Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Des-co-lo-ni-zar

Hugo Gomes, 19.04.23

12966.jpg

Descolonização: palavra de muita celeuma, proporcional a revanchismo, ou a descortinamento a um mito constantemente perdurado, consistindo na ambiguidade histórica. Descobrimentos? Nada disso, substituiremos por expansão marítima, isto para não prosseguirmos no acréscimo vilipendiado do “colonial”. 

Assim, chegamos à devolução de artefactos museológicos aos seus países de origem (por vezes, negligenciando as fracas condições de preservação dos mesmos, ou até o desinteresse de muitas recém-formadas nações), à queda e destruição de estátuas homenageadas a vultos precisos desse referido processo ou na negação de qualquer embarque memorialista que não seja a sua antagonização. Falar de colonialismo, hoje em dia, é uma tarefa árdua e demarcadamente unilateral de forma a vincar e pregar a justiça um tanto negada. Contudo, descolonizar é também dialogar, retirando das sombras velhos traumas, basculho ocultado nos sótãos daquelas heranças não declaradas. É aquele ex-combatente, por exemplo, recusando confessar crimes ou experiências, apropriando como suas e apenas suas, crenças e cicatrizes, fantasmas aliás, dançantes na sua perturbada imaginação. A descolonização serviu como desculpa para esta abertura, a apuração de factos ao invés de consequências, mas os saudosismos mantidos em cativeiro, por vezes, falam por alto nas imediações das suas fragilidades. 

Carlos Conceição, angolano de raiz, comenta através desses mesmos fantasmas, e o faz por via do território do thriller, isso, se quisermos enjaular em géneros definidos e fechados, como manda a mais nefasta indústria, sem as honras da diluição. Eventualmente, é nessa feitoria narrativa, elaborando não apenas metáforas, e sim fábulas sobre as feridas esquecidas. A esteticidade supra de “Um Fio de Baba Escarlate, uma conversão do terror e do desejo erotizado, é superado pela noite tourneana, dos mortos-vivos pálidos e amaldiçoados por “causas perdidas”, meras manifestações de loucos delirantes da Fantasia Lusitana, pela guerra perduradora que une Atlântico e Índico, infamemente catalogado como “Ultramar” (palavra atualmente “proibida” devido, a isso mesmo, descolonização).

ba5bd3ed09fbd504f247bc32fab90a54.jpg

Nesta demanda, segredos são incorporados em corpos jovens, meninos convertidos a soldados com ordem para matar em nome de um país longínquo. Eles mantêm a “paz”, diversas vezes ameaçadas por um "inimigo invisível" oriundo do outro lado da muralha, uma secreta muralha para lá do permitido, decretando o fim das suas divagações. São as crianças perdidas da Terra do Nunca, sendo que essa Terra’, é igualmente uma construção, uma fabricada alegoria que preserva a raiva, a dor e as ilusões. É o sinal do derrotismo, o projeto de um sonho não concretizado, caído no calor do 25 de Abril. Esta colaboração entre Conceição e o seu muso (João Arrais), “Nação Valente” revela-se numa cápsula temporal abanada e abalroada pela sede de desconstrução que estes novos tempos requerem. 

Com isso, nesta insuflação de masculinidade embrionária, é no desejo, palavra de ordem no cinema do realizador, que derruba cercos quase zoológicos e assume uma estância freudiana (a mãe ... sempre a figura maternal). Por outras palavras, este é cinema para irritar conservadores devidos ao impacto para com as memórias estabelecidas, porém, desvia-se do suposto panfletarismo, porque, enquadrando nos muitos propósitos cinematográficos, o insere numa narrativa e … convenha-se afirmar … com os seus ares shyamalanos, nem que seja na aposta do twist, na revelação em modos do “Como um Sonho Acordado” de Fausto, a contemplação da mentira (e que mentira!), que essa Nação, pátria amada, os egoistamente enclausurou . Soldados, vítimas dos devaneios de outros. 

A esta altura do campeonato, solicitar provas de valentia de Carlos Conceição não é mais um pedido aceitável, não há mais a provar, temos realizador (não só de agora). E se “Nação Valente” indignar alguém, então eis a vitória bélica para o nosso autor do desejo, porque o Cinema é também inquietar. Cinema confortável, este mundo anda cheio, e mais que isso, cansado.

