Takes Roterdão 2022 (2): formas, o que fazer com elas?
Excess Will Save Us
Não é incomum acompanharmos a extensão de uma curta para o formato de longa-metragem. Prática diversas vezes recorrente, sobretudo nos mais “verdinhos”, como um aprofundamento das suas capacidades e de uma identidade fílmica ainda por definir. “Excess Will Save Us” não foge desse modus operandis, é uma curta convertida a filme de 100 minutos, mas existe nesse processo uma consciência do mesmo que exalta as aptidões da jovem francesa Morgane Dziurla-Petit, principalmente quanto às suas manobras narrativas.
Híbrido entre documentário e ficção, claramente vincado na sua estrutura, a obra remete-nos ao percurso da jovem em aventurar-se num projeto cinematográfico, como tal filma a sua família proveniente duma pequena localização rural, uma lente detentora de um humor por vezes condescendente em cedência a um tom tragicómico e bucólico. Costurado maioritariamente por vias de planos estáticos, “Excess Will Save Us” supera a sua curta-génese através da sua inclusão no enredo - com o objeto a ser aclamado no festival Clermont-Ferrand - o filme percorre esse “aftermath” tentando refletir o seu mesmo percurso e as repercussões destas nas personagens anteriormente convertidas em “caricaturas” meio pacóvias. Esse sintoma espelha uma maturação e igualmente um distanciamento da realizadora ao seu inicial fascínio. Sentimos assim uma clara emancipação, uma reconversão das nuances anteriormente oferecidas e um olhar desencantado à sua forma.
É um coming-to-age disfarçado, um filme que regista a sua própria criação nas mais diferentes fases, seja de esfera política até à incontornável passagem pela pandemia. Dentro disso, é um objeto eclético, esteticamente desenvencilhado (sem nunca parecer desleixado) e em constante metamorfose, possivelmente o vislumbre de uma revelada realizadora. “Excess will Save Us” é sobre excessos (está visto!), mas também é sobre a perda destes para afunilarmos no indispensável.
Secção Tiger Competition (Prémio Especial de Júri)
Kafka For Kids
Eis “Metamorfose”, a obra de Franz Kafka, contada num prisma infantil em jeito de um colorido programa pedagógico e matinal, entre animações grotescas, explicações de "cacaracá", músicas interpretadas por uma “banda invisível" intitulada de “Hello Shitty”, objetos antropomórficos e uma criança que não é mais que uma travestida jovem de 17 anos.
Bizarro e excêntrico é o que se pode dizer desta mistela em todo o caso indigestível. Do israelita Roee Rosen, "Kafka for Kids” é um protótipo de uma instalação que brevemente encontrará espaço na 1646, the Hague (Países Baixos) ou Kunstmuseum Luzern (Suíça), é um objeto estranho que se pontua mesmo pela sua sensação de estranheza o qual consolida todo os signos dignos dos programas infantis, convertendo-os em algo grotesco e sinistro, até ser cortada por uma tirada de “realidade” embrulhado em ativismo político.
Uma provocação longa que reflete o estatuto da criança, e como ela é maleável perante as diferentes leis territoriais, tendo como contexto o conflito israelo-palestino. A mensagem, subtilmente implantada no choque açucarado e as anomalias fantasiosas (“trouble in the paradise”), não é de todo pertinente e perceptível, mas à medida que avançamos, a farsa é cada vez mais descoberta e o que resta é o grito de resistência num espectador cansado pelo filme-camuflado.
Secção - Tiger Competition
The Plains
Quando o interior de um automóvel assume-se como o mise-en-scene total, a limitação converte-se automaticamente num imaginário grandioso onde autores souberam, e bem, arquitetar esse mesmo espaço, essa redoma ambulante, para o seu uso dramático ou meramente performativo. Cinema e interiores automobilísticos automaticamente encaminha-nos ao iraniano Abbas Kiarostami ou até o mesmo o seu conterrâneo em jeito de homenagem, Jafar Panahi (“Taxi”). Com “The Plains” traçamos um registo documental, diarístico de um advogado australiano [o realizador David Easteal] que conduz de casa para o trabalho, do trabalho para a casa, sempre na companhia do seu rádio ou do copiloto que incentiva os mais diferentes e rotineiros diálogos.
São três horas disto, de câmara posicionada nos bancos traseiros simetricamente centrado para que o espectador obtenha a igual sensação de passageiro. Quase ininterrupto - com ocasionais, mas não dominantes, intervalos escapistas de drones e as suas captadas imagens - somos desafiados ao tempo, ao tédio como experiência social, mandamentos invioláveis de muito “slow cinema” reinam o panorama dos festivais. Ensaio espaço-temporal ou meramente desgaste criativo com o seu quê de preguiça? “The Plains” garante-nos teorias quanto às suas escolhas estéticas, filmando o mundano e apresentando como o mais sofisticado espectáculo. O que resta é então a economia, o que fazer com o tempo, com a viagem, que bem sabemos que não nos levará a lugar algum.
Secção - Tiger Competition
Kim Min-Young of the Report Card
Conjugação de duas forças criativas (duas jovens realizadoras [Jae-eun Lee e Jisun Lim] e automaticamente duas argumentistas) que resultam num filme sobre o crescimento e consequentemente a durabilidade das amizades, e como a sua desintegração incentiva a maturação. Porém, é uma obra estranha, não no sentido de bizarrias nem excentricidades, mas quanto ao seu comportamento em tela, oscilando por formas e fórmulas, entre o tédio filmado e consolidado numa narrativa retalhista, até pelas escassas críticas a uma juventude distante, tão concentrada no seu próprio umbigo e nas suas dúvidas existenciais, os quais são desprezadas por gerações anteriores.
Em certa parte, este objeto seco e secado na sua própria frustração, ostenta alguma vida dentro daquela “natureza morta”, o que não se manifesta para além do mero exercício “naive” e por vezes difuso quanto à direção a tomar. Esperamos, tal como o filme, que as realizadoras encontrem espaço de crescimento e para tal é preciso encontrar uma sintonia. Além do mais, há que saber dialogar com o próximo sem aquela sensação de estar a “conversar para as paredes”.
Secção: Bright Future
Kinorama - Cinema Fora de Órbita
A cosmicidade de H.P. Lovecraft torna-se no ponto de partida para Edgar Pêra persistir na sua tese / estudo sobre os limites do 3D e de como torná-lo numa arte orbital ao universo cinematográfico. Porém, o que sentimos é um filme à moda do realizador, embrulhado pelo experimentalismo visual que funciona como deleite xamânico para com a terceira dimensão, para além da reciclagem de imagens pontuadas da sua obra que nos perseguem desde então (“O Espectador Espantado”, “A Caverna”, “CineSapiens”).
Pêra conversa com especialistas, estudiosos e outros intelectuais ao serviço de uma pedra-base para com a sua contínua operação, a sua demanda em contradição aos ditos do autor Bruce Isaacs - “o 3D como sabotagem da narrativa” - e a procura do Cinema absoluto e transgressivo das velhas formas e fórmulas. O 3D é a cerne da busca, limita-o, mas simultaneamente o lança para novas fronteiras … talvez face aos paralelismos delineados, para barreiras (digamos) lovecraftianas. “Sem interesse não poderá existir arte”, Edgar Pêra exibe, acima de tudo, interesse pela sua matéria.
Secção: Harbour