois de fazer o filme – mas trata-se de refletir sobre essa ideia de recusa do progresso a qualquer preço, de um progresso que acaba por ser destrutivo para o planeta, inclusive. Essa ideia, talvez, não encontra uma correspondência direta no desenvolvimento do próprio filme, que também não segue uma estrutura rígida de apresentação, desenvolvimento, conclusão, etc.

E sobre essa ideia de ruína de que me falou. O filme, hoje, é considerado uma obra de culto no cinema português e, talvez, seja mesmo incontornável o icónico cartaz criado pelo artista plástico Julião Sarmento. Todo o cartaz transmite essa sensação de ruína, com o lettering grafitado como aquele que aparece no “falso-crédito” do filme. Então, falando rapidamente, como surgiu a ideia do cartaz? Teve alguma influência na sua criação, ou foi algo imposto pela produtora?

Nós mostrámos o filme ao Julião, e ele ofereceu-se para fazer o cartaz. Portanto, é com isto que estás: o fundo é branco e tem nódulos, manchas de uso, vestígios, marcas – pedaços de gestos.

Como uma parede daquelas casas de pedra?

Sim, faz mesmo lembrar isso. Diria que o aspecto da imagem transmite uma textura de parede, uma daquelas de rua, um muro, onde ficam marcas, como se tivessem sido deixadas pelo tempo e pelo uso. Ou seja, ele viu o filme, interpretou-o e manifestou esse pensamento através deste cartaz.

Voltando ao “inconsciente” político, ou não, do filme, como é que essa ideia de recusa a um progresso a qualquer preço, tão enraizada nas contradições entre desenvolvimento e destruição, se traduz na estrutura do filme? 

Não pode ser algo certinho e acabado; precisa de ser fragmentado, de transmitir essa ideia de montagem. Não me lembro exatamente, mas a intenção era trazer essa recusa política para a própria forma do filme. Claro, talvez tenha pensado nisso mais tarde, quando precisava de falar sobre o filme, e pensei: “Do que é que vou falar?”. Encontrei aí uma espécie de necessidade de que a forma de filmar, a montagem, as imagens que escolhemos, os sons que inventamos, tudo isso fosse profundamente contaminado pelo que está a acontecer no contexto ambiental e político. Por exemplo, nas cópias em película, deixámos os sais de prata nas imagens, o que dá um tom de carvão ao filme – carvão que está, de certa forma, em sintonia com a História que está a ser retratada.

A História de um território devastado, onde o elemento vital, o rio, se vê ameaçado, onde há incêndios, encerramentos de espaços, entre outras coisas.

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Manuela Viegas durante a apresentação da cópia restaurada de "Glória" no Centro Cultural Gil Vicente no Sardoal / Foto.: Paulo Jorge de Sousa

Está tudo a acontecer ali, e talvez fosse interessante refletir sobre como o argumento era antes de filmar. Já há muito tempo que não penso nisso, mas lembro-me que ao encontrar aqueles locais, tive de mudar imenso o argumento. Adaptámo-lo completamente à casa da estação, onde não mexemos quase nada. As coisas estavam tal como as encontrámos. Levámos apenas uma cama de ferro, entre outras pequenas coisas, para as encaixar no cenário. A casa estava vazia, era a casa do chefe da estação. Não pintámos, não alterámos nada. Já a casa ao lado, onde vive a senhora que toma conta das crianças dos imigrantes – que depois vêm buscar os bebés – também não era um casarão. Tinha aquele sótão, e as paredes cheias de vegetação, de ninhos de pássaros, etc. Apropriámo-nos do espaço, entrámos de mansinho e colocámos alguns elementos. E assim, grande parte do argumento foi adaptada. Na montagem, foi totalmente desconstruído. Fui reduzindo até ao essencial. Cada filme pede um método específico de montagem, mas o princípio básico é começar por alinhar tudo o que foi filmado e depois ir retirando o que não funciona, deixando apenas o essencial, aquilo que é realmente bom.

Portanto, montagem foi essencialmente retirar, retirar e retirar …

Sim, mas depois tive de recuperar algumas coisas do “lixo”, que tinham sido descartadas [risos]. Só mais tarde percebi, e explico-o agora com palavras que nem tinha na altura, que a imperfeição tem de fazer parte da obra, ela acrescenta algo ao seu sentido. Aquilo que, por vezes, não está bem enquadrado ou que não seria o mais “certo”, acaba por trazer um valor especial. Sem esses detalhes, a obra ficaria reduzida a uma série de substantivos soltos: “ponte, poço, casa” – sem nada à volta. Por isso, fui buscar essas partes novamente. Filmámos muito, começámos a trabalhar nas filmagens bastante cedo, quase que nos esgotámos, mas tínhamos uma equipa incrível, muito dedicada, embora pequena.

Que bem se molharam nesta rodagem [risos] …

Molhamo-nos sim, e não só, arriscámo-nos muito, e pusemos em perigo, por vezes, uma quantidade de equipamento. Tivemos uma ajuda fabulosa dos bombeiros, especialmente nas filmagens noturnas, em que precisamos de iluminação e de várias preparações para nos expormos – com bombeiros dentro de água, debaixo das estruturas, etc. Foi muito arriscado; hoje em dia, não seria capaz de pedir isso a ninguém, pois é realmente exigente. Mas isso está no filme, sente-se. O resultado traz um benefício à produção, uma vibração do real, das coisas que estavam lá. Sente-se essa autenticidade a vibrar, creio.

Mas … depois de “Glória”, não teve mais vontade de filmar?

Gostava de ter continuado a filmar, mas durante a rodagem, houve várias fases. A primeira fase, a da escrita, foi muito difícil – estávamos todos sem dormir ou a dormir pouquíssimo, e não estávamos bem da cabeça [risos]. Mas, aos poucos, fomos ganhando ânimo, e no final da rodagem, já tinha vontade de sair de lá. Queria ficar ali, sozinha, a dizer “podem ir todos embora, eu fico aqui”. Realmente fiquei mais uns dias, naquele calor comunitário, no local que nos acolheu, e senti-me grata por tudo aquilo ter sido possível. Logo a seguir, tinha vontade de continuar com algumas destas personagens ou com outras, de prolongar um pouco aquele ambiente. Talvez não ali mesmo, mas num lugar semelhante. Comecei a escrever algumas coisas, mas o tempo foi passando e outras vocações se sobrepuseram. Tenho interesse em várias coisas. Não é assim tão fora do comum, mas quero buscar inspiração em várias áreas.

Gosta de ensinar [menção à trajetória enquanto professora na Escola de Cinema e Teatro], é isso?