Takes Roterdão 2022 (1): as diferentes condições humanas

Hugo Gomes, 29.01.22

A Human Position

1643275795-61f26613c2760-a-human-position-jpg.jpg

Vai ficar tudo bem”. Quem não se recorda dos arcos-íris e das mensagens positivas nos momentos em que boa parte do Mundo confinou-se no medo de uma pandemia diversas vezes anunciada?

A Human Position” do noruguês Anders Emblem, não é de todo um filme pandémico nem contextualizado no confinamento, mas sim uma heresia perante ao positivismo crónico trazido por uma sociedade que faz “vista grossa” à nossa condição psicológica. São “desgraças de primeiro Mundo”, dirão muitos, capsuladas num tédio embelezado e planeado até ao último pormenor, Emblem resolveu enfeitar um filme com um artificialismo solarengo e virtuoso, uma aparente harmonia onde o silêncio, as palavras nunca proferidas convertem-se em patologias no estado emocional de Asta (Amalie Ibsen Jensen), jovem mal-amparada numa profissão acima da precariedade e vivendo uma relação (novamente surge-nos o “aparentemente”) feliz com a sua parceira.

A Human Position” fala-nos da saúde mental por via de uma sinalização estética, guiando-nos a uma  anomalia no colorido do filme, ou no “poker face” da protagonista e as distrações constantes trazidas pelo seu “bichano”. A mensagem é perceptível, a viagem, essa, demora a desempacar. Entre subidas e descidas nas ruas familiarizadas que explicitam uma rotina martirológica, Emblem construiu um filme o qual desejamos abraçar, mas de difícil comunicação. Contextualizado ou não, esse é sim, o seu “calcanhar”.

Secção: Bright Future

 

Yamabuki

1641899997-61dd67ddb63fd-yamabuki-2-jpg.jpg

Segundo a lenda, quando deixadas na montanha, as moedas de ouro transformam-se numa flor de cor amarelada denominadas de “yamabuki” (que significa em bom japonês de “brisa da montanha”). Quanto ao homónimo filme, seguimos a história de um antigo jóquei olímpico sul-coreano que vive como manobrador de máquinas numa pedreira ao largo da pequena cidade de Maniwa (a oeste do Japão), e é nele que a mitologia é apropriada, ora através do macguffin do "dinheiro esquecido” o qual o protagonista encontra acidentalmente, ou da sua nacionalidade fluida e contestada.

Juichiro Yamasaki dirige e escreve um inconclusivo filme-mosaico de uma abordagem simples à condição do imigrante em terras japonesas, porém, é de notar um terrível medo da convencionalidade e com isso, uma requisição de embarque à sensibilidade perceptiva quanto a uma narrativa voluntariamente fragmentada. É uma obra que conserva potencialidades, seja através das temáticas, seja visualmente (uma fotografia granulada que nos remete ao conforto dos imperfeitos filmes caseiros) ou na emocionalidade invocada. Coração não lhe falta, o que falta é mesmo rígida estrutura para sustentar tais sentimentos.  

Secção: Tiger Competition

 

A Criança

1641222627-61d311e359dcd-the-child-2-jpg.jpg

Com os sucessos de “A Herdade” (Tiago Guedes, 2019) e Mosquito (João Nuno Pinto, 2020), era de esperar maior ambição por parte de Paulo Branco e a sua façanha enquanto produtor. Infelizmente voltamos à estaca zero com esta longa-metragem da jovem dupla Marguerite de Hillerin e Félix Dutilloy-Liégeois, livremente inspirado no livro “Der Findling” de  Heinrich von Kleist. Aqui o espectador é automaticamente cavalitado para um enredo do século XVI, uma espera desesperante em cenários decadentes e filmado com uma miopia disfarçada.

Todavia, o mais decepcionante é encarar uma narrativa propícia a fantasias e desejos ardentes quase edipianos, mas que nada disso parece-se traduzir em imagens. É que para além da sua falta de identidade fílmica, é lhe acrescida uma ausência de lascividade que pudesse transportar esta história para mais longe do que o mero “faz-de-conta”.

