Trio de Odemira (XI)
Jean-Luc Godard, Jean-Paul Belmondo e Anna Karina durante a rodagem de "Pierrot Le Fou" (1965) / Foto.: Corbis
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Jean-Luc Godard, Jean-Paul Belmondo e Anna Karina durante a rodagem de "Pierrot Le Fou" (1965) / Foto.: Corbis
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Espero que Godard não se revire na sua tumba devido a esta semi-apropriação, mas dou por mim a pensar no pouco, ou cada vez menos, se fala de Cinema nos dias de hoje. Cismamos numa sociedade gradualmente divorciada do Cinema enquanto ato ou evento cultural, sociológico e até mesmo político (para além do ativismo que se têm diluído com o capitalismo feroz), ou pela transladação de muitas dessas características aos produtos sob a máscaras de falsas-séries ou de "televisão do século XXI", porém, nem essa degradação que falo, e outros falam incessantemente. Digamos, que este texto não é mais que um desabafo - daqueles que surgem a meio da nossa existência como uma crise qualquer, de natureza identitária, existencial ou até mesmo artística (dou-vos de bandeja, os “calhaus” para o meu “apedrejamento”) - até porque tenho encontrado no “cinéfilo” um sujeito cada vez irritante.
Primeiro, sigo pela básica ordem que o cinéfilo é um “amante de cinema”, um ávido consumidor (palavra pejorativa, eu sei), ou mais que isso, um cultuador de filmes e todos os seus adereços, que através dessa sua experiência adquire ferramentas para um conhecimento para lá do comum dos mortais desses mesmos territórios. Eventualmente, deparo-me com essa figura cada vez abstracta, por um lado, colhedor de um ego absolutista (falar de Cinema é falar dele e apenas dele), por outro é a ideologia a dominar os palanques discursivos: ora como o cinema deve ser assim e não assado, e do outro campo quem acredita que cinema deve ser assado e não assim. Dou-me por mim a odiar a “toca do coelho” que em certo dia tropecei e de lá nunca mais sai (nem desejo o fazer), porque o que constato é esta embirração pelas nossas confortabilidades. O cinema de arrojo que muitos anseiam sentir e a segurança das estéticas que outros apelam enquanto unidade de espectador, nenhuma destas facções diluem, nem embatem em discussões harmoniosas. É um confronto bélico, de um contra o outro, subdivididos por ligas, ora a modernidade e o clássico, novamente inimigos, sem reconhecer as suas ligações venéreas.
Talvez isto seja meramente cansaço da minha parte, ou … a cinefilia chegou a um estado de intensa exaustão. Conforme seja a realidade, o que poderemos estar todos de acordo é que pouco falamos sobre Cinema, e devemos falar mais sobre o dito Cujo.
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La Sortie de l'usine Lumière à Lyon (Auguste Lumière & Louis Lumière, 1985)
Modern Times (Charlie Chaplin, 1936)
Tout va Bien ( Jean-Luc Godard & Jean-Pierre Gorin, 1972)
La loi du marché / The Measure of a Man (Stéphane Brizé, 2015)
Trabalhar Cansa (Juliana Rojas & Marco Dutra, 2011)
La mano invisible / The Invisible Hand (David Macián, 2016)
North Country (Niki Caro, 2005)
Sorry We Missed You (Ken Loach, 2019)
Stachka / Strike (Sergei Eisenstein, 1925)
Ressources Humaines / Human Resources (Laurent Cantent, 1999)
Labour of Love (Aditya Vikram Sengupta, 2014)
A Fabrica do Nada (Pedro Pinho, 2017)
Vida Activa (Susana Nobre, 2014)
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Entretien entre Serge Daney et Jean-Luc Godard (Jean-Luc Godard, 1988)
“Hoje, consigo reproduzir procedimentos intelectuais ou discursos próximos dos seus - enfim, próximos do Godard daquele período, uma vez que não sei realmente onde está agora. Sem dúvida que há, no gozo de alguém como ele, uma parte que não é comunicável. A respeito de Godard, Jacques Rancière usou o termo passador. O passador é aquele que reserva para si o gozo da última palavra. Há então uma forma de competição e será cada vez maior para se chegar a ser o último. Godard é, talvez, o último grande cineasta, e eu talvez seja o último crítico a tê-lo feito com … Este orgulho que consiste em querer representar um estado terminal ou uma memória lendária é difícil de passar socialmente; deve haver uma espécie de contradição, um constrangimento duplo, onde colocamos as pessoas e que explicaria, efectivamente, que são absolutamente incapazes de …”
- Serge Daney entrevistado por Serge Toubiana [Fevereiro, 1992], publicado sob o título "Perseverança" (edição portuguesa, com tradução de Luís Lima, publicado pela The Stone and the Plot)
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“Vamos antes ver o ‘Terminator 4''', sugere o par de jovens que abandona o cinema de bairro após a resposta negativa quanto à presença de peitos em “Bolero Fatal”, esse tumultuoso filme-fictício que serve de coração para a narrativa de “For Ever Mozart” (Jean-Luc Godard, 1996). Esta atitude em forma de sketch segue no eixo de uma caricatural première, o qual, após uma debandada generalizada dos possíveis espectadores, o filme, esse “Bolero”, é erradicado automaticamente da mesma sala. Isto para salientar um dos aspetos importantes deste filme que por sua vez reflete na demanda de Godard, a busca pelo “não-filme”, o seu interesse pela “possibilidade de” e não o concreto.
