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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Tribeca, um Web Summit que se fez passar por Festival

Hugo Gomes, 21.10.24

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Foto.: Ana Baião 

À porta do Doclisboa, discutia-se uma entrevista com Paula Astorga, a nova diretora do Festival de Documentário, ao site C7nema, na qual se destacava o evento como o [sublinhe-se] Festival de Cinema, em oposição ao Tribeca, a acontecer ali ao “lado”, e partilhando datas: “uma centelha, algo efémero e pouco transcendente”. Revoltado com tal afirmação, o meu “cúmplice” de "crimes" e de filmes, apelava à coexistência desses dois mundos nesta nossa conversa, coisa com a qual não pude deixar de concordar, embora não resistisse a criticar aquilo que se pretende vender como o nosso Tribeca.

Tribeca, o festival nova-iorquino, é uma "coisa", a extensão lisboeta na costa do Beato é outra bem diferente, um sintoma do que, lamentavelmente, parece ser o nosso desporto nacional: exaltar o provincianismo. Sob a bênção do presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, e da SIC / OPTO, com um “vaqueiro de prata” para exibir às visitas, o Tribeca Lisboa foi tudo menos um festival dedicado ao cinema. Aliás, de Cinema tinha pouco ou nada, e o que tinha parecia querer esconder debaixo do tapete como se fosse um embaraço. Talvez seja por isso que a palavra "Cinema" surgiu em terceiro lugar no cartaz, depois de "Cultura Pop" e "Talks". Porque, na verdade, este Tribeca importado chega-nos como um empreendedorismo quais-turistico, e apertos de mão e negócios com o seu quê de solarengo alfacinha, uma condição confirmada pela atenção mediática - com Robert De Niro, Chazz Palminteri, Griffith Dune, Patty Jenkins e Whoopi Goldberg a dividir o palco com as caras conhecidas da nossa praça, mas, mais uma vez, com pouco ou nada de cinema para partilhar com os nossos.

Infelizmente, mesmo nessa troca de fluídos, fizemos "figuras tristes". Sem cinema, o festival transformou-se no modelo que os portugueses tão bem conhecem: o da Web Summit, o estilo FIL, de passes caros e promessa de estrelas de Hollywood (poucas, diga-se) a circularem pelos corredores deste negócio metropolitano. A De Niro, a sua presença foi tudo menos cinematográfica, sendo a política, Trump e a sua oposição feroz a encher manchetes e reels promocionais. Do outro lado, a nossa oferta: o "cinema português", representado por César Mourão e séries-pilotos como montra. Alguém consegue explicar aos nossos como também à estrela o que é realmente cinema português, aquela com uma linguagem universal e não citações de fórmulas ou hibridez televisiva, ao invés de o aproximar da produção mista da SIC e a “gang do audiovisual” desejam fortalecer.

Como bem apontou o crítico Vasco Câmara, do jornal Público, bastava alguém sussurrar ao ouvido de De Niro com a dica de que na "terra natal" do Tribeca, em Nova Iorque, estava a decorrer um ciclo de cinema português no MoMA - “The Ongoing Revolution of Portuguese Cinema - que celebra a universalidade e contemporaneidade da nossa produção. Pedro Costa, Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues, Fernando Lopes, Manuel Mozos, Teresa Villaverde, entre outros, filmes tão nossos que o "grande público português" despreza, mas, em vez disso, apresentamos protótipos baratos de enésimas produções hollywoodianas, De Niro e a sua trupe produzem uns quantos “Podia Ter Esperado por Agosto” com uma perna às costas. Como bem disse João Botelho: "patetice por patetice preferem os americanos, que são patetas grandes".

No final, é oferecido um galo de Barcelos, anuncia-se a edição de 2025, e pronto, fica arrumada esta Comic-Con dos CEOs do audiovisual [aqui um fica de um testemunho deste "festa cinematográfica" no site Tribuna do Cinema]. E o triste é saber que temos as condições e as estruturas para acolher um festival internacional à escala de Cannes, Veneza ou até Locarno, o que nos falta é a mentalidade, como também a vontade, para o concretizar.

Entretanto, o Doclisboa prossegue, e é, quer se goste, quer não, um festival de cinema. O outro... nem carne nem peixe. Uma terra de unicórnios …

Ai, Timor! Se outros calam, cantemos nós ... ou não!

Hugo Gomes, 07.07.23

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Timor-Leste, 1942. Quatro homens (portugueses devemos salientar) reunidos num quintal, bebendo cerveja e discutindo geopolítica após o visionamento de uma película sobre aviões-zeros japoneses. A Guerra, essa “mão” nefasta que “infecta” o Mundo, chegará àquele Paraíso pelo ar e proveniente da Terra do Sol Nascente. O medo infiltra-se neste clube privado de privilegiados a léguas da sua Pátria, mas cada um deles fortalece a conversa com um debitar histórico, “fact-checkings” rasgados de uma Wikipédia qualquer (“ninguém fala assim”, pensará intuitivamente o espectador). 

A suposta conversa (se é a que estavam a ter) é interrompida por um forte bater no portão de tal propriedade - “Quem é que bate desta maneira?” - questiona António Pedro Cerdeira apontando em direção ao som e sem um pingo de perplexidade. “Carlos, Carlos, toma cuidado, pergunta quem é”, precavê Marco Delgado ao seu companheiro - neste momento gargalhadas explodem fora da narrativa. Um diálogo no mínimo ridículo, incoerente, mas encenado por alguém que tem conhecido a celebrização nos últimos tempos graças ao spoof de novelas “Pôr do Sol”, o registo dessa série satírica em que o ator interpreta um latifundiário orgulhoso da sua linhagem não difere, em nada, daquela sua personagem - o tenente Pires, como iremos saber mais tarde. 