Secção: Tiger Competition

 

Madrugada

1641470309-61d6d9655fedd-dawn-3-png.png

Um filme de transformações de quem a vida parece já não lhe pertencer. Leonor Noivo tem sido apontada como um dos nomes emergentes do cinema docuficcional português (“Tudo o que Imagino”, em 2017, é um exemplo a ter em conta) e em “Madrugada” leva-nos novamente à experimentação desses diferentes veículos em conformidade a um só tom. Para muitos, a realizadora integra uma tendência de uma certa autoralidade portuguesa, mas convém sublinhar a destreza quase arquitetónica de Noivo em montar um filme na consciência dos seus mundos enraizados (palavra que não é convocada em vão), memorialista, surrealista e metafórico (uma sintonizada metamorfose).

Pegando no seu anterior Raposa” (2019), eis a continuação do estudo e da apropriação dos corpos, das suas capacidades e das suas conquistas. Sim, é um gesto contínuo, mas por vezes é isso mesmo que define um autor.  

Secção: Ammodo Tiger Short Competition 

 

Malintzin 17

1641898623-61dd627f2d9c0-malintzin-17-3-jpg.jpg

Depois da morte do seu irmão documentarista Eugenio (falecido em 2017), Mara Polgovsky assumiu o seu espólio e a produtora Tecolote Films. Nessa herança, encontra e adquire filmagens pessoais do mesmo com a filha (na altura com cinco anos) e transforma-as num filme. Com este conhecimento, somos envolvidos a um véu de intimidade e tributo neste cerco com vista para o exterior. A criança que debate o seu olhar em desenvolvimento com a percepção experiente do seu pai, lecionar e sendo lecionado, e sobretudo expondo a sua relação para com o mundo que os rodeia. “Malintzin 17” é um exercício de tempo e de aprendizagem do mesmo, figuramente depositados no pássaro que aninhou-se a poucos metros da janela, ou na rua movimentada e aprisionada à sua própria rotina e (ecos)sistema.

Esculpindo o espaço físico e temporal, obviamente num gesto inconsciente e posteriormente transformado pela sua irmã (co-realizadora que abdica da sua assinatura para induzir um póstumo e derradeiro filme-homenagem), somos questionados a entender o que é o Cinema e como o relacionar. Esta obra levou-me a recordar Béla Tarr (um encontro que aocnteceu 2016 na esplanada da Cinemateca Portuguesa) que questionado com a questão das questões  - “O que é o Cinema?” -  de jeito sisudo e apontando para a mesa do lado, ocupada por jovens que tagarelavam uns com os outros, responde asperamente (bem ao seu jeito digamos), “Aquilo ali é Cinema”. Em “Malintzin 17” há um momento que se aproxima, Eugenio pergunta ao seu “rebento” - “O que é filmar para ti?”. A voz off da menina é reveladora. “Para mim … é copiar algo.

Secção - Tiger Competition

Um fio tênue que unifica as nossas mais mórbidas fantasias ...

Hugo Gomes, 05.10.20

Umfiodebabaescarlate.webp

Entre “kiss me” e “kill me” existe uma ligeira divergência fonética que não impede que ambos os “pedidos” se enquadram na igual esfera do Desejo. Aliás, esse signo é identificável numa colheita de curtas que jogam com a carne e a perversão da mesma como objetivos-irmãos, seja pela heresia interior nas imagens sacras (“Carne”), quer nos limites do aceitável imaginário (“Coelho Mau”) ou simplesmente o desejo repreendido (“Boa Noite Cinderela”), um universo que Carlos Conceição nestes últimos tempos deixou-nos “babar” por uma inadiável estreia no formato das longas.

Infelizmente, “Serpentário” (ainda sem estreia comercial) não correspondeu a essa constelação do desejo ardente, enfraquecido por um caminho serpentino à sua determinante chegada, esta algo memorialista e longe da sensorialidade. Contudo, é com “Um Fio de Baba Escarlate”, uma média-metragem (50 e poucos minutos contamos nós de duração) no limiar da estância seguinte, que funciona como estreia “longuíssima” que tanto ansiávamos e que nos negaram, por culpa do próprio Carlos Conceição.