Gosto de ensinar, mas não no sentido de ensinar diretamente – gosto de observar as pessoas a descobrirem as suas próprias coisas e de oferecer o que puder, seja estímulo ou entusiasmo. No fundo, é isso que as aulas devem ser: estimular, inspirar gosto pelo cinema, criar comunidades de apreciação e paixão, onde cada um valoriza à sua maneira. Depois, comecei a pensar numa abordagem mais orgânica, inspirada em livros que foram marcantes para mim, que têm acompanhado a minha vida e que se tornaram inesquecíveis. Pensei em criar algo mais parecido com um concerto de música, onde cada "instrumento" está organicamente ligado, onde todos participam com naturalidade, como se cada um trouxesse a sua nota única. E lá fui eu, por aqui e por ali, mas o tempo vai passando e nunca é suficiente para tudo. Dou-me por completo a tudo o que faço, seja nas aulas ou em qualquer outro projeto. Desde a licenciatura, com a passagem para o mestrado e tantos trabalhos, uma boa parte do meu tempo foi para isso. Mas não significa que ainda não possa surgir outra coisa.

É importante associar ideias a cada elemento. E, dentro dessas limitações, talvez o fenómeno seja inicial, mas é também o que consegui realizar. Entretanto, tenho uma saudade imensa do processo de montagem. Agora, já não se trata apenas de me responsabilizar pela parte técnica; é mais sobre tomar decisões relacionadas ao filme em si, sobre que filme quero ver com as pessoas, e manter sempre a concentração. O que mais valorizo é essa capacidade de concentração, a ponto de, como acontecia nos laboratórios de fotografia, onde uma pessoa entrava para revelar e, de repente, passavam 24 horas sem almoçar, nem jantar, e ali permanecia. A montagem é semelhante a isso.

Um canto isolado do resto do Mundo?

Exato. É uma questão de solidão e concentração, mas também de estar sempre à espera de compreender a visão que o realizador tinha para aquilo.

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O Som da Terra a Tremer (Rita Azevedo Gomes, 1990)

A Manuela tem sido, possivelmente, uma verdadeira escola de cinema, pois fez a montagem de muitas primeiras obras de realizadores que hoje tão bem conhecemos. Trabalhou com Pedro Costa em “O Sangue” (1989), com Rita Azevedo Gomes em “O Som da Terra a Tremer” (1990), Teresa Villaverde em “Idade Maior” (1991), por exemplo.

Acredito que essas primeiras obras coincidiram com os anos após os meus estudos no Conservatório de Cinema. Ainda estava no conservatório quando comecei a trabalhar com o Fernando Mato Silva, por exemplo, montando conteúdos para televisão e até documentários encomendados [Cinequipa]. Foi uma fase intensa, repleta de informação – uma verdadeira corrida, mas tudo ótimo. Entre os primeiros filmes que montei, destaco "A Conversa Acabada" do João Botelho (1981). Nessa época, terminei os três anos do curso, que ainda estava a decorrer no conservatório.

Estávamos nos anos 80, numa época em que o instituto não se chamava ICA, mas ICAM ou IPACA – qualquer um desses nomes. O "A" referia-se ao audiovisual, e acabei por estar envolvida nessa transição. Houve uma política de apoio, que talvez tenha começado com o [Alberto] Seixas Santos, focada nas primeiras obras. No início, não havia tanto apoio, mas depois começaram a surgir concursos especiais para as primeiras produções. Eu e os meus colegas também nos inscrevemos, embora eu já tivesse algumas experiências anteriores ao conservatório, tendo vivenciado outras fases da minha vida.

Tinha estado em dramaturgia no teatro, e além disso, fiz um curso de economia, mas sempre mantive uma ligação muito forte com os livros. Gostava muito de ler e, com o tempo, comecei a escrever argumentos para filmes, cenas, situações e gestos. No entanto, naquela altura, isso não teve financiamento. Depois, continuei a acompanhar os meus colegas e as novas pessoas que estavam a surgir no meio.

Na altura “novos”, agora veteranos [risos] …

Apareceram depois do Paulo Rocha e do Fernando Lopes, e havia também o Seixas. Estávamos inseridos naquele núcleo formidável que incluía o António Reis, um ambiente muito inspirador. Transitávamos por ali, muito tocados por essas influências. Para mim, tudo o que falei sobre montagem e sobre a forma de dar aulas está profundamente ligado ao Reis. Naquela altura, no entanto, era mais brincalhona e não sabia bem para onde ia.

O que pensa sobre os novos processos de “montagem”? O digital?

Gosto muito do lado da montagem com película, mas não tenho nada contra as novas tecnologias. O que aprecio é o aspecto táctil da montagem, que não precisa ser necessariamente o toque da matéria. Essa dimensão táctil pode ser uma conexão mais ampla que se estabelece com os filmes, não é? Não sei se isso faz sentido, mas, às vezes…

Sim, pode-se dizer que o filme está dentro de uma bobina; sabe-se que aquilo é o filme, não é um ficheiro. O cinema como matéria, como algo físico, que toma espaço.

Mas é possível um estabelecer com esse “filme de ficheiro”, estabelecer uma relação também de tacto. Mas, pronto, essa ideia do táctil e dos grandes planos vem já desde Griffith e outros. Por falar nisso, há dois dias, vi aquele filme que o Victor Erice fez em Guimarães, chamado "Vidros Partidos" (2022). Viu?

Sim, fazia parte de um conjunto de obras que formavam o “Centro Histórico”, tinha um filme estupendo do Pedro Costa, e outros mais curtos de Aki Kaurismaki e Manoel de Oliveira. O do Erice é emocionante, recordo aquele momento em que se toca o acordeão virado para uma enorme fotografia que juntava todos os trabalhadores daquela fábrica. 

É de chorar, e não sabemos bem porquê. Quer dizer, suspeitamos que tenha a ver com o processo de produção. Mesmo uma coisa tão objetiva e material, de repente, ganha uma dimensão fulgurante, uma intensidade que perdura do princípio ao fim, envolvendo cada uma daquelas pessoas. E, sabendo também o método que foi utilizado na realização, é uma fábrica têxtil que deixou de operar e cujos trabalhadores ficaram desempregados. Não interessa muito o “enredo” agora, mas o que realmente conta é o método de trabalho que o Víctor Erice adotou: ele trabalhou com cada um dos desempregados e, a recolher os depoimentos deles e na reescrita deles. Assim, cada um deles decorou o texto resultante disso e, diante da câmara, recitaram as suas próprias histórias e experiências na fábrica, principalmente o trabalho de fabrico. Esse processo é absolutamente fascinante.

