Laetitia Dosch: "tento fazer humor com algo que me assusta bastante: o modo como estamos tão separados uns dos outros"
Le Procès du Chien (Laetitia Dosch, 2024)
Levante-se o réu… ou, neste caso, sente-se… isso, lindo menino!
O absurdo de um julgamento a um cão não é uma ideia insólita na nossa história humana. Na Idade Média, era comum realizar julgamentos a animais domésticos, sendo o mais notório o de um suíno por infanticídio, no século XIV, terminado com o enforcamento do ‘pobre animal’. Contudo, não estamos a falar de períodos negros da História, ainda que atravessemos uma negritude por dissecar, e "Le Procès du Chien" leva-nos justamente a isso… aos tempos modernos, reflectida num hipotético caso de tribunal a um cão.
Vencedor do Palm Dog no Festival de Cannes de 2024, o filme assinala a estreia na realização da actriz e encenadora Laetitia Dosch. Por cá, conhecemo-la como protagonista de obras como "Jeune Femme", "Passion Simple" ou aquela mãe que tantas iras contrariam no espectador, no encantador "Le Roman de Jim", de Arnaud Larrieu & Jean-Marie Larrieu. Aqui, para além de assumir a batuta da produção, é também ela a protagonista — uma advogada de causas perdidas que aceita este trabalho irrisório, em andanças igualmente irrisórias. "Le Procès du Chien" mescla variantes de esperança e temor nesta contemporaneidade de diferenças e desuniões.
A actriz feita realizadora conversou com o Cinematograficamente Falando … sobre os seus medos, e como foram eles a origem deste filme de “patudos” a conquistar um júri. Quem sabe… à mercê de 12 Homens em Fúria!
Deixa-me iniciar esta conversa com uma das mais genéricas questões, acredito que já tinha sido recorrente a pergunta, mas cá vai: enquanto actriz por que decidiu dar esse grande passo e tornar-te realizadora?
Bem, também já escrevia peças de teatro, isso era um facto. Escrevi muitas e também as interpretei. Sempre tive o gosto de imaginar histórias.
Gosto de histórias e gosto ainda mais de estar dentro das histórias dos outros, mas também de imaginar as minhas próprias. Durante muito tempo não acreditava que seria capaz de fazer um filme, até que um dia, um produtor veio ter comigo depois de assistir a uma peça o qual contracenava com um cavalo em palco … estava sozinha com o cavalo [risos] … e ele disse-me: “Se sabes trabalhar com um cavalo, então consegues fazer um filme.”
A sério?
Sim! Não sei se é mesmo verdade [risos], mas, pronto... acabei por avançar num filme!
Então esta não foi também a tua primeira experiência a dirigir um animal em set? [risos]
Na verdade, foi a segunda vez que dirigi um animal. Mas não foi a minha primeira experiência a dirigir atores, nem a trabalhar com guarda-roupa ou cenografia. Já tinha essa sensação de estar a construir um mundo.
Algo claro no seu filme e que ele não oculta tal facto, é o de “Le Procès du Chien” ser inspirado numa história verdadeira. Foi você que se deparou com essa mesma história?
Não, na verdade a história veio até mim.
Através do tal produtor?
Não, foi de outra forma. Estava a apresentar o meu espectáculo com o cavalo, e no final uma mulher da plateia veio ter comigo, abraçou-me e disse que era advogada. Contou-me que tinha tido um caso em que teve de defender o dono de um cão, e aí partilhou-me essa história.
Era praticamente a história do filme. Pela lei, o cão era considerado uma ‘coisa’. E como o cão tinha mordido três vezes, foi o dono que foi a julgamento, não o cão. Mas a forma como ela me contou tudo, com tanta emoção, tocou-me. Percebi que podíamos falar, de forma séria e até divertida, sobre questões muito importantes: a nossa ligação com outras espécies, por exemplo.
Le Procès du Chien (Laetitia Dosch, 2024)
Sim, há esse lado absurdista nesta história, contudo, na sua ficção quem é julgado não é o dono, mas sim o cão.
Exato. Porque todos sabemos que um cão não é uma "coisa". Mas então... o que é? Há um momento estranho no filme em que a juíza, ao reconhecer que o cão não é uma coisa, diz: “Muito bem, então talvez ele seja alguém.”, a partir daí, decide-se que o cão deve ser julgado, para se apurar o seu grau de responsabilidade.