Antes da notícia que abalou o mundo cinéfilo - o Cinema órfão de Jean-Luc Godard, - a SR Teste Edições editava a tradução dos diálogos entre o cineasta e a escritora e realizadora Marguerite Duras, uma compilação deliciosa em três saltos temporais, que subtilmente revelava um embate de ideias quanto à palavra e a sua importância para com quem trabalha com imagens. Por diversas vezes, Godard mencionava os “não-filmes” por entre os diálogos, desde aquele trocado por Duras e Gerard Depardieu em "Le Camion" (1977), ou a adaptação inconvencional de “L'Amant” [livro da autoria de Duras] através dessa troca de ideias, até ao desprezo ostentado por Bertolucci pelo preciso momento em que avança com “The Last Emperor”. Godard escolheu o caminho eremítico, questionando e debatendo a própria cerne do Cinema enquanto estrutura estabelecida, e como tal possibilitou-nos a assistir nessas suas últimas pegadas na Terra, tremendas tentativas em concretizar um “não-filme”. Gestos algo falhados, portanto, inconcebível porque desde o momento que se avançava num projeto, esse idealizado “não-filme” deixaria automaticamente de existir.
É um paradoxo, aquele em que Godard se “enfiou”, mas antes disso, é a mentira que tentou vender a si mesmo para "disfarçar" a sua perda de crença no Cinema. Sim, Godard deixou de acreditar no Cinema, deixou de vê-lo como uma arte humana, criada por Homens e pensada por Homens. Deixou de crer no Cinema enquanto algo atingível. Para Godard, o Cinema havia esgotado, não restava nada, apenas os filmes ditos e nunca elaborados, nunca encenados, nunca escritos, os tais “não-filmes”.
Em “For Ever Mozart”, existe uma inicial crença na vitalidade do Cinema, tentando repescar esse espírito dos anos 60, onde a desconstrução, o burlesco, a aceleração e as ideias invocadas e rachadas em película seriam o mote do seu diálogo audiovisual. Mas tudo se tratou de uma miragem, de uma ilusão, no fim de contas, o verdadeiro filme, o Cinema digamos nós, em Godard, está no “Bolero Fatal”, o “não-filme” do seu “filme-real”. O “não-filme” como macguffin. O “não-filme” todo ele renegado da sua estreia.
Desta maneira, é possível constatar a descrença, não só no Cinema, como também no seu público, desinteressados quanto à subversão e à perversão. Convertendo-se em escravos da indústria e do cinema “empapado”, ansiosos pelo que estão familiarizados (o gag do ‘Terminator 4’) do que a descoberta que um filme “fatal” poderia proporcionar.