O facto de eles dizerem o texto de cor e notarmos, através das suas expressões, que cada um tem a sua própria maneira de lidar com a representação é incrível. Passa a ser uma demonstração poderosa do que o cinema e a representação podem fazer com as pessoas e as suas situações. Não consigo explicar muito bem essa emoção; é quase inexplicável. Mas é como uma gravidez, algo que se desenvolve dentro de nós. Pronto, agora, não sei por que estávamos a falar disso … [risos]

Vidros Partidos (Victor Erice, 2012)

Mas, ao recuperar essa memória dos “Vidros Partidos”, tem acompanhado o cinema recente? Acha que falta algo ao cinema português de hoje, especialmente? Ou acredita que está no bom caminho, como nos fazem crer?

Acompanho sempre o que vai saindo no cinema, mas não gosto de vê-los logo de início; prefiro esperar um pouco, é como com os livros. Também não gosto de ir às livrarias comprar os títulos que estão em destaque, gosto de adquirir os livros mais tarde. O mesmo acontece com os filmes. Contudo, acho que há coisas boas a surgir. Não tenho uma opinião definitiva sobre todos eles; ou seja, aprecio algumas obras, enquanto outras não me agradam tanto, especialmente em relação à estratégia e à postura do realizador em relação ao que pretende filmar. Mas isso não significa que não reconheça o valor de algumas obras. Por exemplo, gostei muito de um trabalho do Marco Martins que vi na televisão, um filme sobre espectáculos que foram realizados…

“Um Corpo que Dança” (2022)? Do Ballet Gulbenkian?

Talvez, agora não me lembro do título. Um filme muito bonito, repleto de montagem, montagem e mais montagem. Gostei imenso. Mas, pronto, o cinema está muito ligado às experiências que se têm ao ver os filmes. Portanto, habituo-me, nas aulas, a não expressar opiniões de forma unilateral, como se agora fosse dizer se este filme é bom ou não. Nem pensar.

Não puxa os “galões”: “trabalhei com o João César Monteiro, ou algo assim” [risos]? 

Nada disso. E isso não é produtivo, pois só cria facções e divisões. A única coisa que fazia nas aulas era selecionar pedaços de filmes, alguns filmes inteiros, e estar ali a analisá-los em profundidade. A ideia era compreender o que está a ser feito e como se faz, e, acima de tudo, como podemos fazer. Portanto, era uma aprendizagem teórica, focada na teoria da montagem e em todos esses aspectos. O objetivo era resolver problemas, porque há coisas tão difíceis de filmar. Como é que podíamos filmar isso? Ver exemplos era o normal.

E isso permitia, nas aulas, uma oportunidade valiosa: ter uma simbolização do que se pensa. Ou seja, dar aos alunos instrumentos para expressarem o que querem dizer, por palavras, sobre os seus filmes e sobre outros filmes. Passar por esse plano de reflexão é importantíssimo. Eles começavam a perceber ou a gostar — não sei se realmente sabiam —, mas gostavam de dizer coisas que sugeriam e que estimulavam a nossa atenção, pois tudo é uma questão de atenção.

Nas aulas de cinema, a prioridade era captar a atenção. 

Só uma última pergunta, se me permite, para finalizar. Sou bastante curioso: você trabalhou com João César Monteiro [montagem de “À Flor do Mar”, 1986], como já mencionou. Gostaria que me contasse sobre essa experiência? Foi difícil trabalhar com ele?

Não, ele era encantador. 

Estava a montar na Tobis, que era muito giro, porque havia várias salas de montagem, e nós, montadores, pegávamos numa e andávamos de uma para outra, conversávamos, assistíamos a filmes, trocávamos ideias sobre o que fazer ou não fazer nos respectivos filmes ... Era uma verdadeira caverna! E ao mesmo tempo uma comunidade de afinidade e disponibilidade. Havia também muitas sacanices. 

O César veio me dizer que estavam com um problema com o “Silvestre” (1981). Era uma cena enorme filmada em estúdio com o Jorge Silva Melo como ator. Ele falava, falava e caminhava sobre um palco cheio de brita e areia. Eu disse: "Olha, ele está a falar, mas aquilo estava inaudível". Precisavam de ajuda muito concreta para resolver isso, mas era algo bem pontual.

O que aconteceu foi que gravaram N takes para cada fala do Jorge Silva Melo, e era preciso ver as takes e organizá-las na mesa de montagem. Foi preciso dobrar tudo, tirar o som direto — em película tudo era magnético. O Vasco Pimentel estava a trabalhar no som, mas pediram-me esta tarefa específica de retirar aquele som, escolher as takes e sincronizá-las.

Correu muito bem! Conclusão: passado algum tempo, o César me convidou para montar “À Flor do Mar”. Entretanto, tive uma filha e, a certa altura, não aguentei estar separada dela. Uma parte do filme foi montada pelo José Nascimento, e eu ficava inquieta por causa do bebê, já que estava fora de Lisboa

Fica a minha homenagem: Os Filme!!

Hugo Gomes, 14.06.23

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A Filha da Mãe (João Canijo, 1991)

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Recordações da Casa Amarela (João César Monteiro, 1989)

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Pesadelo Cor de Rosa (Fernando Fragata, 1998)

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Rosa Negra (Margarida Gil, 1992)

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O Sangue (Pedro Costa, 1990)

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O Convento (Manoel de Oliveira, 1995)

 

Teresa Ferreira (1940 - 2023) colorista 

Falando com Rita Durão, uma mulher de cumplicidades ao som de Mozart

Hugo Gomes, 14.12.22

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Rita Durão em "Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Encontros e reencontros sempre centralizaram o espírito criativo de Eric Rohmer (que hoje poderemos afirmar como um dos nomes mais influentes do dito cinema moderno). Nessa sua familiarizada demanda concebeu com “O Trio em Mi Bemol”, a sua única peça de teatro, numa revisão aos elementos humanos, passado e presente de braços dados enquanto visualizam o Futuro a passos de si. 

Porém, não estamos perante um trabalho integralmente rohmeriano. “Éric Rohmer est mort”, cantarolava Clio acompanhada por Fabrice Luchini, e as suas estâncias rumaram para outras mãos, e para outros formatos. Rita Azevedo Gomes apodera-se desse material e compõe um filme a três dimensões, um teatro inicialmente delineado, um realizador (Adolfo Arrieta) com ambições de gerar televisão a partir daquelas relações e por fim, um filme, Cinema, aí parido num “salta-pocinhas” de linguagens e estéticas. 