É absurdo... mas ao mesmo tempo não é assim tão absurdo. Porque se um cão não é uma ‘coisa’, juridicamente não sabemos muito bem o que ele é. Existe um momento no seu filme em que está a tentar decidir se o cão é uma ‘coisa’, uma pessoa, ou algo mais. E a discussão prossegue para o terreno da alma… Tens ali filósofos, professores, cientistas a discutir o que é um cão, ou melhor, o que é um animal. Isso fez-me lembrar um caso na Índia, onde existe uma lei que classifica os golfinhos como “pessoas não humanas”, para que possam ser protegidos e detenham alguns direitos. Legalmente, não são humanos, mas algo que caminha entre …
Sim, mas se começamos por aí, criamos uma hierarquia entre os animais: uns mais importantes, outros menos. Isso complica tudo. Agora, se dissermos que todos os animais são semi-humanos... então não podemos mais comer carne, e isso levanta grandes questões. Não sei qual é a resposta certa, mas acho que chegou a altura de tentarmos responder. Porque não se trata apenas dos animais, trata-se da nossa relação com todas as outras espécies. Com as plantas, até com a água. A forma como nos relacionamos com os outros habitantes deste mundo está a causar muita destruição… e muito calor no verão.
O seu filme levanta muitas questões, mas não oferece respostas. Nem o final dá certezas, é quase desconcertante. Há algo que me parece muito inteligente: ao atribuíres humanidade ao cão, e ele acaba por ser... misógino.
Sim, porque ele só morde mulheres [risos].
Esse é o problema. Ao longo do filme, muitas personagens tentam definir o cão, dizem que ele é isto, aquilo, o outro, mas a verdade é que ninguém sabe realmente quem é este cão.
Essa ambiguidade é muito interessante. Se o cão for comparado a um humano, e é declarado um macho misógino, então, por esta lógica, ele merece o perdão da sociedade? Porque se no caso de um homem misógino, por exemplo, a sociedade não demonstraria igual clemência? São perguntas que o seu filme parece incentivar.
Sim. Mas o julgamento não é sobre o cão ser misógino, é sobre ele ter mordido a cara de uma pessoa. O facto de o cão parecer misógino, ou ser acusado de o ser, é mais um sintoma do problema. Porque isso acaba por dividir as pessoas, cria tensão entre activistas dos direitos dos animais e feministas, por exemplo.
Sim, existe uma separação, ou talvez até exposição, dessas divisões entre diferentes formas de ativismo no filme.
Sim, tento fazer humor com algo que, na verdade, me assusta bastante: o modo como estamos tão separados uns dos outros. A dificuldade que temos em comunicar, em construir uma sociedade em conjunto.
Fala-se muito hoje em dia de como vivemos numa sociedade “extremamente polarizada”, que já é frase recorrente. Basta ver as notícias, ou olhar à volta...
É verdade. O filme tenta fazer humor sobre o nosso tempo, sobre tudo o que me assusta neste tempo.
Partimos então para o seu processo como realizadora. Como surgiu a decisão de se colocar como protagonista na sua estreia na direcção? Foi uma escolha imediata, quando começaste o projeto? Ou considerou outras atrizes?
Inspirei-me muito em realizadores como Nanni Moretti e Woody Allen. Eles colocam-se no centro das histórias, como se dissessem ao público: “vou mostrar-te o que se passa na minha cabeça”. Também redescobrimos essa lógica na série “Fleabag” durante este processo, como também pensei em Louis C.K. Gosto muito de retratos íntimos, e então tentei fazer o meu. Porque adoro ver esse tipo de obras.
Acredita que este tipo de abordagem — realizar e atuar ao mesmo tempo — será um modus operandi que repetirá nos seus próximos projetos? Ou este salto para a realização poderá ser visto como algo único?
Por um lado, tenho algum receio. Mas não se trata só de medo. Hoje, quando vejo o filme, já não o sinto como “meu”. Pertence a um momento específico. Agora, sou uma pessoa diferente daquela que realizou este filme. Contudo, tenho de perceber quem sou agora, para poder fazer um novo filme.
Le Romain de Jim (Arnaud & Jean-Marie Larrieu, 2024)
Quando vê o seu filme hoje, há algo que gostaria de mudar? Podemos considerar a Laetitia como um daqueles realizadores que não gosta de rever os próprios filmes?
São duas coisas diferentes. Por um lado, olho para o filme como um objeto e penso: “isto podia estar melhor, aquilo podia ser diferente”. Mas, por outro lado, sei que se fizesse o filme agora... não seria o mesmo filme. Seria muito mais lento, por exemplo.
Quanto à sua carreira como atriz, já trabalhou com várias realizadoras e realizadores distintos como Justine Triet, em “La Bataille de Solférino”, Léonor Serraille, em Jeune Femme, e, devo mencionar, porque foi um filme que estreou em França no ano passado, mas só este ano chegou a Portugal, “Le roman de Jim” dos irmãos Larrieu. Mas voltando ao tema da realização: aprendeu com os realizadores com quem trabalhou?
