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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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“The red capes are coming, the red capes are coming”

Hugo Gomes, 23.03.16

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Tudo indica que o signo do ano 2016 são os super-heróis, contando num total de 6 produções correspondentes a três estúdios (sendo dois os prováveis campeões nestas “andanças”) no sector. Este é um período para citar a tão popular expressão: “ou vai, ou racha”. Mas o início desta corrida pelos comics já se demonstrou produtiva, até porque “Deadpool” é um êxito garantido de bilheteira, cuja fórmula promete abalar o próprio método de produção deste subgénero.

Enquanto isso seguimos para o crucial “Batman V Superman: Dawn of Justice”, o filme que colocará a junção DC Comics / Warner Bros na primeira fila, tendo como grande concorrente a Marvel / Disney, que infelizmente tem demonstrado através dos últimos filmes que as ideias estão a escassear e que a homogeneidade poderá vir a ser um “cancro” nesta linha de montagem. Quanto à DC / Warner, o percurso não começou da melhor maneira. Christopher Nolan recusou prolongar o seu Cavaleiro da Trevas, tendo encerrado a trilogia por completo, mas acabou por aceitar o cargo de produtor deste reiniciado franchise. Por sua vez, o primeiro capítulo deste universo partilhado, Homem de Aço (Man of Steel), contrariando os números obtidos no box-office, não agradou totalmente os fãs (chegando até criar ódios dentro da legião).

Em causa estava certamente a negra e trágica atmosfera, a seriedade que este Super-Homem adquiriu, deixando de lado o estilo mais “camp” e descontraído de Christopher Reeve, o humor que tem predominado este tipo de produções tornou-se numa ausência. Para além das debatidas decisões no argumento que explicitaram um herói mórbido, desequilibrado, e dotado por uma conduta duvidosa à mercê das questões. Em todo o caso, o filme foi um fracasso artístico; a dupla Zack Snyder / Christopher Nolan falharam o teste dos fãs, mas nada que impedisse o regresso para um segundo round.

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Assim chegamos a “Batman V. Superman”, onde o Cavaleiro das Trevas entra em cena com Ben Affleck como a nova cara deste tão admirado herói. Como havia sido divulgado durante a campanha de marketing, este “épico” de quase três horas seria uma arriscada ofensiva de trazer para o grande ecrã o tão cobiçado “joint”: A Liga da Justiça (visto que George Miller não o conseguiu). Por isso, era mais que provável que esta sequela direta de Homem de Aço fosse uma exaustiva inserção do espectador neste mesmo universo, “disparando” easter eggs em tudo o que é lado.

Curiosamente, este BVS (vamos chamar assim) é superior ao seu antecessor, mesmo sendo deveras trapalhão na sua narrativa. Em causa está sobretudo o esforço dos envolvidos em trazer alguma credibilidade e verosimilhança a um mundo alternativo, fantasioso e fértil, mais fiel aos comics e contrariando a insípida e replicada Gotham da trilogia de Nolan. Existem também surpresas neste novo catálogo de “bons e maus da fita”, entre as quais Ben Affleck a revelar-se num Batman / Bruce Wayne mais maduro e emocional. Arriscado será afirmar, mesmo soando em heresia, que o infame ator (que deu vida a um dos super-heróis martirológicos do grande ecrã que fora Daredevil) consiga vestir o fato com mais dinamismo do que o próprio Christian Bale e Michael Keaton juntos.

O outro “brinde” é a genialidade com que Jesse Eisenberg entrega-se na pele de Lex Luthor, o tão conhecido arqui-inimigo do nosso Homem de Aço. Dois elementos que compensarão uma produção que visa repetir os erros do costume, ou seja o fascínio pela destruição inconsequente (que toma principalmente o terceiro e último acto como refém), as personagens secundárias descartáveis, algumas entradas diretas para futuros capítulos sem propósito para o enredo atual e a enfurecedora banda-sonora de Hans Zimmer, mais omnipresente que o próprio filme.