Segundo a realizadora, a obra foi fruto da colaboração dos seus “amigos”, artistas unidos levados a cabo para materializar e musicalizar esta visão, entre eles, calejada aliada do seu Cinema, Rita Durão, atriz que como Rohmer valoriza relações e afinidades, o seu conjunto funde Arte.

Em conversa, Rita Durão falou-nos do projeto e do seu contacto com a (outra) Rita, o seu círculo e ainda prestou a conhecermos esta protagonista. Esta “Mulher Vingativa”. 

Gostaria de começar pelo início, pelo seu envolvimento neste projeto, e sabendo que o “Trio em Mi Bemol” estava planeado ser um rádio drama ao invés de um filme.

A Rita [Azevedo Gomes] tinha-me falado deste projeto, antes de ele se tornar num filme, era um fruto da sua vontade e de verbalizar essa ideia. A conversa inicial não tinha qualquer intenção de convite à sua participação. Depois recebi um telefonema da Rita a propor-me a participar no seu então decidido filme, só que ela propunha começar a filmar no dia seguinte. Ora bem, tinha uma “carrada” de texto para decorar e a juntar isso, o meu “pouco à vontade” com o francês, estando na dúvida se aceitaria ou não. Pensava, “isto é uma grande ‘maluquice’, é muito texto em tão pouco tempo e ainda por cima em francês  … não sei se serei capaz.” Sentimentos de dúvida que embateram no meu instantâneo entusiasmo em ouvir aquela “cor” na voz da Rita ao telefone, do qual dá sempre uma vontade em “correr atrás” do seu desejo. Isto porque existe uma energia entre nós que funciona muito desta forma … por isso acabei por dizer que “Sim”. E pronto … o filme fez-se. 

Apesar de não ser um entendido a francês, alguns colegas meus notaram durante a projeção de Berlim [o filme estreou nesse festival] sobre a sua pronúncia. Mais tarde, a Rita Azevedo Gomes revelou que Rita não sabia falar francês, como me confirmou agora. 

Não, porque nunca tive francês na escola, e portanto acabei por ter, o que chamo, de um certo “francês de praia” [risos]. 

Recordo que no Teatro da Cornucópia, o Luís Miguel Cintra convidou a Christine Laurent para encenar uma peça - “O Lírio” de Ferenc Molnár - e na altura ela precisava de um assistente de encenação. Não sei bem como a ‘coisa’ aconteceu, mas acabei por ser a tal assistente. Entrei em pânico porque não sabia falar francês, e a Christine nem português, mas ao longo do processo, passadas algumas semanas, já me lançava nestas aventuras da língua estrangeira. A Christine também tentava desvencilhar no português, e se havia alguma dúvida entre nós, requisitavámos o inglês como auxílio. Portanto era umas conversas bastante misturadas [risos]. Esta experiência acabou por me dar, de uma forma bastante natural, uma aproximação ao francês. Também acabo por ler ‘coisas’ em francês, livros e até filmes que me vão acompanhando, e quanto mais fundo sigo na língua mais entendo o quão próximo está da nossa. 

Mas para este filme, com a quantidade de diálogos, acabei por recorrer e muito ao Olivier Blanc - um excelente diretor de som que se encontra em Portugal há vários anos, o companheiro da Rita Azevedo Gomes nos seus filmes, e qual cruzamos não só nesse universo mas também em outros trabalhos com outros realizadores. Ele ajudava nos meus ensaios. Gravamos por via dos telemóveis e com isso aconselhava o quanto e como teria que aperfeiçoar a minha pronúncia, por exemplo, sendo que não era uma opção do filme, visto que a Adélia, a minha personagem, assume-se como portuguesa. Por vezes o preciosismo da língua não era levado ao extremo, como tínhamos o propósito de "construir" algo agradável e que fizesse sentido. 

A juntar a isso, os ensaios por Zoom com o Pierre [Léon], que interpreta Paul no filme, sempre companheiro, estando disponível 100% para me ajudar a melhorar a língua, porque, francamente, há palavras bastante difíceis para mim, principalmente em termos de pronúncia.

Mas o filme, foi essa força conjunta em ajudar ao máximo o próximo. 

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Rita Durão em "As Bodas de Deus" (João César Monteiro, 1999)

Outro ponto referido pela Rita [Azevedo Gomes] é que a língua não poderia ser entendida como uma barreira à sua participação, visto que ela desejava manter a química encontrada entre si e Pierre Léon.

De facto, eu e o Pierre tivemos mais tempo juntos durante a rodagem do filme, e virtualmente, através dos nossos ensaios via Zoom. Eu o conheci em … julgo ter sido em Locarno, o qual acompanhei a Rita com um outro filme dela, e aí fui apresentada ao Pierre e automaticamente nos demos naturalmente bem. De alguma forma, penso que a Rita guardou essa memória, esse sentimento, pelo que mais tarde lá reencontramo-nos durante “A Portuguesa”, uma experiência que adorei. O meu papel nesse filme era muito secundário, julgo só ter tido uma deixa e era algo baço, mas encontrava-se constantemente presente em cena, e com isso ia observando tudo à minha volta. Porém, aconteceu uma interação entre nós que deslumbrou a Rita. Julgo que foi a maneira como nos relacionamos um com ou outro nessa determinada cena que a marcou, guardando os ingredientes necessários para nos voltar a juntar. “Um dia, gostaria de juntar a Durão e o Pierre num filme, e ver o que isso gerará”, deve ter pensado, pelo menos, é o que me deu a entender no tal telefonema. 

Desde “A Conquista de Faro” (2005) que a Rita [Durão] tem sido recorrente nos filmes da Azevedo Gomes. Sente que, de certa forma, o Cinema dela encontra-se inteiramente ligado à sua figura?

Francamente, não me lembro como é que conheci a Rita, mas recordo de estar na “Conquista de Faro” e aperceber-me da química que estávamos a criar. Ela gosta particularmente de trabalhar com equipas pequenas, mais íntimas possíveis, sendo uma característica que também me interessa, porque permite uma observação de tudo que está a acontecer. Outra característica da Rita é de manter-nos envolvidos intrinsecamente no projeto e levar-nos a irmos além do nosso respetivo ofício. Ela proporciona esses momentos, enquanto realizadora, não guarda as dúvidas para com ela, partilha-as com a equipa e incentiva a procurarmos uma solução juntos.

Sinceramente, acho que fomos criando uma cumplicidade. Começou com os momentos artísticos e foi saltando para nós enquanto mulheres e depois enquanto amigas. Sim, é sobretudo uma relação de amizade.