Mas não se acanhem, a poucos minutos surgem os outros protagonistas desta história da História, os aliados, a frente de batalha australiana liderada pelo capitão Bernard Callinan, aqui sob a pele de Elmano Sancho. Após as suas primeiras palavras, de seguida confirmadas pelo restante pelotão, não poderíamos cair (ainda) mais no ridículo. Falando português fluente sob um sotaque cartunesco, estes australianos seriam o resultado de que esta produção - “Abandonados” - uma série da RTP retalhada como longa-metragem parecem não quer levar o seu espectador em conta, muito mais reduzir Timor a uma Madeira “faz-de-conta”, e resumir um conflito em meras vinhetas de pedagogia institucionalizada. Ah, e daqui a nada chega-nos Chico Diaz, ator brasileiro radicado em Portugal, a desempenhar um cônsul japonês - só visto! E aliás não se via nada assim desde que Alexandre Lencastre serviu de vidente chinesa numa comédia de Vicente Alves do Ó, isto numa época em que se fervorosamente teima por representações exatas nas artes (qualquer que seja). 

Enfim, “Abandonados”, assinado por Francisco Manso (a quem tive um bela conversa em 2020 em contexto do “O Nosso Cônsul em Havana”, o qual desejo recuperar para uma futura publicação), homem que sonha e ambiciona ver História estampada no ecrã, sofre de um grande mal, a iniciativa delirante sem recursos nem orçamentos para tamanhos voos e reconstituições credíveis, ao invés disso, tem gerado episódios cada vez mais deslocados do que pretendia-se de “dramas históricos”. O restante é o previsto na reciclagem de TV para Cinema, uma falta de coordenação, e condicionamento das personagens … mais “bonecos” figurativos que qualquer outra coisa … inibindo dramaturgia e palcos artísticos, a acrescentar uma condescendência enorme para com todos aqueles eventos histórico-narrativos, sem nunca “levantar pé” do provincianismo. 

No fim de contas, João Botelho repete e repete, atribuindo essa repetição a um dos ensinamentos valiosos transmitidos por Manoel De Oliveira - “Se não há dinheiro para filmar a carroça, filma a roda, mas filma-a bem”. Manso bem poderia ter ouvido Botelho e seu hipotético “dizer” à lá Oliveira, assim escusávamos de ter presenciado tamanha vergonha alheia.

"A Culpa não morre solteira": o ano terrível para o Cinema Português

Hugo Gomes, 24.12.22

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"Km 224" (António-Pedro Vasconcelos, 2022)

2022, mais um ano, mais lamentações a caminho. O Cinema Português, essa formalizada instituição que muitos adoram cuspir, resiste face aos números vergonhosos nas bilheteiras nacionais, mesmo que, muitos deles beneficiam de “boa imprensa”, de críticas esplendorosas, artigos requintados e o esforço hercúleo por parte das suas distribuidoras e produtoras em os promover. 

Mas o cinema nacional demonstrou-se alheio aos planos do grande público, que o diga o veterano António-Pedro Vasconcelos e o seu drama de custódias “Km 224” que terminou com uns “míseros” 4.128 espectadores (tendo em conta a sua ambição comercial, 830 sessões contra, comparativamente, as 161 de Lobo e Cão de Cláudia Varejão que arrecadou, até ao momento, valores mais acima), ou o que dizer a estreia de Tiago R. Santos e o quarteto de luxo [Ricardo Pereira, Teresa Tavares, Margarida Vila-Nova e Cristóvão Campos] com “Revolta”, filme que em outros tempos chegaria, na pior das hipóteses, aos 5.000 espectadores, apenas arrecadou 1.719. Melhor posicionado esteve “Salgueiro Maia: O Implicado” de Sérgio Graciano [16.777], o qual convém referir a importância ainda memorial da sua figura-alvo, e a dupla rural “Restos do Vento” de Tiago Guedes e “Alma Viva” de Cristèle Alves Meira [11.685 e 7,537].

Nem mesmo João Botelho, possivelmente o realizador com mais imprensa por metro quadrado nos seus filmes, que nos trouxe uma das suas melhores obras em muito tempo (“Um Filme em Forma de Assim”), não escapou à derrota nessa estrangulada luta nas bilheteiras [2.208], e num ano em que contou com retrospetiva integral na Cinemateca, novamente promovida em todos os meios, mas igualmente captada pela indiferença do seu público-alvo. Cinema português e bilheteiras são um eterno fado e que nada descura da qualidade de muitas destas obras. 

Já os restantes autores propriamente ditos; "Fogo-Fátuo" de João Pedro Rodrigues a exibir a sua legião de adeptos [3.533 espectadores], com cerca do dobro do atendimento, Marco Martins e o seu “Um Corpo que Dança - Ballet Gulbenkian 1965 - 2005” demonstraram adesão ao documentário português (enquanto o mais visto nessa categoria foi “Cesária Évora" de Ana Sofia Fonseca com 7.057 espectadores). Números longínquos para com uma Rita Azevedo Gomes, por exemplo, cujo O Trio em Mi Bemol levou até ao momento 467 espectadores, mais que o tríptico de Joaquim Pinto e Nuno Leonel acolheram [“Pathos Ethos Logos / 178 espectadores]. Comparativamente, com menos promoção e imprensa, a segunda longa-metragem de Adriano Mendes - “28 ½ - concretizou 725 espectadores, em 43 sessões, menos que as projeções do filme da Azevedo Gomes, ainda em cartaz [62 até à data].