Um filme que se concentra nessa incestuosa relação entre o desejo a ser consumado e a depravação nunca ocultada, enriquecida numa trip estetizada e sanguinariamente glamorosa de um serial killer (Matthieu Charneau) atingido pelo constante efeito “fregoli” (todas as suas vítimas são representadas pela mesma face – Joana Ribeiro – assim, como o seu redor, homogéneo) e pela língua inexata e imperceptível aos nossos ouvidos (somos “atirados” a um enésimo “não-lugar”). Aqui, o seu “fetiche” (menorizando a sua vontade de matar é claro!) é interpolada por um incidente / acidente que o converte numa equivocada estrela viral. Para a insaciável fome existe uma veneração messiânica que o transporta num (nunca justo) dilema moral. Mas a racionalidade não é inabalável perante a cedência pecaminosa e carnal dos seus desígnios (Conceição joga ainda com os seus “lugares-comuns” para tracejar uma linha direta entre as efémeras ambições [fama] pela negritude da sua caixa-negra [a fantasia]).

frame.jpg

Confessamos, e novamente repescando o ponto inicial, que este é o trabalho que pretendíamos como primeira longa-metragem, um ensaio incorporado nos ditos gestos de Conceição, fortalecido com o estilismo superlativo e artificializado que nos convoca para uma falsa sensação de devaneios oníricos. E na entrada para esse campo de sonhos e pesadelos diluídos numa só cor, o travelling serpentário (melhor juz ao tão desperdiçado título) que se “cola” a Joana Ribeiro, materializando-a num desiludido amor de perdição. Resumindo movimentos contraditórios (temos testemunhado muitos destes nos últimos anos) que corroem a tradição da artificialmente estática que muito do cinema português tem vivido.

E é na clareza da sequência que persegue a sua personagem-mártir (coincidência um filmes destes presentear-nos Leonor Silveira, a protagonista de um dos mais belos travellings que o nosso cinema nos ofereceu – “O Vale Abrão”, de Manoel de Oliveira) que novamente bradamos pelo regresso em platina de um dos nomes mais promissores deste chamado “novo cinema português”.

O cinema português tem contas a ajustar com o seu “novo sangue”

Hugo Gomes, 11.02.19

Serpentario_Still02.jpg

Jovem, mas de um espírito terreno para com a tradição estética deste mesmo universo, comentando a fantasia em prol dos prazeres da carne (a revisitar a sua trilogia de curtas, “Carne”, “Boa Noite Cinderela” e “Coelho Mau”) e do visual eclético, mas enriquecido por uma câmara que acompanha o olhar das personagens e não do espectador, Conceição preparava a sua “cama” para uma estreia em “grande” no formato das longas metragens. "Serpentário'' assume como a sua estreia no elucidado “universo para crescidinhos“, porém, os prometidos atos sebastianos desvanecem perante um desnorteio. A bússola aponta para Norte, mas o realizador e também argumentista está determinado a seguir para Sul, erradamente conquistando o Oeste.

Ora, seguindo a lógica, aquela “cantigazinha” da experiência, Conceição demonstra neste novo palanque alguns dos grandes problemas da transição de curta para a longa – a logística, ou diria antes, a economia do seu tempo, ritmo, teor e sobretudo forma. O seu ecletismo é mais presente, vincado nesta sua (re)requisição de um anterior protagonista, João Arrais de “Coelho Mau”, aqui como o serpentiano que parte em busca do que resta da sua mãe num futuro pós-apocalíptico. Essa dizimação do mundo que conhecemos é parte de um segredos de deuses o qual não cabe ao espectador conhecer. Aliás, como a sua intenção de sublinhar a perspetiva da personagem e nunca a do público, algo deixado pela sua experiência nas curtas é indiciando nesta hipotética viagem pelo desejo.