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Pois bem, não vamos mentir, BVS é um filme com verdadeiros problemas na sua execução, mas que sim, vai conquistar “multidões”, nem que seja pelo seu inegável visual ou pela facilidade com que Zack Snyder tem em arranjar taglines como “Tell me do you bleed? You will“. Contudo, esta é uma obra que temos a tendência, ou a tentação, de gostar, até porque é um blockbuster que esconde mais do que aquilo que mostra, e essa ocultação deriva da prolongação da sua mensagem altamente teológica. Enquanto que em Homem de Aço as comparações deste Super-Homem com o nascimento e percurso de Jesus Cristo fossem evidentes, as Estações da Cruz, a Procissão e o Caminho do Calvário são reproduzidos sob o seu contexto nesse ambicioso capítulo, acrescentando-se ainda o seu Pilatos, neste caso Lex Luthor, que constantemente patenteia um discurso ateu de contornos profanos.

Curiosamente, existe outra metáfora escondida que é visualizada no primeiro encontro de Bruce Wayne / Batman e Clark Kent / Super-Homem. Durante a festa organizada pelo vilão de serviço, é possível deparar-nos com o quadro “O Balanço do Terror”, de Cleon Peterson. O artista contemporâneo de Los Angeles considerou o seu referido trabalho, numa simbolizada luta entre poder e submissão, cuja violência é um ciclo interminável. São dois lados que se confrontam intrinsecamente (e socialmente) no nosso herói de capa vermelha, que se esboça na ideologia formatada deste “episódio-piloto”.

Entre a barafunda total (o previsível abuso de CGI) e o “bem esgalhado”, “Batman V Superman: Dawn of Justice” suscitará paixões, ódios e até mesmo alguma indiferença entre o público. Porém, a experiência não é totalmente nula. Há sim pequenas surpresas que fazem adivinhar o pretensiosismo da DC / Warner em não ficar a “comer poeira” do seu concorrente. Veremos como se sairá neste batalha campal de milhões de dólares investidos.

Movimentos noturnos ou como a culpa abala moralidades

Hugo Gomes, 15.07.14

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Na teoria, os três ativistas-protagonistas são os heróis intervenientes que atuam na marginalidade que o mundo atual precisa urgentemente. No entanto, em "Night Moves" (não confundir com a homónima obra de Arthur Penn) é difícil criar empatia com este mesmo trio. A sexta longa-metragem da realizadora Kelly Reichardt remete-nos para um grupo de ativistas radicais com planos para fazer explodir uma barragem que, segundo estes, é o primeiro passo para impedir a rápida escassez e destruição do oceano. Porém, por mais ativistas que sejam, estes esquecem-se de que são, acima de tudo, meros humanos (e talvez inexperientes no ramo), emocionalmente fragilizados e conscientemente instáveis.

O que começa como um thriller perspicaz, delineado sob alguns contornos hitchcockianos, depressa se converte numa melodia de culpa, um eco consequencial dos atos ambíguos. As mensagens ecológicas (existe uma curiosa sequência de uma corça prenha defunta cujo seu "rebento" ainda vivo transmite uma metáfora de tal natureza ao espectador - o nascimento de novas gerações num "mundo" destruído e insustentável) são assim invocadas como macguffins deste grupo de personagens, condenados desde o início a prevalecer numa sociedade ditada pela relevância e influência dos media e da opinião pública, que por sua vez dita os contornos da consciência individual. E é nisso que "Night Moves" funciona, não como um ensaio cinematográfico sob o mote de Al Gore, mas como um reflexo das causas, dos atos e da intervenção não como um bem individual, mas como um dispositivo para a autodestruição do mesmo. Sob sinais, é fácil identificar a evolução das personagens, meros "tubos de ensaio" num biótopo conduzido em tais elementos.