Sim, aprendi imenso com todos eles. Como atriz, aprendi muito sobre mim própria. Sobre como estar num set, sobre como criar um bom ambiente de trabalho. Cada um tinha uma abordagem diferente, mas todos tinham uma força enorme, e não foi só com os realizadores, foi ao observar toda a equipa. Quando via as pessoas a trabalhar nos cenários, nos adereços, nas localizações... era impressionante. Cada trabalho ali tinha beleza. Aprendi imenso só de ver isso.
Na verdade, foi isso que me deu ainda mais vontade de fazer um filme: ver todas aquelas pessoas a trabalhar em conjunto.
Mais até do que observar os próprios realizadores a dirigir?
Sim, mas também aprendi com isso. Com os realizadores a trabalharem comigo. Aprendi que um realizador nunca deve ter medo dos atores.
Mesmo quando os atores são muito famosos, ou mesmo quando não são, o que todos querem, no fundo, é um realizador que lhes dê a mão. Que lhes diga: “estás bem, estás no caminho certo, eu estou aqui contigo”.
Muitos realizadores, especialmente no início, sentem-se um pouco intimidados pelos atores. Mas não deviam. Porque os atores precisam dessa presença confiante do realizador para conseguirem dar o melhor de si.
Por vezes nem gostam deles.
[Risos] A sério?
Sim, tenho conhecimento de realizadores que detestam trabalhar com atores, e como resposta muitos deles apenas trabalham com amigos.
Bem, os amigos também podem ser atores, não é?
Claro. Há quem diga até que prefere trabalhar com amigos do que com o "melhor ator do momento". O Orson Welles, por exemplo, parafraseou isso.
Mas ele trabalhou com a Rita Hayworth... que era a mulher dele, e era maravilhosa.
Sim, mas quando o Welles afirmava tal já se encontrava na fase mais tardia da carreira, com projetos na Europa, mais decadente, com uns quantos trabalhos inacabados e fracassados. Não era o Orson Welles do logo após ”Citizen Kane" e ainda a dar tudo por tudo em Hollywood.
Mas para mim, os atores no set são meus amigos. Pronto, está explicado.
Durante a rodagem na Suíça, fazíamos fondue todas as semanas! Criámos um verdadeiro espírito de grupo. Muitos dos atores que escolhi são também realizadores. Não a Anabela [Moreira], mas ela é uma mulher absolutamente fantástica.
Mas ela co-realizou alguns trabalhos com o João Canijo … mas já agora, devido à menção, e como português, tenho que lhe perguntar: como surgiu a Anabela Moreira no seu projeto?
Tive muita sorte! Na história real havia mesmo uma mulher portuguesa, empregada doméstica, que foi a vítima das mordidelas e que decidiu apresentar queixa. Queria que essa personagem fosse alguém com muita força. Alguém com presença, com personalidade — fosse famosa ou não. Tive a sorte de conhecer a Anabela, e ela aceitou o papel.
Para mim, a personagem dela — Lorraine — é a verdadeira figura feminista do filme. É ela quem mais evolui, quem ganha mais independência e liberdade ao longo da história. Mesmo que não esteja presente o tempo todo. Por isso precisava de uma atriz muito forte.
Reparei também noutra coisa: a sua personagem portuguesa não é o típico estereótipo que se vê noutros filmes. É uma mulher independente e só sabemos ser portuguesa apenas numa menção no julgamento. Ou seja, poderia ser de qualquer outra nacionalidade, e neste ponto, o desempenho de Anabela não denuncia nada.
Sim! Ela tem muita dignidade. Não quer parecer-se com ninguém, e isso é o que gosto nela. Tal como na vida real, na verdade, as pessoas surpreendem-nos. Não são estereótipos, são únicas. Pretendia que esta mulher fosse daquelas que queremos conhecer. Um pouco estranha, talvez, meio sexy, meio solitária. Acima de tudo com uma presença fortíssima.
Le Procès du Chien (Laetitia Dosch, 2024)
E como foi trabalhar com o ator principal de quatro patas? É difícil dirigir um animal?
Não acho que seja difícil. Depende muito. O essencial é escolher bem: tanto o cão como os treinadores.
Apaixonei-me por este cão, e pelos treinadores também [risos]. Trabalhar com eles foi maravilhoso. Tínhamos uma ótima comunicação. Ensaiámos bastante, falámos muito. Cheguei a reescrever cenas para o cão. Toda a planificação do filme foi feita em função dele, para que estivesse confortável. Tinha um espaço só dele, havia regras para o proteger. Tudo foi pensado para que se sentisse bem e acho que ele sentiu. Portanto, não foi difícil, e sim adorável.