Mas foi com Rita Azevedo Gomes que teve, possivelmente, um dos momentos altos da sua carreira no Cinema. Refiro a “A Vingança da Mulher” (2012), filme que a colocou como plena protagonista e que a premiou com a distinção de Melhor Atriz da Sociedade Portuguesa de Autores. 

Não sei. Não com isto dizendo que não estou agradecida aos prémios, dos quais são bons de receber, tratando-se de uma prova de que o nosso trabalho é reconhecido, assim como o filme e da equipa também … mas o que importa referir aqui é que a “A Vingança da Mulher” foi um filme bastante especial resultante de um trabalho intenso e conjunto entre mim e a Rita. Nós nos reunimos, com a devida antecedência, para preparar este filme. Intensamente discutimos essas ideias, as cenas, os diálogos, a dicção. Aí houve um trabalho muito grande entre a pessoa que diz, a que escuta, a que realiza e a que vai encenar. Uma consolidação de uma grande proximidade que já se adivinhava, seja de projetos anteriores, mas acima de tudo, e devido à natureza do filme e a do meu papel, originando horas e horas de conversa a propósito do mesmo e na órbita desse mesmo filme. “A Vingança da Mulher” abre a janela para outros temas e outros entendimentos. 

Fora Rita Azevedo Gomes, existe outra realizadora o qual tem sido presente nos seus trabalhos - Catarina Ruivo - desde a sua primeira longa-metragem (“André Valente”, 2004), passando por “Daqui P’rá Frente” (2008) e contracenando com o ator Pedro Hestnes, no seu último papel (1962 - 2011), em “Em Segunda Mão” (2012).

Sim, é verdade, também tenho uma cumplicidade com a Catarina. Obviamente que são pessoas bastantes diferentes, mas acabo por me identificar com elas da mesma maneira. São duas mulheres importantes para mim de alguma maneira, lançam-me desafios, deixem-me integrar na concepção dos respectivos projetos e são “abertas” para mim. Gosto de as escutar. 

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Leonardo Viveiros e Rita Durão em "André Valente" (Catarina Ruivo, 2004)

Gosta de que lhe desafiam artisticamente?

Sim, gosto [risos].

Distanciando destes dois universos, a Rita partilhou uma romã com João César Monteiro em “As Bodas de Deus” (1999) … 

Sim. O Cinema é também isso, a vida a “mexer-se” e o meu primeiro encontro com o João César Monteiro foi desencadeado por esse mesmo movimento. Ele procurava alguém para aquele papel e eu acabei por cruzar-me com ele, o que me garantiu a personagem. E a verdade é que por questão geracional, ambos [Rita Azevedo Gomes e João César Monteiro] acabavam por gostar das mesmas ‘coisas’, frequentavam os mesmos círculos culturais, sendo normal que tivessem a mesma aproximação, o mesmo universo, a mesma familiaridade. 

Com o João César Monteiro ainda trabalhou em “Branca de Neve” (2000) …

Eu não participei no “Branca de Neve”.

Mas encontra-se creditada no projeto.

Sim, tenho conhecimento disso, mas não sei porquê. Era para participar, mas por algumas razões não cheguei à fase final do filme. Não apareço no filme.

Acho que ninguém “aparece” no filme [risos]

Sim. [risos]

Prosseguindo, depois participou no “Vai e Vem” (2003), o último filme do César Monteiro. Como foi trabalhar com ele? 

Essa é uma pergunta que me fazem tantas vezes. Tive uma relação muito especial com o César, aliás a minha forma de trabalhar é, prioritariamente, de criar laços de cumplicidade, gerar uma relação de cuidado para com a pessoa e para aquilo que me é proposto. 

Eu gosto muito de observar os realizadores, da mesma forma que eles nos observam, também gosto muito de observá-los. 

Nesse seu campo de observação e visto possuir uma carreira que oscila entre o Cinema e o Teatro, tenta "transferir" experiências de um território para o outro? 

Sim, porque as ‘coisas’ não devem ser arrumadas nos seus cantinhos como gavetas. As gavetas devem permanecer “semi-abertas” para que deem espaço para criação e transferência de ideias de um território para o outro. Pelo menos penso dessa forma, porque muitas vezes eu roubo do Cinema, elementos que levo para o Teatro e assim sucessivamente. 

E quanto ao Teatro, existe uma certa afinidade deste território no cinema de Rita Azevedo Gomes.

Sim, há uma construção de cenas e situações que nos remetem ao universo teatral. Cada cena decorre num determinado sítio e num determinado tempo que é permitido de alguma forma ser inventado ou reinventado, e todas aquelas cenas possuem um significado, uma representação, cabe ao espectador tentar compreendê-las e sucessivamente encaixá-las. Soa tanto a Teatro.  

Só que no Teatro existe um contacto direto com o seu público no ato da sua criação, não uma reação à posteriori.

Sim. Mas antes da peça em si, existem os ensaios. É um pouco de Cinema dentro do Teatro, que por sua vez, acaba por ser o Teatro dentro do Cinema. Essa questão do público é uma questão de consciência, nós sabemos que o que fazemos irá ter um público em determinada altura, portanto, tentamos antecipar essa reação, seja no Teatro, seja no Cinema. A grande diferença, é que no Teatro, por vezes temos uma reação direta e manifestante, por exemplo, o riso ou a tensão, a energia emanada no público. No Cinema, não temos essa energia, mas temos outra libertada na cena, na cinematografia, ou entre nós, no qual sentimos, depois temos a restante equipa que nos observa, um público improvisado, naquele preciso momento é como se tivéssemos uma espécie de Teatro íntimo. 

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Rita Durão em "A Vingança da Mulher" (Rita Azevedo Gomes, 2012)

Qual é a sua “reação” ao termo que tem ganho uma conotação pejorativa que é “teatro filmado”? Relembro que é diversas vezes dirigido ao cinema português.

Não tenho muito para dizer sobre isso. Acho que o “teatro filmado” pode ser algo extraordinário desde que faça sentido a sua existência. Quanto à conotação … sinceramente, não sei muito bem o que dizer.

Falou-me há pouco do francês vindo dos “filmes que a acompanharam”, pergunto se Éric Rohmer entra nesse cardápio?