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"O Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Estes trazidos números serviram para mostrar um só propósito - o constante desfasamento entre o público e o seu cinema - um fenómeno latente à dissertação das salas pelo conforto do ambiente doméstico sob a febre das “novidades do streaming”, ou a cada vez mais “exigente” seleção do que realmente ver numa sala de cinema … a aspas são pertinências visto que o cardápio parece fundamentado em redor de super-heróis ou franchises duradouros. Contudo, quando o tema é cinema português, a discussão resume-se na própria qualidade destes do que no gosto do espectador. Anos a fio a ouvir os mesmos queixumes, enfrento-o esses argumentos com os iguais números.  

Mas antes disso, há que procurar as causas para esse divórcio? Possivelmente, um dos graduais problemas, como havia sido sugerido, seja a reputação que a nossa produção adquiriu e acumulou ao longo destes anos. As avenças de “Amor de Perdição” de Manoel de Oliveira ou os enterros antecipados a António Macedo (o sketch satírico de Herman José fantasmagoricamente ainda povoa na nossa imaginação coletiva), conspiradas raízes para este boicote orquestrado ou até politizado que hoje fomenta furiosos pedidos de uma renovação de histórias, de estilos, de ritmo, de atores e sobretudo uma “americanização” do nosso cinema, em jeito de encabeçar sem grandes histrionismos um catálogo de um globalizado streaming

Porém, o desejo é diferente dos sucessos, “Dois Duros de Roer” ou Curral de Moinas: Os Banqueiros do Povo, inquestionavelmente amadora televisão descaradamente embutida na tela conquistou espectadores (48.830 e 314.115 respetivamente), muitos deles assinantes dessa “carta de exigências". Com este cenário em conta, para quê continuar a debater sobre o que o cinema português precisa de fazer para “apelar” ao seu público? Claro que não, como todos os divórcios, a culpa não morre solteira. 

Escusado será totalmente imputar a nossa produção tendo em conta que o dito “espectador português” tem demonstrado ao longo destes anos zero paladar no ramo.

Um Filme em Forma de Assim ... e de assado

Hugo Gomes, 30.04.22

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Sempre foi do conhecimento público o fascínio que João Botelho nutre pela poesia de Alexandre O'Neill (1924 - 1986), não vá por outra razão a sua longa-metragem “Um Adeus Português” (1986) tenha sido assim intitulada, uma homenagem a um poema dessa autoria. Mas anos após anos de presença no nosso cinema, o realizador e apóstolo induzido de Manoel de Oliveira, quebra o seu registo de obras ao serviço do Plano Nacional de Literatura para se refugiar nas rimas e estrofes de O’Neill, num filme cata-vento quanto ao sabor das suas palavras. Estes textos, agora vencidos pelo tempo, aproveitados e contorcidos como “bem apetecer” no domínio de um realizador que esfrega constantemente as palmas de suas mãos para os deter, conservar e preservar em filme, o seu reino e reino à parte da criação de O’Neill

Para isso, regressa a Azeitão a um outrora abandonado armazém de um hectare onde filmou “Os Maias: Cenas da uma Vida Romântica” (2014). O artificialismo aí instalado e acompanhando ocasionalmente a sua obra marca-se como dó predominante neste ziguezague por ruas e ruelas à mão de semear. É neste estúdio improvisado que nasce uma Lisboa de cartão, com habitantes “faz-de-conta”, e no seu seio mal-amparados, fatalistas e eternamente sofredores do campo romântico brotam. Botelho resgata O’Neill e o divide pelos seus heterónimos (poeta errado, mas caminho certo para nunca ceder à biografia convencional), seja Pedro Lacerda, seja Cláudio da Silva, ou até mesmo Crista Alfaiate, pedaços da mesma alma, e um todo do mesmo fragmento. Mas para além da citação e da reinterpretação do trabalho do homem-tributo, “Um Filme em Forma de Assim” conquista-se pela destreza técnica em cumplicidade com o seu jeito contrarrevolucionário à trajetória do cinema português. 

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Muitos clamarão - “cinema de velho” - outros com infame desprezo gritarão com o simples e pejorativo “teatro filmado”, mas esquecerão da existência de uma tradição na farsa à portuguesa, Botelho sempre desejara mostrar e romper as meras ilustrações (aliás, ilustrar têm sido, infelizmente, o seu modus operandis nos últimos tempos) em vénia ao seu mestre desejado, porém, dominá-las tem sido um “bicho-de-sete-cabeças”. Em “Um Filme em Forma de Assim”, sente-se uma liberdade e por sua vez fluidez em percorrer os campos terrenos, esses becos e quarteirões materializados, como o de passear pelo espaço do onírico (sonhos ou visões performadas na narrativa como uma peça vicentina), onde cada travelling, turístico digamos, convida-nos a entrar neste imaginário, nesta projeção lisboeta que apenas vive e revive nas nossas fantasias, encostar as nossas orelhas às conversas nas mesas de clubes privados, afastando-se repentinamente após o primeiro sinal de exaltação. “Disparate”, grita o miope encarnado por Cláudio da Silva (o Fernão Mendes Pinto e o Fernando Pessoa de Botelho) obrigando-nos a distanciar da sua figura, à espera que os ânimos acalmam enquanto Crista Alfaiate tenta ocultar o seu riso trocista, de quem provocou voluntariamente o específico stress. 