Contudo, o desejo aqui é outro, não a luxúria que miramos nas blasfémias sacras (“Carne”), na literalidade da guerra entre classes (“Boa Noite Cinderela”) ou a perversidade de um incesto fantasiado (“Coelho Mau”), e sim o não condicionado reencontro, a esperança que funciona como fuel de uma jornada pelas ruínas do Velho Mundo. Pelo caminho, percebemos que este armagedão concretizado fracassou no seu expoente, a existência do outrora (a nossa atualidade) desapareceu, mas as imagens do que este Mundo era estão preservadas numa espécie de cápsula do tempo, os vídeos amontoam-se e formam uma constelação da nossa era (o cinema português parece estar consciente da extinção da sociedade e acumula as imagens como os seus tesouros memorativo, assim como fizera “Dia 32” de André Valentim Almeida).

Serpentário” é nesses preparos um filme sobre a memória, a coletiva que se torna na ressonância da individual. Conceição presta-se a esse “amarcord”, regressa ao continente africano, onde nasceu, que abraça a sua camada autobiográfica para se estender acima dessa chamada coletânea do Mundo. É aí, que de certa maneira, o filme se perde – a bússola já não aponta mais e João Arrais caminha por entre escombros improvisados, civilizações arrasadas, contemplando a destruição para procurar a criação. Atmosférico? Sim, o que ganha força com um inesperado encontro, contrariando uma alusão a Mil e uma Noites, as fábulas das Arábias que infiltram nos vento de areia e na voz doce e trocista de Isabel Abreu (sobressaindo uma das grandes qualidades de Conceição, o seu trabalho de som).

Ou seja, ideias existem, investimento sim, mas o nosso realizador comete um salto maior que a perna, até porque não sabe o que fazer com o tempo que dispõe, como o preenche e, acima de tudo, como o tornar útil. Todavia, ainda não perdemos a esperança na sua figura. Carlos Conceição tem virtudes suficientes para “abanar” o nosso mundo cinematográfico.

Apresenta-se o "Soldado Milhões": uma conversa com João Arrais

Hugo Gomes, 11.04.18

Soldado-Milhoes.jpg

Tu és Milhais, mas vale Milhões”, assim foi batizado Aníbal Augusto Milhais, transmontano que foi um dos combatentes portugueses na Batalha de La Lys, Flandres, durante a Primeira Guerra Mundial. Milhais poderia ser apenas mais um nome entre os incorporados desse batalhão que conheceu tão pesada derrota, mas a sua bravura colocou-o nos anais da História Militar Portuguesa.

Soldado Milhões, o cognome deste humilde militar que após a Guerra foi utilizado pelo regime como imagem de propaganda, o seu ato de bravura converteu-se num exemplo a seguir, diluindo com os próprios conceitos de Deus, Pátria, Família de Salazar.

A história deste homem que não queria ser herói consagrado é adaptada ao cinema pelas mãos de Jorge Paixão da Costa (“O Mistério da Estrada de Sintra”) e Gonçalo Galvão-Teles (“Gelo”), que prometem criar, por fim, o mais bélicos dos bélicos portugueses. Para o papel de Milhais, que no fundo é Milhões, encontramos dois atores que contracenam costa-a-costa – João Arrais e Miguel Borges (o antes e pós Guerra respetivamente).

João Arrais, o jovem ator que conhece por fim o protagonismo neste filme de Guerra à portuguesa, fala-nos sobre a sua preparação e como o Cinema Nacional é desvalorizado face ao talento que contém.

É sabido que foi Miguel Borges que integrou primeiro esta produção. Sendo assim, teve que ser o João a trabalhar na personagem já estabelecida. Como funcionou esse trabalho conjunto na composição da personagem?

Exatamente. Para além de ter entrado primeiro, ele gravou primeiro. Em certa parte tive que me adaptar a ele. Mas por outras palavras, o Miguel Borges é inacreditável e por isso não me importo nada de ter sido guiado ao invés de ser o guia. Tivemos que trabalhar mais num processo de dramaturgia do que somente regermos a uma questão de tiques. Houve uma evolução de energia, tentar traçar os eventos da Primeira Guerra, e que essa energia obtida justificasse a outra face da personagem [Miguel Borges]. Portanto, foi por isso que falamos, mais a questão de energia e de interpretação, do que somente uma mimetização de tiques.

Antes do filme conhecia a História do Soldado Milhões?

Zero! Conhecia a História da Primeira Guerra na perspetiva portuguesa, mas em relação ao Soldado Milhões … nada.