Não entra muito, para dizer a verdade. Quanto a Rita falou comigo sobre o projeto, percebi que não era um realizador do qual acompanhava. Na altura, achei por bem não ver nada dele para que não haja influências. O que fiz, e do qual adorei fazê-lo, foi consultar as suas entrevistas, o de ouvi-lo falar sobre os seus pontos-de-vista, do que pensava, da sua perspectiva quanto à Arte, à Vida sobretudo. De resto, tentei manter-me como uma “folha em branco”, preferi essa abordagem ao invés de me aprofundar no seu universo cinematográfico Se tivesse feito isso, teria como consequência de me sentir aquém do seu estilo ou algo do género, e nisso condicionar-me. Senti que os filmes poderiam ter um efeito diferente no “O Trio em Mi Bemol”, poderia não funcionar a aproximação do mundo da Rita com o do Rohmer, por isso evitei essa abordagem. 

E no final disso tudo - depois do “O Trio em Mi Bemol” - não ficou com vontade de espreitar a sua cinematografia?

Fiquei, mas confesso que não tenho tido o tempo necessário para o fazer. A correria entre o trabalho, os filhos, as peças para ler, não permitem aquele “tempo de qualidade”, que por vezes é essencial para a nossa receptividade. Julgo que o Rohmer merece melhor. 

É sabido também que vai ou já esteve a trabalhar com o Luís Filipe Rocha na adaptação do livro de João Ricardo Pedro, “O Teu Rosta Será o Último".

Estive a filmar com o Luís Filipe este ano, do qual terminamos no início de maio, e … pelo que vou sabendo, está praticamente pronto. Mas não sei mais detalhes nem sequer quando estreará. 

O fiel amigo Cinema

Hugo Gomes, 17.10.22

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Descobri, ou melhor, fui “relembrado” neste “Olho Animal”, de Maxime Martinot, através da sua formidável colectânea de 250 excertos de cães no Cinema, de que o primeiro animal puramente cinematográfico foi … esse mesmo … o canino. E este “post-it” surge-nos na forma do primeiro “documentado” filme (propriamente dito), a saída dos operários da fábrica de Lyon dos irmãos Lumière [“La Sortie de l'usine Lumière à Lyon”, 1895]. É que por entre aquela vislumbrada massa humana que dá por terminado o seu turno laboral, e antes da carroça e o seu solípede surgirem em cena, um cão, esquivando das passadas de homens e mulheres prontos a deleitar do seu merecido descanso doméstico, apropria-se do plano. 

O animal-fílmico, aqui, no gesto de Martinot, é o intitulado “cão-cineasta”. Será ideia inspirada nas provocações de João César Monteiro que tentaria reduzir o seu estatuto enquanto cineasta numa comparação com um canídeo? A verdade é que “Olho Animal” parte, erraticamente, como um “vira-lata” por entre as diferentes teses e temáticas. Seguimos um percurso algo evolutivo, mirando lentes ópticas de chocos e peixes-luas como primeiras estâncias, até percebermos que é Lisboa o nosso cenário e casa, e aí, os cães apropriam-se do filme, da fílmica e da filmagem. Eles coletam memórias, cinéfilas, apoiados nas suas quatro patas, exibindo os seus famosos dotes de fiéis amigos, e, como muito bem mencionado, “devolve-nos o olhar sem expectativas”. 

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João César Monteiro e o "cineasta-cão"

Digamos que há todo um ensaio eclético, o da colheita [como havia referido], a do intimismo abstracto [a diluição das memórias afetivas a dois cães como ode do companheirismo canino] e por a fim … perdoem-me “amantes de caninos” por achar o foco de maior interesse … um manual de construção de um cinema resiliente e expressivo em Portugal. Ou seja, o dilema que serve e núcleo da obra é imposta por Hugues Perrot e Raquel Scheffer, interpretando realizador e produtora respetivamente, discutindo a criação de um filme de raiz, “pedalando” pelas suas mais diferentes etapas. Nesta suposta narrativa cuja ideia vai culminar no reencontro do hipotético “cão-cineasta”, serve-nos de retrato de como e porquê de fazer cinema em Portugal, sem com isso respeitar (e desrespeitar) os moldes comerciais, exibindo na tela o, somente, nosso mais íntimo desejo. Há uma predominância do “EU” neste tipo de cinema, e é bem verdade que “Olho Animal” está consciente desse elemento na primeira pessoa, possivelmente satirizando na entrega da mais pura declaração: “o Eu torna tudo melhor”. Por entre esta mixórdia de temáticas, é normal, nós, espectadores, sentirmos desnorteados, mas é nessa desorientação do qual somos envolvidos com o filme. 

Se “Olho Animal” é um filme-diário antropológico, ou um filme autobiográfico, ou até mesmo um filme-diário animalístico, tal absolutismo não estamos encarregue de decidir, a natureza deste “cinema-animal” poderá ser entendida como um objeto de cura - “Filmar o meu cão para afastar a minha ansiedade”. Ou, quem sabe, atribuir a um filme o que associamos como propósitos de um animal de estimação.

Talvez tenhamos mudado as placas e distorcido as falsas-noções à la Magritte: “Olho Animal” é um cão, enquanto o cão é um filme. 

Passeio com João de Deus

Hugo Gomes, 04.10.22

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A Comédia de Deus (1995)

O isolamento leva-me a este estado de espírito, e este estado de espírito a João César Monteiro. É uma espiral viciosa de melancolia na “boa” companhia de João de Deus, que me enche de um sentimento inexplicável de “saudade” (essa palavra, ou antes sentimento que desejamos nós, portugueses, “vender” como exclusiva), ao mesmo tempo refletindo a suja natureza da perversão, encostando-o a uma naturalidade hoje inconcebível. João, o padroeiro das prostitutas e dos loucos, de Lisboa concretamente, é aqui uma criatura rastejante que nunca busca o perdão nem sequer a consolidação para com a Ordem Sagrada, vive, mais que vivendo, alimentando-se dos prazeres da carne e do desejo incontrolavelmente mórbido. 

Em “A Comédia de Deus” (1995), segundo tomo da jornada deste singular alter-ego, que depois da entrada no Paraíso nada solicitado em “Recordações da Casa Amarela” (1989), refugia-se numa gelataria prestigiada, criando sabores excêntricos de teor nacional, e gerindo com luva e desinfetante o mesmo espaço. Sabia ele onde se iria meter! Não é só o cremoso deleite multi-sabor deste “Paraíso” (nome da gelataria é por si uma ironia do destino) que o faz “perder a cabeça”, são as colaboradoras, jovens (e cada vez mais jovens) que se encontram na sua alçada a sua derradeira perdição. Mimi, essa musa deixada para lá das memórias da “Casa Amarela”, converteu-se num fantasma, invocada sob o aviso do próprio Deus (o de enfiar um “dedo no cu” em seu tributo), contudo, a inocência é novamente fruto de ruptura - Rosarinho e Joaninha - esta última, filha do açougueiro, será objeto-mestre do seu fetichismo. 