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For Ever Mozart (Jean-Luc Godard, 1996)
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OUT 1: Noli me Tangere (Jacques Rivette, 1971)
La Nuit américaine (François Truffaut, 1973)
Masculin Féminin (Jean-Luc Godard, 1966)
Rosa Mystica (Eva Ionesco, 2014)
Domicile conjugal (François Truffaut, 1970)
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Baisers volés (François Truffaut, 1968)
La Maman et la Putain (Jean Eustache, 1973)
400 Coups (François Truffaut, 1959)
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"A Man" (Kei Ishikawa, 2022)
“A Man” abre e fecha sob a atenta presença de “La réproduction interdite” / “Not to be Reproduced", o célebre quadro da autoria de René Magritte, o qual vislumbramos um homem de costas voltadas ao espectador mas voltado a um espelho que somente reflete as suas costas (a imagem unicamente vista por nós daquele sujeito). A sua identidade é um puro mistério aos olhos do lado de lá da “quarta parede”.
Uma brincadeira que em tempos Samuel Beckett em cumplicidade com Alain Schneider e o clown Buster Keaton colocaram em prática - “Film” (1965) - emanando a dominância do espectador perante as figuras cinematográficas o qual cruzariam acidentalmente o seu olhar com a audiência [tenebrosa]. Do outro lado, em memória a Godard - o hoje desaparecido - Belmondo falava para com o público descontraidamente natural, o desejo não é o de ser a realidade de um filme, mas antes falsear um filme perante a realidade estabelecida. “Para quem estás a falar?” perguntaria a sua pendura Anna Karina, deslocada daquele comportamento errático em “Pierrot Le Fou” (1965). “Para a audiência”, respondeu o nosso Ferdinand, o Pierrot batizado por improviso.
Porém, voltando a Magritte, a pintura ignora o seu voyeur, prosseguindo no mistério inabalável da sua identidade. Quem é aquele homem? A génese? O seu intermediário? O seu fim? Sabemos à posteriori, de que se trata de um retrato do poeta e patrono Edward James, porém, a realidade do quadro oculta essa informação, o que vemos nesse reflexo (onde um livro de Edgar Allan Poe pousado na bancada é devidamente refletido), é uma identidade performativa, como se a identidade não fosse outra ‘coisa’, um jogo em plena construção.
"La réproduction interdite” / “Not to be Reproduced" (René Magritte, 1937)
"Film" (Samuel Beckett & Alain Schneider, 1965)
Em “A Man” de Kei Ishikawa, o quadro serve para subliminarmente recordamos o quão maleável é a questão identitária, desde o seu refúgio aos parâmetros sociais, contrariando uma certa ideia regida pelo senso comum ou pelas sociedades panópticas (cada gesto nosso é monitorizado por uma entidade hierarquicamente superior), por outras palavras somos aquilo a que somos impostos, e porque não contrariar isso? O filme parte como um thriller, um mistério ocorrido após uma viúva (Sakura Andô, “The Shoplifters”) aperceber que o seu marido não era bem aquilo que se dizia ser, não um “simples” segredo, e sim toda uma figura. Entretanto, um advogado (Satoshi Tsumabuki, “The World of Kanako”) é contratado e parte numa investigação daquele verdadeiro homem (Masataka Kubota, “First Love”). No seu caminho vai para lá da mera tarefa, tropeçando em questões levantadas à sua própria identidade, adquirindo compaixão por aquele “transgressor”.
Existem momentos em que “A Man” parece descarrilar pela via de facto, uma delas é trazendo como dispositivo narrativo uma quid pro quo à moda de “The Silence of the Lambs”, perpetuando respostas instantâneas ao suposto "whodunit" (neste caso exerço a criatividade e o apelido formalmente de “whoishe”). O outro elemento fragilizado advém da passagem de testemunho, desta feita de “protagonismo”, colocando a família enviuvada e órfã (o nosso tapete de entrada para a narrativa) para segundo plano, com isto dissipando os seus dilemas existenciais em contacto com aquele imbróglio identitário (“o teu apelido pertence a um homem que não existe”).
"A Man" (Kei Ishikawa, 2022)
Ora cortado o vínculo emocional, “A Man” apronta-se a catalisar o dito tema da identidade com pequenos pontos de fuga, sugestões para a elevação do seu discurso, como por exemplo a inserção da arte dos condenados à morte, indicado ao não-serviço de absolvição de culpas mas antes para convidar o espectador a conhecer intimamente o seu artista (um tratado da sua própria vivência). Nessa possibilidade, a artificialidade da identidade esconde uma cerne genuína, impossibilitada de metamorfosear perante os nossos estímulos e vontades. Será essa a verdadeira identidade, ou é somente a chamada existência, o qual devemos desassociá-las e emancipar esta última de qualquer padrão sócio-cultural?