Quanto à estrutura, dentro do cinema de Reichardt, "Night Moves" é capaz de surpreender pela forma como conduz a narrativa, desafiando a sua própria marca, onde o percurso, em “lume brando”, é mais importante do que o destino. Neste caso, o destino é-nos dado de forma reveladora, mas é evidente que os caminhos trilhados são mais entusiasmantes do que a dita chegada. E é sobre esse caminho que a realizadora, argumentista e também editora, implanta uma sonoplastia aguçada em equilíbrio com uma fotografia misteriosa, tudo isto funcionando em cumplicidade com um poder de sugestão que a cineasta valoriza em vez do tom mais explícito dos cânones do thriller.

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A juntar aos elementos técnicos, narrativos e morais (neste aspeto a discussão será imensa), "Night Moves" valoriza-se igualmente pelo empenho dos três protagonistas, com Jesse Eisenberg a abandonar o seu reconhecível maneirismo e deixar-se ser conduzido numa melancolia denunciadora, que, sob pequenos pormenores, desafia o espectador a decifrar a sua psique e uma dualidade transgressiva. Quanto a Dakota Fanning, a pequena e outrora aclamada "prodígio", parece a passos largos de abandonar a imagem de "menina talento", agora já formada, a apostar em papéis mais maduros e negros. Por fim, Peter Sarsgaard, num desempenho arrepiantemente envolvente.

Assim, Kelly Reichardt assenta num filme complexo, mais do que estruturalmente aparenta. Um exemplar frio e por vezes calculista sobre a negra natureza humana, servido de uma qualidade técnica, referências cinematográficas de requinte e a conduta dos três protagonistas em construir personagens desagradáveis mas sob desempenhos sólidos. Tendo em conta a essência de "Night Moves", o Homem é capaz de tudo, até mesmo de tecer a sua própria moralidade.

Duplo 'V'

Hugo Gomes, 15.05.14

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Cada indivíduo possui três identidades distintas: a ‘pessoa’ que julgamos ser, a que desejamos ser, e, finalmente, a que realmente somos. "The Double", de Richard Ayoade (após "viajar" no "Submarine"), é uma inquirição dessas três facetas, integrando-as nos diferentes atos da narrativa.

O enredo transporta-nos para um mundo difícil de identificar, obsoleto na sua tecnologia, decadente e renegado pela luz do dia. Nesse cenário, reminiscente da antiga ficção científica russa, seguimos Simon James (Jesse Eisenberg), talvez o sujeito mais infortunado de sempre, marginalizado pelos outros, incluindo a própria mãe, que, a cada visita do filho, tem a "amabilidade" de expressar a sua vergonha em relação a ele. Desconhecidos aconselham-no constantemente que o suicídio é o melhor remédio para a sua infeliz existência. Para piorar o seu quotidiano insuportável, um novo trabalhador chega à empresa de Simon James, sendo acarinhado e elogiado, um modelo a seguir. Contudo, este James Simon (nome do recém-chegado) é uma cópia exata do nosso protagonista, que só ele consegue perceber as semelhanças.

Baseado num homónimo livro de Fyodor Dostoevsky, o filme remete-nos às crises existenciais e individuais expostas numa ficção metafórica que, nas mãos do realizador, se revela num filme altamente estilizado e "embrulhado" numa atmosfera envolvente e desesperante. "The Double" é um exercício cuidado de estilo que revigora o seu existencialismo quase panfletário através de imagens embebidas em melancolia contaminadora para com os próprios atores. Jesse Eisenberg, a "metralhadora" oratória, parece enquadrar-se perfeitamente nesses "bonecos" vazios que o cenário distópico incute, mas ainda mais na dualidade, a grande anomalia das anomalias, o catalisador de toda a trama, quer física ou psicológica. Em complemento, Mia Wasikowska é a "princesa" do gótico e da tristeza falseada.

Há um cruzar de referências, desde Lynch a Tarkovski, Proyas a Gilliam, compondo uma partitura cinematográfica na qual é possível identificar contornos kafkianos, um labiríntico existencialismo com personagens à mercê da dissecação. Por fim, há que perguntar: será que conhecemo-nos realmente? Conforme a resposta, temos aqui uma proposta cativante de cinema!