Mas não nos gratularemos por estarmos na presença de um velho “javardolas”, vampiro da jovialidade de outros (ou melhor outras), João de Deus, a criatura soturna de imensas artesanias é um romântico boêmio da melhor (e de pior) espécie. Passeia-se pelas ruas de Lisboa, observando, mentalmente anotando o seu quotidiano. Pelo seu redor, busca a beleza máxima, inexistente da sua mortalidade. São as peregrinações conciliadas com Johnny Guitar, servindo de mote a uma das três curtas experimentais ou prototípicas de “A Comédia de Deus” [“Passeio com Johnny Guitar”]. Neste objeto de somente três minutos de duração, Deus numa das suas incontáveis insónias, divaga pela noturna vida alfacinha. 

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Passeio com Johnny Guitar (1996)

O seu corpo pertence aquele terreno, mas a sua mente não, nela ouvimos recitação de “Johnny Guitar” de Nicholas Ray, mais concretamente o diálogo (“What took you so long …”), ou um tímido cantarolar de Monteiro perante essas mesmas invocações. A noite torna-se efêmera, dando lugar a um amanhecer cujos primeiros toques luminosos despertam os madrugadores para mais uma conta à sua passagem vivente. João de Deus assume-se como testemunha daquele “milagre”, cansado nessa sua existência arrastada, porém, paciente para com a vinda do novo dia, da nova rotina, da repetição e consequentemente a prisão mental que havia criado. Talvez seja esta a curta que emancipa-se da “Comédia’”, ao contrário da dicotomia “Lettera Amorosa” e “O Bestiário ou Cortejo de Orfeu”, sequências ensaiadas e mais tarde integradas na longa-metragem, que por sua vez, ambos cortejos para “desvirginar" as respectivas musas. 

Voltando à “A Comédia de Deus”, o filme que concilia essa visão, esse sadomasoquismo de uma persona autodestrutiva, cuja utopia é o motivo para a sua deturpação. Não é só de “meninas” que Deus coleciona, é também as “memórias” impostas num livro de pensamentos, uma coleção cujo maior troféu se resume à “pentelheira” da Rainha Vitória (“God shave the Queen”, brada aos céus perante o presente agraciado). Esse álbum sintetiza não só a sua natureza, como também o tom caótico do filme, uma fachada que desmorona perante o incauteloso "pedreiro”. Assim João de Deus parece auto-sabotar a sua harmoniosa vida na solidão. Desde o seu cargo na gelataria, dando a provar um sabor asqueroso ao crítico Jean Douchet, aqui eventual sócio para uma fusão empresarial, mas antes dignar-se a um discurso contra os “reptilianos” políticos, condenando-os a rastejar para toda a eternidade ("És réptil e em réptil te tornarás”), isto sob a presença de um alto promissor na política portuguesa. 

Claro que o apogeu da sua destruição está na concretização do seu lado perverso, dos banhos de leite à cornucópia de ovos, ritos calculados e obscuros subjugados à Joaninha, a sua nova coqueluche, que com carinho a encaminha para o ninho da sua fantasia (“até parece que estou a chocar pintainhos", diz tão docemente que até desejamos "libertá-la" daquele “circo”). É o seu erro, deixar que a fronteira do seu fetiche se ceda, indignando quem anseia pelo “ajuste de contas”. Só que João de Deus escapa, de dedo médio esticado para aqueles que lhe dirigem a sentença da sua morte (o gesso não impede de tomar atitude obscena). A lição, ou antes, a moral aqui praticada deve-se pouco, a somente condenar-nos a ficar.

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A Comédia de Deus (1995)

Digamos que Monteiro não esculpe o tempo, faz do espaço a sua morada e da bizarria no seu quotidiano, sentimo-nos na normalidade naquela presença. João de Deus, aqui, desce aos Infernos em busca da sua “Beatrice” como a Divina Comédia de Dante (o título não é coincidência) e regressa de lá de “mãos vazias”, a experiência, essa, a condenação ao espectador, é de uma acidez satírica, que nem sequer “limpou-lhe a alma”. Monteiro como Deus troçam do espectador, e nesse gesto de clemência, rasga a pele de “clown” precisamente catalogado em “Casa Amarela”, é antes disso um sátiro, essa criatura anedótica, meio homem, meio cabra, que encara a sua trágica existência como a comédia de uma vida arrastada. Porém, acima de qualquer simbologia, qualquer alusão teológica e mística nesta sua erudição, é a melancolia de um homem que condena outros, quer a ficar ou a rastejar, mas condenado a si, a procurar-se por entre aqueles costumes seus, nada brandos, envolvidos na mais corroída solidão. No fundo, toda esta trilogia não passa nas crónicas de um homem só e que só permanecerá.  

E assim, é o desejo, esse diabo no corpo, visto como escape da monotonia dos seus dias. O jejum é a força de um espírito que cede como revolta à banalização de que tornamo-nos. Monteiro / Deus, ego e alter-ego, são somente “carne fraca” que aguardam o fruto proibido, essa tentação que um dia expulsou Adão e Eva do seu predestinado Eden. Por quem ou porquê, não sei explicar, mas olhem, entre mortais e diabretes alguém terá que escapar.

"Hello darkness, my old friend"

'Non' ou Vã Glória de Salvar o "Cinema Português"

Hugo Gomes, 14.03.21

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Fade to Nothing (Pedro Maia, 2017)

Recordo vagamente de um diálogo à saída de uma das sessões da 14ª edição do Indielisboa. Estávamos em 2017 e o filme em causa era o ensaio visual e sonoro “Fade to Nothing”, a estreia de Pedro Maia no universo da longa-metragem, com a participação do artista musical Paulo Furtado, ou como é renomado de The Legendary Tigerman. A conversa em questão surgiu devido a uma certa indiferença por parte de quem debatia comigo quanto à experiência, finalizando com uma pergunta sem resposta alguma para devolver – “É este filme que salvará o Cinema Português?”.

Há muito, mas muito, quase como uma cruz pelo qual arrastamos praça adentro, discute-se um eventual “salvamento” do nosso cinema. Para satisfazer os prazeres da carne, ou entretenimento, como muitos defendem, ou por fim, restaurar uma ligação emocional com o perdido espectador que depara com uma instituição demasiado hermética e umbiguista. Conforme seja a causa trazida, uma ‘coisa’ é certa, todos nós esperamos por uma entidade sebastiana, aquele que irá romper o nevoeiro com a finalidade de colocar a nossa cinematografia no mapa. Enquanto essa figura messiânica não chega, arrecado com uma certeza, o cinema português não precisa de ser salvo, além disso, o que precisará, é de uns certos ajustes. Diria mais, localizados, mas isso são “outros cinco tostões”.