Obviamente que o filme não capta respostas, nem as queremos. como "Rashomon” de Akira Kurosawa e mais tarde “The Third Murder” de Hirokazu Koreeda que remexem no conceito de ”verdade”, arrancando do seu absolutismo (“o que é a verdade?”, ou “é apenas uma questão de perspetiva?”), “A Man” provoca esse turbilhão conceptual desafiando as suas sólidas bases na nossa sociedade. Já Magritte, o seu último “cameo” na obra, é um memorando do quão possível é essa performatividade em relação à identidade. Recado? Não somos escravos da mesma.
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Jean-Luc Godard e Anna Karina no dia de casamento, foto de Agnès Varda
Ecos da canção de Clio pairavam na minha cabeça nesta manhã, só que ao invés de “Eric Rohmer est mort” ouvi “Godard est mort”. Por momentos não pude acreditar, quer dizer, 91 anos não era pêra doce, o seu desaparecimento estava longe do inesperado, mas … “A Morte de Godard” … planou em todos estes anos como um mito, um evento apocalíptico aludido como ameaça de uma morte cinematográfica anunciada, ou a destruição de tudo o que acreditávamos.
Godard, por mais tonto que pareça [quem conhece a minha pessoa sabe o bem], fez parte da minha instrução cinéfila. Desde que descobri o cinema propriamente dito, “devorando” clássicos e diferentes olhares, grande parte canónicos, digamos de passagem, alguém me aconselhava um certo cineasta francês. Nova Vaga, dizia ele, uma nova perspetiva de Cinema, depois disso nunca mais seria o mesmo, assim prometeria. A verdade é que de Godard, comecei por isso mesmo, no início, pelos acossados e vidas viventes, desprezos e géneros binários, porém, foi um louco que me conquistou de imediato. “Para quem estás a falar?”, pergunta Anna Karina. “Com a audiência”, responde Jean-Paul Belmondo. Era um doido, quebrou a quarta parede, falou comigo … sim, comigo, pensei perante aquela “anormalidade” em frente aos meus olhos, e num pequeno ecrã. Mais tarde, sentados nas estribeiras de um porto, o casal iniciava uma discussão. "Porque estás triste?” O resto foi a citação das citações, olhares sentimentais por palavras racionais.
Godard era “Pierrot Le Fou” na minha tenra idade. Eu sei, cliché, uma convencionalidade hoje em dia, perfeitamente endereçado à arrogância dos cinéfilos que competiam pelo mais obscuro dos obscuros. “Hipsters” diriam os mais mundanos. Deste lado, nada disso, Pierrot, Karina, Belmondo e o azul encharcado nas suas ventas, o apogeu do quão vibrante e automaticamente fresco poderia ser o Cinema. Passados estes anos ainda encontro ideias, experimentos, a dissociação das palavras com as imagens, o som com o movimento (Será que ouvimos realmente a música que habita na cabeça destas personagens, como a certa altura, um desesperante errante faz-nos crer?), o Cinema feito e refeito, atentado e tentado. O seu significado? Como responde Samuel Fuller naquela festa onde ninguém escute, onde ninguém dialoga: “Cinema é um campo de batalha. Há amor, ódio, ação, violência, morte ... em uma palavra: emoção.”
Muitos dirão, “é Pierrot que amas, não Godard”. Talvez essas vozes - os “godardianos” - tenham razão, ou talvez não. Eu e Godard, Godard e eu, a relação sempre foi tumultuosa em grande parte das vezes. Até porque Godard demonstrou-se um homem de ciclos, com várias mortes e vários nascimentos; o Godard político, o Godard experimentalista, o Godard professor, o Godard crítico em ensaios audiovisuais e o Godard existencialista, este último, como derradeiro sopro, gerar uma nova linguagem cinematográfica, nem que para isso tenha que “despedir das velhas”. Qualquer acadêmico saído da sua “gruta de conhecimento” cita Godard com a facilidade das facilidades. “Não gosto de Frémaux a dar lições, prefiro Godard”, certa vez li num estreante a crítico, erro dele em apoiar-se somente numa figura e não entender que Godard é um homem de quatro estações, existindo só nele a diversidade com que espelha o cinema.