É uma fantasia à lá Botelho, com coros, literatura e lendas, e sobretudo danças, não esquecer das danças, techno e juventude a desafiar as leis pandemicas. Pede-se no final que abaixe as cortinas, desaparecendo destes, peões, bonecos descaracterizados ao serviço da poesia, do anormal-quotidiano assim descrito. João Botelho arriscou no seu mesmo universo, ou lá o que isso seja, e talvez tenha aqui o seu filme, a “criatura de Frankenstein", aquilo que sempre desejou. O seu poema. A sua mais pessoal criação.   

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Quem? O infinito?

Diz-lhe que entre.

Faz bem ao infinito

estar entre gente.

 

-Uma esmola? Coxeia?

Ao que ele chegou!

Podes dar-lhe a bengala

que era do avô

 

-Dinheiro? Isso não!

Já sei,pobrezinho,

que em vez de pão

ia comprar vinho...

 

-Teima? Que topete!

Quem se julga ele

se um tigre acabou

nesta sala em tapete?

 

-Para ir ver a mãe?

Essa é muito forte!

Ele tem não tem mãe

e não é do Norte...

 

-Vítima de quê?

O dito está dito.

Se não tinha estofo

quem o mandou ser

infinito?


Alexandre O’Neill ("De Porta em Porta")

Ariel de Bigault e os exorcistas dos fantasmas do nosso passado colonialista

Hugo Gomes, 31.05.21

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João Botelho

No seio do turbilhão social em que deparamos – o debate constante sobre a nossa história colonialista, e o que realmente devemos fazer com ela – tem suscitado uma evidente polarização, com alguns faíscas politizadas pelo meio. Porém, nunca saído do Cabo das Tormentas, estreia nos nossos cinemas o filme “Fantasmas do Império”, um documentário que explora este nosso percurso pelo desenvolvimento e transfiguração do olhar colonial, apresentando um conjunto de obras portuguesas que vão desde as propagandas do Estado Novo até às ficções antes e depois do 25 de Abril. Uma costura gerada pela investigação e dedicação de Ariel de Bigault, documentarista francesa radicada em Portugal com um interesse tremendo em África e nas questões raciais que germinaram daí.

O seu trabalho revela-se num confronto de imagens com os seus, possíveis, criadores. Muitos filmes são visualizados e comentados pelos próprios realizadores, atores ou figuras-chaves do nosso entendimento audiovisual e cinematográfico. Com isto para sublinhar que Bigault não comenta, nem interpreta estas mesmas imagens e ditos-e-feitos no seu trabalho. Segundo ela, os filmes reunidos são o que basta como expressão sua, “corto, manípulo, crio com isso um diálogo através da forma e das imagens (…) quero deixar o espectador viajar e querer pensar um pouco sobre o filme.

Muito trabalhoso foi o filme, ao mesmo tempo muito interessante para mim porque era importante ser honesta. Ser honesta com o quê? Com o propósito do filme. O propósito do filme não é declarar que o português foi ‘mau’, porque ao dizer isso é sinal que não avançamos nem um bocadinho. Aliás, é quase um mainstream dizer isso. O propósito aqui é ‘ouvir’ as imagens trazidas pelo ex-colonialismo e o pós-colonialismo. O que elas têm a dizer sobre a relação de Portugal com estes países. Como se pode verificar no filme há uma evolução a nível da linguagem imagética.” referiu a realizadora que posteriormente lamenta sobre a falta de um tema essencial na nossa cinematografia “Não há nada sobre a escravatura. Temos quatro séculos de escravatura e até há data não existe nenhum cineasta que tenha pegado nisso. Os brasileiros, por exemplo, souberam retratar na sua filmografia e existem muitos filmes de lá sobre esse tema. Isso, porque a escravatura é constitutiva no Brasil, da mesma forma que o tráfico de escravos faz parte de Portugal.

Contudo, desatracamos do porto, Ariel de Bigault aborda a génese destes fantasmas: “fiz quatro filmes no Brasil, todos eles sobre a questão racial, porque toda a minha experiência lá foi um choque para mim. Convivia com negros e o facto de ser uma branca no meio deles fez com que lidasse com várias situações de racismo.” Este acumular de contactos com tais sentimentos reprimidos mas exprimidos de maneira violenta, foram suficientes para motivar a realizadora a regressar a Portugal para concretizar um filme sobre “o espaço dos atores negros no cinema português”, mas ao perceber que “praticamente, não tinham espaço algum” o projeto transfigurou-se. “Nesse processo descobri o arquivo colonial do ANIM [Arquivo Nacional da Imagem em Movimento] um interesse crescente no trabalho da Maria do Carmo Piçarra.” acrescentando também que na conceção desta metragem pôs “de lado muito do cinema etnográfico, porque pretendia demonstrar uma ideologia, um olhar já construído, aliás um olhar de Cinema.

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Fantasmas do Império” inicia-se com as jornadas epopeicas (é desta forma que são descritas pelo autor das mesmas) de Fernão Mendes Pinto, adaptadas para a grande tela por João Botelho, realizador que fez questão através deste debruçar numa das grandes obras literárias de Portugal de realçar uma dicotomia na imagem do navegador. “Peregrinação” (2017), para quem desconhece, exibe Fernão Mendes Pinto como um apaixonado explorador encantado pelas prometedoras maravilhas do Oriente e ao mesmo tempo um cruel pirata e saqueador. Para Ariel de Bigault, era importante a sua obra começar com este preciso filme, não só pela tal ambiguidade que opõe à imagem glorificadora da chamada e discutida “Era dos Descobrimentos” (uma ideia sobressaída durante o Estado Novo), mas também pela dita cegueira pelo Oriente.