Em conversa com Rui Alves de Sousa no seu podcast À Beira do Abismo, reforcei o meu amor pelo cinema português, o “cinema que mais amo, porque é o meu”. Talvez um sentimento algo familiar nasce em mim no que refere a defender este universo, até mesmo durante os seus expositivos fracassos. Mas o cinema português é o meu maior interesse no que refere a cinematografias, é o nosso mundo, e é aquele que mais dialoga ou partilha o nosso espírito identitário, mesmo que muitos do espectadores não o revejam, esse é o Cinema que nos acompanha, que nos faz discutir com os nossos “eus” enquanto nação (para o bem ou para o mal).

Mas o cinema português não fala do real Portugal.” Muitos argumentarão desta maneira. Contudo, o que é o real Portugal? O Portugal rural? Esse, sempre presente em muitos dos nossos ensaios documentais, etnográficos ou memorialistas que buscam esses biótopos desgastados pela decadência e os fluxos migratórios dos mais jovens para as metrópoles. Portugal cosmopolita? Lisboa que sempre foi o focus de atenção nas nossas lentes e o Porto que serviu de berço à nossa atividade cinematográfica. Mas afinal, qual Portugal estamos nós a falar ao certo?

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Sangue do meu Sangue (João Canijo, 2011)

Então os problemas do nosso país? O nosso cinema só quer saber de artistas e lirismo.” Se o distanciamento pode ser traduzido por isso, então há uma novidade para vocês – a ordem natural (novos realizadores, novos olhares) que tem apostado cada vez mais em temas raros na nossa cinematografia, e porque não, de cariz social. Abordamos a austeridade num prisma humano e por via de uma narrativa centrada no realismo encenado (“São Jorge” de Marco Martins ou “Sangue do meu Sangue” de João Canijo, dois exemplos que me vem automaticamente à mente), um constante interesse pela descolonização e no tabu que sempre fora a Guerra do Ultramar (“Mosquito” de João Nuno Pinto, “As Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira, "Our Madness", de João Viana), ou as vozes silenciadas do nosso “querido” Portugal a conseguir o seu palco, por fim (“O Fim do Mundo”, de Basil da Cunha, “Vitalina Varela”, de Pedro Costa).

Mas o cinema português não consegue ser político?" O “ser político” é um terreno mais que pantanoso, as tão acarinhadas comédias portuguesas “estreladas” por Vasco Santana e António Silva eram por natureza materiais politizados (com o seu quê evidente de propagandismo), e na década de 50, Manuel Guimarães trouxe à nossa atividade o neorrealismo (que por si é uma estética politizada) e assim adiante o Cinema Novo (sem falar da vaga militante pós-25 de Abril), ou até mesmo João César Monteiro, que não escondia as suas ideologias (“Sou um intelectual de esquerda”). Na nossa contemporaneidade, quase tudo o que é produzido é formado por gestos políticos, de Miguel Gomes a Teresa Villaverde, de Pedro Pinho a Welket Bungué, de Cláudia Varejão a João Botelho. E se o problema é o ponteiro da rosa-dos-ventos estar direcionada exclusivamente à esquerda, então fica o registo de “Snu” de Patrícia Sequeira ou “Camarate” de Luís Filipe Rocha.

Mas é um cinema demasiado intimista. O cinema português deveria exaltar os nossos grandes heróis”. Mesmo sob uma tremenda estigmatização, não poderemos acusar de Manoel de Oliveira invocar os “bens preciosos” da nossa História, onde até mesmo as derrotas são fruto de inveja entre nações (“'Non', ou A Vã Glória de Mandar”). Como estafetas de tal legado, João Botelho encontrou nos últimos anos, um propósito em consolidar o cinema com a divulgação de trabalhos literários, ou Francisco Manso a tentativa de reafirmar o “filme de época” numa “indústria” de baixos recursos. Enquanto isso, o êxito de “Variações”, projeto de longa data e resistência de João Maia, abriu portas para uma eventual vaga biográfica e musical – “Bem Bom", de Patrícia Sequeira, está na fila para persistir no estilo produtivo.

“Porque é um cinema ‘velho’, não fala com, nem para os jovens”. Como assim? Pedro Cabeleira estreava em Locarno de 2017 com o esteticamente febril “Verão Danado”, um retalho de jovem mal amparados que vivem a noite como não houvesse amanhã, da mesma maneira que Mariana Gaivão exibia a rebeldia numa caverna (uma imagem marcante em “Ruby”), ou o cinema energeticamente pop de “Leviano” de Justin Amorim. Entre outros, basta olhar para as curtas vindas de sangue novo, aquele sangue na guelra que tanto o cinema português deseja e muito bem.

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'Non', ou A Vã Glória de Mandar (Manoel de Oliveira, 1990)

Sim, e antes que perguntem em relação novos géneros, simplesmente deixa acontecer, temos experiências, umas satisfatórias, outras … bem, tentou-se. O tempo é uma ferramenta útil para essa dita diversidade, basta só aguardar. Calmamente …

Quanto ao leitor, a esta altura deverá estar ele próprio a questionar – “então e esses ajustes?”. Se o cinema português precisa de um ajuste, esse seria o de não ser pequeno, ou de pensar como tal. Sabendo que este meio é um nicho que tropeça constante uns nos outros, o refugiarmos na nossa pequenez (um vício tão português) leva-nos automaticamente aos mais variados problemas que acirram ainda mais este panorama. A desunião, a ideologia (não política, mas no modo cinema português deveria ser concebido ou “canonizado”), os egos e o amiguismo que prejudica mais autores do que beneficia-los, “obrigando-os” a abrigar nos seus próprios conformismos.

Não se trata de salvamento, ao invés disso, trata-se de apelo às correntes e olhar para cima. Somos mais do que meras vítimas. 

Participação nos "Os 10 Melhores Filmes Portugueses de Sempre"

Hugo Gomes, 31.05.20

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Convidado para integrar/contribuir na lista dos "Os 10 Melhores Filmes Portugueses de Sempre", uma iniciativa do site Filmspot, que teve o mérito de reunir mais de 100 personalidades ligadas ao setor, entre atores, realizadores, técnicos, jornalistas, programadores e muitos mais. Aqui fica o link para consultar a lista consolidada e definitiva (acompanhada por ilustrações do artista Rui Cavaleiro) e ainda os tops individuais, incluindo o meu.

Ver aqui