A peculiar conferência de imprensa no Festival de Cannes de 2018, quando Godard apareceu aos jornalistas em videochamada
Continuando, recordo como fosse ontem, a tristeza com que saí da Sala Bunûel em Cannes [2018], naquela que seria a primeira sessão de “Le livre d’image”. Sim, tristeza, ao entender que Godard se colocava acima do próprio cinema, respondendo e desintegrando o misticismo de "Johnny Guitar" (“Ela mente”), e de seguida nos encher de imagens recortadas, dilaceradas, criadas e automaticamente a mercê da autodestruição. Será que o Cinema vale pouco para o mestre? O que pretendia com tudo aquilo? O poderia nascer naquela destruição? Ouvi aplausos ali, murmúrios acolá, o meu peito pesou, senti a boca seca e gritei: “O Cinema Morreu porque Godard deixou de acreditar nele”. Foram poucos aqueles que me ouviram, outros se riram, e quase todos eles, acenando com a cabeça, dificilmente conseguiam explicar o seu fascínio por aquela obra. Não os censuro, nem eu sei explicar concretamente o meu fascínio por algumas obras, quanto mais os outros.
Godard transformou-se num símbolo, ora um ícone de um cinema passado em resistência, ora um messias de um cinema ainda por nascer. E talvez seja essa a sua verdadeira essência. Ele nunca era somente algo, era tal e o seu oposto, a cura e o seu veneno [fez chorar Varda, renunciou Truffaut, nós na minha garganta], a erva do rato assim por dizer. Disse adeus à linguagem, mas sem saber criou uma, nunca despedimos verdadeiramente do Cinema porque o Cinema é mais que Godard e ao mesmo tempo Godard é o Cinema. Mas que fique claro, eu não desprezo Godard, via nele como uma criança, e sempre fora, neste jogo cinematográfico, em plena descoberta de uma paixão. Por vezes o Cinema tem destas ‘coisas’, vivemos o suficiente até se converter num projeto visto e revisto, reciclado e reutilizado.
Bem, o mencionado dia chegou. A premonição apocalíptica concretizou. “Morreu Godard”, nunca pensei que tal anúncio se concretizasse. O Mundo mudou. O Fim de uma era [“The End” em letras garrafais], o início de uma outra. Vamos ter que aprender a viver sem ele, o Cinema precisará viver sem ele, nem que seja do seu fantasma, o espectro quase sebastiânico com que a acérrima cinefilia se viu refém nas últimas décadas. Sim, morreu a lenda, o sábio, o charlatão, a distopia, a utopia, o génio, o louco, o canónico, o influente, o eterno jovem e o duradouro velho. Morreu Godard, o homem que odiei amar e que amei odiar. Esta é a minha sincera vénia, quer ao seu espírito, à sua memória, aos seus órfãos.
Adeus Jean-Luc, le Fou, a morte do Cinema, o renascimento do Cinema. Até tu “Deus”, morrerias um dia.
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Marguerite Duras na rodagem de “Le Camion” (1977)
Jean-Luc Godard na rodagem de “Sauve qui peut (la vie)” (1980)
“Jean- Luc Godard: Penso que os espectadores são mais autênticos que os … Quanto a mim, nunca me apoiaram, no entanto, eles me deixaram que me apoiasse. Eles só me acolhem bem quando faço o esforço de ir até eles, de outra forma, deixam-me cair …
Marguerite Duras: Mas concordas que há camadas irredutíveis?
JLG: Sim.
MD: Pensava que éramos da mesma opinião. Aquilo a que chamo o “espectador primeiro”, foi sobre isso que escrevi umas coisas esta manhã: o mais infantil, o mais insignificante no cinema, esse, permanece na sua zona, é autista, procura as violências da infância, o medo da infância, e nada podemos fazer para o demover. Portanto , parece-me que há alguma ingenuidade em acreditar que podemos escrever para muita gente. Às vezes acontece, pode acontecer, mas são acidentes do público.”
- Conversa datada de 1979 transcrita no livro “Diálogos: Marguerite Duras - Jean-Luc Godard” (tradução de António Gregório e Joana Jacinto, SR Teste Edições)
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