Então como correu o seu trabalho de pesquisa?

Quando soube que ia fazer o casting a primeira coisa que fiz foi telefonar ao meu pai e ao meu avô a perguntar sobre a figura. Como ambos são dois amantes de História fizeram-me uma palestra sobre o Milhões, como estivessem a dirigir a um Grande Auditório numa faculdade [risos]. Sim, explicaram-me alguns factos, mas penso que este desconhecimento quanto à figura em si é uma questão mais geracional, visto que o Soldado Milhões foi utilizado por Salazar como uma propaganda humana. Portanto, era normal que eles conhecessem exatamente quem era e a minha geração nem por isso.

E tiveram preparação militar?

Nós tivemos duas recrutas, sendo que uma delas considerei dura. Uma foi em Alcochete e a outra em Mafra, essa última é que foi dura. Sim, eles olharam para nós do estilo: “olha carne fresca!”. Foi dura mas por um lado agradeço, porque aprendemos o quanto custa e dessa maneira preparamo-nos para a adversidade do campo de batalha. No fundo foi uma experiência divertida, mesmo acordado no dia seguinte com bolhas nos pés.

milhoes_filme-900x450.jpg

O João integrou ainda ao elenco das “As Linhas de Wellington”, de Valeria Sarmiento, e mais recentemente “Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira. De certa forma tem grande parte da História Bélica Portuguesa no seu currículo.

Em relação às “Linhas de Wellington”, não é bem um bélico no sentido mais puro, e sim um filme de invasão. Mas poderemos considerar que sim, esse historial das Forças Armadas portuguesas. Com isto adquiri um certo “know how”, por exemplo, como segurar em armas, etc. O que me ajudou bastante a preparar-me para este papel, sem ter que perder tempo a preocupar-me com como comportar como um militar, visto que já tinha essa experiência comigo.

Para além do físico, como preparou a psicologia e emotividade do Soldado?

Tentei trabalhar o cansaço. Por exemplo, dormia bastante pouco nesses dias para chegar ao set cansado e completamente irritado. Queria mimetizar o stress que aqueles soldados encontravam-se constantemente naquele cenário de Guerra, e para isso o sono era o melhor remédio, sendo que fazia essa preparação em casa, dormindo mal, no chão, desconfortável.

Depois do filme, o que extraiu sobre esta personalidade histórica?

Era uma personalidade inacreditável. Era um herói, mas acima disso era humilde, visto que não pretendia esse estatuto heróico e que sempre fora contra esse mesmo cognome. Mas ele era realmente um herói, bem, vistas as coisas, não é qualquer um que continua a lutar perante um exército de alemães em sua direção, uma batalha perdida, mas ainda assim enfrentou-o com dignidade. O Milhões está de parabéns e merece que lhe dediquem um filme.

Expectativa para o filme?

Muita mesmo. Mas como dizia o João Pinto: “prognósticos só no final do jogo.

Novos projetos?

Neste momento estou a participar numa telenovela [“Vidas Opostas”], para além disso tenho alguns projetos na mira, mas ainda nada de certo.

Mas pretende continuar a fazer Cinema?

Pretendo sim, seja ele português ou outro qualquer. Pretendo continuar, sobretudo, a fazer bom cinema.

Então ambiciona trabalhar fora do país?

Acho que pelo menos tem que ter. Eu pelo menos eu tenho, gostaria de “navegar por outros mares nunca antes navegados”          

Em relação ao Cinema Português? Como o vê?

É um cinema que tem falta de apoio, como toda a gente sabe. Falta dinheiro, mas não vale a pena falar sobre isso. Bem poderíamos fazer uma crítica ou algum ensaio filosófico em relação a tal, porém, não estamos para isso. O Cinema Português é um cinema que eu adoro e que está rodeado de imenso talento … muito mesmo … que só é pena que as pessoas não conhecem ou nem sequer interessam-se em conhecer. Temos nomes que vale a pena espreitar, como o João Pedro Rodrigues, o Ivo M. Ferreira, o Pedro Pinho, o Carlos Conceição que tenho trabalhado diversas vezes, o Salaviza. Muitos talentos internacionais são uma questão de tempo até que as pessoas percebam que … não é só lá fora.