O grande sonho dos navegadores portugueses era, de facto, o Oriente. A África era insignificante, só começando a ter valor unicamente para Portugal graças ao tráfico de escravos a partir do século XVI. Esse era o único interesse, não havia vontade alguma de explorar a África. Simplesmente, o objetivo era o Oriente. África, essa, ficava no meio da passagem.

A coleção de Ariel de Bigault é de facto impressionante, passando pelos filmes de António Lopes Ribeiro, mais concretamente propagandas, passando por comédias localizadas como “Zé do Burro” (1972), de Eurico Ferreira, ou o bélico de impulso nacionalista “Chaimite” (1952), de Jorge Brum do Canto, ou o banido “Deixa-me ao menos Subir às Palmeiras” de Lopes Barbosa (“filme que reapareceu em 2015”), o ainda algo desprezado “Acto dos Feitos da Guiné” (1980), de Fernando Matos Silva e as derrota colecionadas por Manoel de Oliveira em “‘Non’, ou Vã Glória de Mandar”. Quanto às obras recentes (“todos os filmes pós-colonialistas são bem diferentes a denunciar o colonialismo”), para além da mencionada odisseia de Fernão Mendes Pinto – “Peregrinação” – conta-se ainda o incontornável “Tabu” (2012), de Miguel Gomes (que recusou o convite de participar no contínuo debate proposto pelo filme), o muito discutido “Posto Avançado do Progresso” (2016), de Hugo Vieira da Silva, “As Cartas da Guerra” (2016), de Ivo M. Ferreira, e a obra de Margarida Cardoso o qual é toda ela focalizada em Moçambique.

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Orlando Sérgio e Maria do Carmo Piçarra

A realizadora confessou a falta de algumas obras, entre as quais o muito recente “Mosquito” (2020), de João Nuno Pinto, cuja ausência apenas derivou da indisponibilidade de Ariel de Bigault em visualizar o filme. Para os menos atentos, a longa-metragem produzida por Paulo Branco estreou uma semana antes do primeiro confinamento pandémico.

De Botelho a Vieira da Silva, de Cardoso a Carmo Piçarra, e com participação especial de Matos Silva, Lopes Barbosa e os atores Ângelo Torres e Orlando Sérgio, todos contribuíram para esta iniciativa de entendimento com estas imagens e com este anexado olhar, mas a pertinência integrou a intervenção de José Manuel Costa, diretor da Cinemateca Portuguesa. A ele foi-lhe questionado sobre a pertença destes registos e memórias, mantendo-se atualizado no aceso debate sobre a culpa colonialista. “José Manuel da Costa referiu que estas obras estão no ANIM, logo são património português, porém, tem a opinião de que devem ser partilhadas com os países colonizados. Mas há problemas com esses países independentes, muitos deles sem a devida capacidade de arquivo” remata a documentarista.

'Non' ou Vã Glória de Salvar o "Cinema Português"

Hugo Gomes, 14.03.21

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Fade to Nothing (Pedro Maia, 2017)

Recordo vagamente de um diálogo à saída de uma das sessões da 14ª edição do Indielisboa. Estávamos em 2017 e o filme em causa era o ensaio visual e sonoro “Fade to Nothing”, a estreia de Pedro Maia no universo da longa-metragem, com a participação do artista musical Paulo Furtado, ou como é renomado de The Legendary Tigerman. A conversa em questão surgiu devido a uma certa indiferença por parte de quem debatia comigo quanto à experiência, finalizando com uma pergunta sem resposta alguma para devolver – “É este filme que salvará o Cinema Português?”.

Há muito, mas muito, quase como uma cruz pelo qual arrastamos praça adentro, discute-se um eventual “salvamento” do nosso cinema. Para satisfazer os prazeres da carne, ou entretenimento, como muitos defendem, ou por fim, restaurar uma ligação emocional com o perdido espectador que depara com uma instituição demasiado hermética e umbiguista. Conforme seja a causa trazida, uma ‘coisa’ é certa, todos nós esperamos por uma entidade sebastiana, aquele que irá romper o nevoeiro com a finalidade de colocar a nossa cinematografia no mapa. Enquanto essa figura messiânica não chega, arrecado com uma certeza, o cinema português não precisa de ser salvo, além disso, o que precisará, é de uns certos ajustes. Diria mais, localizados, mas isso são “outros cinco tostões”.

Em conversa com Rui Alves de Sousa no seu podcast À Beira do Abismo, reforcei o meu amor pelo cinema português, o “cinema que mais amo, porque é o meu”. Talvez um sentimento algo familiar nasce em mim no que refere a defender este universo, até mesmo durante os seus expositivos fracassos. Mas o cinema português é o meu maior interesse no que refere a cinematografias, é o nosso mundo, e é aquele que mais dialoga ou partilha o nosso espírito identitário, mesmo que muitos do espectadores não o revejam, esse é o Cinema que nos acompanha, que nos faz discutir com os nossos “eus” enquanto nação (para o bem ou para o mal).