Esta pergunta é mais abstrata sobre o seu filme, porque ele toma vários caminhos e o final vai numa direção muito diferente das anteriores …
Como a vida.
Exatamente. Mas cá vai: podemos entender o seu filme como um feel-good movie? Porque há uma intenção de conforto, de humor... mas depois há uma certa traição, o filme não entrega uma resposta fácil, nem a festinha necessária.
Há muito amor neste filme, é o que posso dizer. É tudo sobre o amor, de certa forma. Os personagens são emocionantes e divertidos. Todos são um pouco marginais. Até o cão. São personagens fortes, mas que não são totalmente aceites pela sociedade, e ao mesmo tempo, são adoráveis. Há muita coisa engraçada no filme, só que partilham com muita melancolia.
Então... será um feel-good movie? Talvez seja um filme que nos faz querer amar as pessoas. Cuidar. Pensar. Cuidar dos animais, dos cães, das pessoas. Questionar-se. Portanto, não é um feel-good movie no sentido mais leve. Não é um filme fácil. Porque a vida não é fácil nem divertida o tempo todo. Mas podemos rir da vida e podemos aproveitá-la.
Há um … aliás, outro elemento muito atual no seu filme, que salta à vista: a advogada de acusação, interpretada por Anne Dorval, é uma figura popular naquela sociedade e que entra na política. Pelos vislumbres que temos no filme converte-se num tipo de político populista e demagogo, um arquétipo que conhecemos bem neste mundo em que vivemos.
Sim, completamente.
Foi sua intenção injectar esse elemento populista, quase caricatural, mas que, no fundo, e infelizmente, também tem muito de real?
Totalmente. Quando escrevi o filme, já me assustava ver como certas figuras públicas ganhavam popularidade com base no absurdo. Hoje tenho ainda mais medo. Porque esses populistas parecem palhaços, e isso faz parte da força deles. Querem parecer ridículos, porque assim as pessoas falam deles, e falando, dão-lhes poder.
É um absurdo... falso. Porque, na verdade, é realista. Às vezes olho para as notícias e parece que a verdade deixou de existir. Que se escondeu e o mais importante passou a ser: “the show must go on.” Para mim, é disso que trata essa personagem.
Chegando agora à sua carreira como atriz. Tem novos projetos?
Sim. Terminei a promoção do meu filme em outubro. Depois actuei num filme chamado “La Maison des Femmes" (Melisa Godet), sobre uma associação em França que apoia mulheres vítimas de violência. É um centro onde trabalham médicas, psicólogas, assistentes sociais — pessoas incríveis a ajudar mulheres. Interpreto uma das médicas. Tenho muito orgulho nesse projeto.
Mas depois disso... não me sentia inspirada. Fiquei em casa, no sofá. Quase sem conseguir mexer-me. Então decidi viajar. Fui a Lisboa, em dezembro, e depois fui para Barcelona. Precisava que a inspiração viesse até mim. Estava a estudar yoga em Barcelona quando recebi um telefonema para interpretar “Mãe Coragem” [peça de Bertolt Brecht e Margarete Steffin], num espectáculo que anda em digressão pela Europa. Agora estou em tournée com a peça. Tenho o papel principal. Esta semana atuo em Barcelona. E é lindo. Mas... ainda não sei o que vou escrever a seguir.
Mas continuas ligada à escrita dramática e ao teatro?
Não sei. Agora acabei de fazer um filme. Em dezembro fiz “La Maison des Femmes”. E agora estou no teatro. Mas o que me importa mesmo é isto: o encontro com as pessoas. As relações. É isso que me move.
Jeune Femme (Léonor Serraille, 2017)
Hoje em dia acho que é uma pergunta muito pertinente, mas estive a rever a sua carreira... e percebi que, nos últimos anos, trabalhou com várias realizadoras. Isso foi uma escolha consciente?
São relações. Estou muito feliz por ter conhecido cada uma das mulheres com quem trabalhei. São todas muito inteligentes e muito diferentes entre si. Foi uma grande alegria, como atriz, poder entrar na cabeça delas, tentar perceber o que queriam, encontrar o que procuravam nas personagens. É um desafio que me dá imenso prazer. Mas também sinto esse prazer com realizadores homens, claro. Não sei... Não sei ao certo. Só sei que tive muita sorte em poder trabalhar com estas mulheres.
Sim, porque vi nomes como Danielle Arbid, Léonor Serraille, Catherine Corsini, Maïwenn...
Sim, e Melissa Godet também. Talvez nos últimos cinco anos tenham sido mesmo muitas. Mas não sei se é uma questão de género. Elas são muito diferentes entre si. Cada uma tem o seu estilo. Não dá para generalizar, o que é ótimo, aliás.