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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O Fim do Mundo em cuecas!

Hugo Gomes, 25.12.21

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Ao encontro da sua contemporaneidade, Adam McKay “abocanha” elementos pitorescos para um caldeirão de caricaturas a fim de condensar a receita dos nossos dias. É de facto que a indicação de “uma comédia da nossa atualidade” e todas as suas derivações, ou sinónimos, são (a esta “altura do campeonato”) clichés atrás de clichés que não adiantam nem afrontam em nada neste “Don’t look Up”, uma tragédia de inúmero caudais, ora certeira, ora disparada, que revela um dos melhores trabalhos de um realizador tão dado a “chico-espertices” como McKay. Por vezes, há que desejar o armagedão como solução final para a futilidade e cinismo (adicionando a fórmula de “estupidez” em todas elas) no qual virou a raça humana, e é nessa interpretação que conseguimos lidar com a sátira hipócrita aqui descrita (um elenco demasiado luxuosos para não conseguirmos afastar-nos do seu lado de produto de prestígio hollywoodesco).

Felizmente, a grande viragem deste novo ensaio reflexivo perante os outros pelo qual McKay deseja ser reconhecido (“Vice” ou "The Big Short”), afastando-o das comédias estapafúrdias e de êxito improvável (salva-se alguma astúcia nas indignação de Ron Burgundy ou na acefalia “americanada” de Ricky Bobby). É que, na verdade, o realizador ri-se com o espectador e não ri-se dele. A superioridade, pelo menos a sua dedução como tal, é por fim inibida com pé de igualdade. Se o derradeiro destino do planeta Terra é este … então despachemos esses “cavaleiros do Apocalipse" de uma vez por todas.

A Guerra Fria e o seu canto do cisne

Hugo Gomes, 01.03.18

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O pano ergue-se. A orquestra arranca o primeiro acorde, preenchendo o teatro com uma melodia rompante e furiosa. Por fim, entra em cena a estrela, a dançarina que exibe toda a sua destreza, dirigindo-se graciosamente para a luz do holofote que a ilumina de essencial natureza. Ela é a rainha do palco, e todos os olhos da ópera a seguem como se tivesse sido decretado pecado perder de vista qualquer movimento que seja produzido pelo seu corpo delicado. Contudo, a alguns metros dali, um outro “bailado” decorre, um americano vagueia pelo jardim noturno em busca da sua “toupeira”, o infiltrado/aliado na sua luta contra o sovietismo oculto mas presente. O encontro destas duas figuras misteriosas vai-se revelar uma emboscada, da mesma maneira que a dançarina será traída pelos movimentos adversos do seu companheiro de dança. Que tragédia … em ambos os cenários. Aparentemente, nada de relacionado existe nesta convergência temporal, mas há uma carnalidade entre estes dois momentos nesta intriga imaginada por Jason Mathews, no seu bestseller: “Red Sparrow”.

À primeira vista, eis mais uma oportunidade de Hollywood seguir a sua infernal busca pelos antagonistas vermelhos – a União Soviética bem entranhada na memória do cinema de espionagem dos anos 60 e 70 – continuando a persistir em velhos rancores (provavelmente nunca expirados) e atribuir o seu quê de pastiche em todo este cenário. É a Rússia “gringa” a pairar como a ameaça num filme sem atitude de esquivar os seus evidentes maniqueísmos, até porque justiça e medo apenas estão distanciados por 4 km. Mas face a isso, o grande dispositivo de “Red Sparrow” fez escola na formação de novas Mata-Haris – a piscar os olhos às aventuras trágico-eróticas de Tinto Brass (“Salon Kitty”, 1976), revelando-se o novo produto de Francis Lawrence num objeto no mínimo sedutor; quer no requinte técnico-narrativo (a primeira sequência encadeada é um exemplo grandiloquente disso), quer na construção da intriga, mantendo-se longe dos lugares-comuns do convertido cinema de ação (apesar da palavra-chave espionagem nunca ser uma “tag” para esse reconhecíveis códigos).

Essa sedução é trazida com tamanha frivolidade graças a Jennifer Lawrence, que tendo em conta aquilo que vimos em mother!, ou seja, a sua capacidade de se sujar, humilhar, submeter aos métodos dos seus realizadores, a convertem num habitual farrapo. Arrisco a afirmar que este é o papel mais trabalhado da sua carreira (mesmo que o sotaque artificial seja embaraçoso), mas provavelmente, em tempos de #metoo e de um dito puritanismo que ressurge a olhos vistos, a sua presença seja uma via para adensar Red Sparrow. Aqui, o arquétipo inicial transforma-se numa ode à “Força do Sexo Fraco”, um universo onde o ser masculino revela as suas maiores fraquezas e esclavagismos frente às “armas secretas” das mulheres.

A qualquer momento sentimos que o filme de Francis Lawrence anseia explodir do seu formalismo técnico (invejável tendo em conta as muitas produções do género) e da sua agressividade inerente, quebrando os códigos definitivamente. Mas já sabemos o que a casa gasta. Por outras palavras, como Hollywood anda à deriva do fácil mercado. Isso torna-se numa espécie de travão para “Red Sparrow”, um filme mais interessante nas entrelinhas do que na sua fasquia. E tal como a natureza da sequência inicial, existem constantes oscilações: a graciosidade de um lado, a imperatividade do género do outro.