Mas o cinema português não fala do real Portugal.” Muitos argumentarão desta maneira. Contudo, o que é o real Portugal? O Portugal rural? Esse, sempre presente em muitos dos nossos ensaios documentais, etnográficos ou memorialistas que buscam esses biótopos desgastados pela decadência e os fluxos migratórios dos mais jovens para as metrópoles. Portugal cosmopolita? Lisboa que sempre foi o focus de atenção nas nossas lentes e o Porto que serviu de berço à nossa atividade cinematográfica. Mas afinal, qual Portugal estamos nós a falar ao certo?

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Sangue do meu Sangue (João Canijo, 2011)

Então os problemas do nosso país? O nosso cinema só quer saber de artistas e lirismo.” Se o distanciamento pode ser traduzido por isso, então há uma novidade para vocês – a ordem natural (novos realizadores, novos olhares) que tem apostado cada vez mais em temas raros na nossa cinematografia, e porque não, de cariz social. Abordamos a austeridade num prisma humano e por via de uma narrativa centrada no realismo encenado (“São Jorge” de Marco Martins ou “Sangue do meu Sangue” de João Canijo, dois exemplos que me vem automaticamente à mente), um constante interesse pela descolonização e no tabu que sempre fora a Guerra do Ultramar (“Mosquito” de João Nuno Pinto, “As Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira, "Our Madness", de João Viana), ou as vozes silenciadas do nosso “querido” Portugal a conseguir o seu palco, por fim (“O Fim do Mundo”, de Basil da Cunha, “Vitalina Varela”, de Pedro Costa).

Mas o cinema português não consegue ser político?" O “ser político” é um terreno mais que pantanoso, as tão acarinhadas comédias portuguesas “estreladas” por Vasco Santana e António Silva eram por natureza materiais politizados (com o seu quê evidente de propagandismo), e na década de 50, Manuel Guimarães trouxe à nossa atividade o neorrealismo (que por si é uma estética politizada) e assim adiante o Cinema Novo (sem falar da vaga militante pós-25 de Abril), ou até mesmo João César Monteiro, que não escondia as suas ideologias (“Sou um intelectual de esquerda”). Na nossa contemporaneidade, quase tudo o que é produzido é formado por gestos políticos, de Miguel Gomes a Teresa Villaverde, de Pedro Pinho a Welket Bungué, de Cláudia Varejão a João Botelho. E se o problema é o ponteiro da rosa-dos-ventos estar direcionada exclusivamente à esquerda, então fica o registo de “Snu” de Patrícia Sequeira ou “Camarate” de Luís Filipe Rocha.

Mas é um cinema demasiado intimista. O cinema português deveria exaltar os nossos grandes heróis”. Mesmo sob uma tremenda estigmatização, não poderemos acusar de Manoel de Oliveira invocar os “bens preciosos” da nossa História, onde até mesmo as derrotas são fruto de inveja entre nações (“'Non', ou A Vã Glória de Mandar”). Como estafetas de tal legado, João Botelho encontrou nos últimos anos, um propósito em consolidar o cinema com a divulgação de trabalhos literários, ou Francisco Manso a tentativa de reafirmar o “filme de época” numa “indústria” de baixos recursos. Enquanto isso, o êxito de “Variações”, projeto de longa data e resistência de João Maia, abriu portas para uma eventual vaga biográfica e musical – “Bem Bom", de Patrícia Sequeira, está na fila para persistir no estilo produtivo.

“Porque é um cinema ‘velho’, não fala com, nem para os jovens”. Como assim? Pedro Cabeleira estreava em Locarno de 2017 com o esteticamente febril “Verão Danado”, um retalho de jovem mal amparados que vivem a noite como não houvesse amanhã, da mesma maneira que Mariana Gaivão exibia a rebeldia numa caverna (uma imagem marcante em “Ruby”), ou o cinema energeticamente pop de “Leviano” de Justin Amorim. Entre outros, basta olhar para as curtas vindas de sangue novo, aquele sangue na guelra que tanto o cinema português deseja e muito bem.

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'Non', ou A Vã Glória de Mandar (Manoel de Oliveira, 1990)

Sim, e antes que perguntem em relação novos géneros, simplesmente deixa acontecer, temos experiências, umas satisfatórias, outras … bem, tentou-se. O tempo é uma ferramenta útil para essa dita diversidade, basta só aguardar. Calmamente …

Quanto ao leitor, a esta altura deverá estar ele próprio a questionar – “então e esses ajustes?”. Se o cinema português precisa de um ajuste, esse seria o de não ser pequeno, ou de pensar como tal. Sabendo que este meio é um nicho que tropeça constante uns nos outros, o refugiarmos na nossa pequenez (um vício tão português) leva-nos automaticamente aos mais variados problemas que acirram ainda mais este panorama. A desunião, a ideologia (não política, mas no modo cinema português deveria ser concebido ou “canonizado”), os egos e o amiguismo que prejudica mais autores do que beneficia-los, “obrigando-os” a abrigar nos seus próprios conformismos.

Não se trata de salvamento, ao invés disso, trata-se de apelo às correntes e olhar para cima. Somos mais do que meras vítimas. 

O elogio lusitano à HBO Portugal

Hugo Gomes, 06.02.21

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Alguns filmes disponíveis no catálogo: “A Religiosa Portuguesa” (à esquerda), “Cartas da Guerra” (ao centro) e “O Fatalista” (à direita)

Sem descurar da Filmin Portugal e a sua progressiva colheita de cinema português, até porque a plataforma é direcionada a uma fasquia de espectadores habituadas a estas andanças, gostaria de salientar o trabalho que a HBO Portugal tem tido na divulgação do nosso burgo cinematográfico. Aqui, entrando numa outra liga de plataformas, daquelas promovidas pelas operadoras e com um catálogo apetecível ao comum dos mortais, o canal criado e denominado de “Made in Portugal” reúne séries de produção nacional e uma pequena mostra da nossa cinematografia. Mesmo que pequena, esta “amostra” é importante para situar e possivelmente criar novas audiências para o nosso universo audiovisual, seja por engano nos seus “binge watchings” ou na instintiva curiosidade.

Se bem que as vozes de desaprovação aos principais streamings dão conta da escassez dos clássicos ou cultos fundamentais na cinefilia (basta verificar a substituição à lá Netflix de muitos dessas histórias por produções próprias completamente alinhadas com a linguagem da empresa), a HBO tem, por sua vez, apostado no tal buffet nacional, o que poderá, a certa altura, ser fundamental para a “reeducação” de públicos (em aspas porque é uma palavra facilmente identificável com causas propagandistas ou lobotomias). E num momento em que a cinefilia bate e debate-se sobre o papel das plataformas na reestruturação dos nossos hábitos de consumo de filmes, a iniciativa à moda portuguesa poderá servir-nos como uma espécie de Cavalo de Tróia, fulcral para criar laços entre os espectadores, até então desligados, para com o cinema “seu”, ou como quiserem – “nosso”.

E não falamos de produção acessíveis, muitas delas integradas a dita ala “cinema comercial” (enquanto nós não ultrapassamos essas duas trincheiras, nunca seremos uma indústria), como as experiências de realização do ator Diogo Morgado (“Malapata”, “Solum), ou os veteranos António-Pedro Vasconcelos (“Parque Mayer”, “Call Girl”), Joaquim Leitão (“A Esperança Está Onde Menos se Espera”) e Luís Galvão-Teles (“Dot.Com”), mas também, a nosso dispor, uma ementa mais requintada e de paladares mais excêntricos.

Recentemente, mais dois se juntaram à coleção, ambas produções de Paulo Branco – “O Fatalista”, de João Botelho, e o reencontro entre a atriz Ana Moreira e a cineasta Teresa Villaverde em “Transe”. E explorando o quadro geral, há muito para (re)descobrir, desde os aclamados e premiados trabalhos de Miguel Gomes e Marco Martins até aos desafios de “A Zona” de Sandro Aguilar, o xamânico “Até ver a Luz” de Basil da Cunha (rodado na Reboleira) ou o eclético “A Religiosa Portuguesa”, de Eugène Green.

Muitos deles filmes invulgares nas “modas” de muitas novas gerações. Pessoalmente, a quem me lê deixo algumas sugestões desse mesmo catálogo, o cada vez mais apreciado Linhas Tortas”, de Rita Nunes, que aborda a nossa dependência e necessidade de refúgio nas redes sociais e “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, que com base nas cartas de António Lobo Antunes vem desmistificar o belicismo de Ultramar.

À HBO, uma continuação desta iniciativa, porque nem sempre o streaming é uma logística de extração.

Victoria Guerra: "A literatura permite um universo interior que não é possível no cinema"

Hugo Gomes, 01.10.20

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Determinado a atribuir uma morte digna a uma entidade cujo fim foi esquecido, José Saramago concebeu o romance “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (em 1984) para abordar os últimos dias do célebre heterónimo de Fernando Pessoa, adaptado ao cinema por João Botelho e que estreia nas salas esta quinta-feira.

Em terras lusas, Ricardo Reis apercebe-se da morte de Fernando Pessoa (Luís Lima Barreto) que lhe surge, dias depois, como espírito errante. Tal como o seu poeta criador, o protagonista é também ele propício em projetar Ofélias, o tal interesse amoroso inalcançável no universo do poeta.

Esta Ofélia tem o nome de Marcenda, filha de um doutor nacionalista de Coimbra, que chega a Lisboa à procura de uma cura para o seu braço esquerdo paralisado.

Trata-se de uma personagem enigmática, um quanto metafórica, encarnada por Victoria Guerra, que falou-me sobre esta jovem mulher, o filme e a sua pertinência, e ainda os seus novos projetos.

Como chegou a este projeto e como trabalhou a sua Marcenda em relação à transição do livro para o filme?

O convite chegou diretamente através de João Botelho. A literatura permite um universo interior que não é possível no cinema, por isso, a obra foi uma ferramenta fundamental. Para lá da narrativa, o cinema de Botelho é caracterizado por uma composição estética muito própria que ajuda a essa composição e trabalho de personagem. Neste caso, trabalhamos sobretudo a precisão da palavra para a transposição justa do texto de Saramago.

No processo criativo na construção desta Marcenda, recebeu moderação por parte de João Botelho ou o realizador deixou-a em liberdade na criação? Existe uma provocação bem ao jeito de Saramago, esta, a do braço esquerdo de Marcenda estar paralisado e mesmo assim, ser o fascínio de Ricardo Reis, que por sua vez é politicamente indiferente.

É uma liberdade trabalhada em função do tipo de cinema que João Botelho faz, em função da luz, dos enquadramentos e da montagem. Há sempre um especial cuidado sobre a postura e a posição do ator em relação à câmara. No caso da Marcenda, houve uma direção específica em relação ao seu braço paralisado por causa da sua importância narrativa e simbólica.

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Durante a inauguração da exposição do filme na Fundação Saramago, João Botelho mencionou que os anos 1930 descritos no livro estão cada vez mais perto da nossa atualidade. Concorda com este reparo? É pertinente uma adaptação de "O Ano da Morte de Ricardo Reis" nos tempos de hoje?

É cada vez mais pertinente. Concordo com essa proximidade política e social, a subida da extrema-direita no mundo é muito preocupante, mas sinto que é importante realçar uma diferença: o acesso à informação e à literatura é hoje, sobretudo para as gerações mais novas, muito mais simples do que era nos anos 1930. A literatura, tal como a história e, neste caso, específico o cinema, são fundamentais para evitar a repetição de erros já cometidos.

Também está envolvida no novo filme de Edgar Pêra – “The Nothingness Club” – que, à sua maneira, também integra este universo de Fernando Pessoa. E é curioso que interprete Ofélia, que no filme do Botelho é, por si, uma projeção (alternativa) desta figura.

Sim, é verdade e é realmente muito curioso. Sinto-me privilegiada com este cruzamento de universos literários e cinematográficos. Entre Saramago e Fernando Pessoa, entre João Botelho e Edgar Pêra, cada um com a sua linguagem cinematográfica muito própria, o privilégio de poder trabalhar dois autores fundamentais da literatura portuguesa e que, tantas vezes, se dizem ser de difícil adaptação cinematográfica.

E o que pode dizer sobre novos projetos, a série da Netflix “Glória” e o novo filme da realizadora brasileira Laís Bodanzky “Pedro”?

A longa-metragem de Laís Bodanzky foi rodada há mais de um ano e retrata a vida privada de D. Pedro I e o seu regresso a Portugal, nove anos depois de proclamar a independência do Brasil. Em relação a “Glória”, não posso adiantar muito, apenas que é uma história sobre espionagem no final dos anos 1960, em plena Guerra Fria e partilhar o meu orgulho por Portugal estar a produzir finalmente uma série para a Netflix, e a minha felicidade por fazer parte do projeto e por poder trabalhar novamente com a SP Televisão e com o [realizador] Tiago Guedes.

Por entre poetas, escritores, sombras e ilustradores

Hugo Gomes, 30.09.20

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Há uma dita fascinação pessoana por detrás da filmografia de João Botelho, que vai desde a sua segunda longa-metragem (“Conversa Acabada”, 1981), passando pelo “Filme do Desassossego” (2010) e agora na pista do heterónimo na cadência das palavras de José Saramago – “O Ano da Morte de Ricardo Reis”.

Em termos funcionais, o livro, editado em 1984, serviu como exercício para o Nobel da Literatura poder retratar um Portugal a experienciar o seu Estado Novo, o seu nacionalismo (confundido com patriotismo) que ao contrário da desinformação hoje chegada a nós por parte da nossa educação, encontrava-se longe do dito apartidarismo durante a Segunda Guerra Mundial. Esse longo quadro de época preencheu as páginas de uma história insólita de um heterónimo que ganha vida acima do seu criador. Aqui, a “criatura” dá-se pelo nome de Ricardo Reis, uma das criações de Fernando Pessoa e a qual, a não possuir um digno obituário, Saramago encarrega-se de tal tarefa, ao mesmo tempo que a subverte num delicioso paradoxo.

Quanto ao filme, Botelho prometeu um tom de fidelidade para com os escritos e sobretudo na ilustração do Portugal degradante, cinzento e chuvoso de outrora, que, segundo o próprio, aproxima-se dos tempos atuais. Banhado em tons cinzentos, fotografia, essa, que realça a negritude deste enclausuramento que se dá pelo nome de país, embarcamos ao mesmo tempo com Ricardo Reis (interpretado pelo veterano Chico Diaz) no porto de Lisboa, após anos e anos residido no Brasil. De volta à sua terra natal, o nosso protagonista assume-se como um indiferente politizado, cuja essa consciência é despertada através da carnalidade de Lídia (Catarina Wallenstein), a camareira do hotel onde se encontra hospedado, a Ofélia possível, visto que a projetada encontra-se em Marcenda (Victoria Guerra), jovem de classe alta com a particularidade de ter o braço esquerda paralisado, e o qual recusa o seu amor.

Para acompanhar estas desventuras, está o próprio Fernando Pessoa (Luís Lima Barreto) ou o espírito dele, tendo em conta que a chegada de Reis a Portugal coincide com a morte do poeta. Nesse termo, o referido paradoxo é lançado, com o heterónimo agarrado à sua criação como se a sombra do Peter Pan, porventura, invertesse o seu papel de submisso. Este jogo lúdico é interessantemente adaptado nos gestos mimetizados de Botelho. Um filme, como o próprio aclama, de grande dívida para com o feito de Saramago.

“O Ano da Morte de Ricardo Reis” é, como tem sido habitual nos últimos filmes de Botelho, uma obra algo franciscana que faz uso do seu jeito de “desenrasque” para nos causar um distanciamento para com o virtuosismo da reconstituição. E tal como muitas das suas obras, sentimos uma distância, uma frieza para com a matéria emoldurada e inserida num requinte técnico e nos desempenhos capazes (muitas vezes com vontade em trespassar o somente boneco ilustrado).

Necessitávamos, mesmo assim, de um pouco mais de Botelho (como aqueles momentos da inserção de António Lopes Ribeiro, desempenhado pelo professor e realizador Paulo Filipe Monteiro) e muito menos de Saramago … algo, como diria, mais próprio.