Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Stéphane Brizé: "vejo sempre a ficção como um documentário sobre os atores."

Hugo Gomes, 06.12.24

image_1398162_20240201_ob_bd5ff7_hors-saison-120x1

Stéphane Brizé faz uma pausa ao seu cinema social e a Vincent Lindon, dizem que foram os sinais do tempo, a pandemia e tudo isso acarretou que o fez virar para “Hors-Saison” (“A Vida Entre Nós”), filme atípico da sua filmografia, onde filma Guillaume Canet enquanto ator deprimido e resignado à sua estagnação, a reencontrar memórias de vidas passadas num retiro balnear. Alba Rohrwacher, a célebre atriz italiana, é essa "madalena de Proust"

Em conversa com o realizador, entendemos o quão de Brizé tem esta tragicomédia romântica, o tempo que passa, o tempo que marca e demarca, Alain Delon, Claude Lelouch e Östlund num caldeirão verborreico. Depois de Veneza, “Hors-Saison” integrou a Festa do Cinema Francês e marcou assento nas estreias em sala do nosso país. Fiquemos com um diálogo que tem tudo menos estar em “fora-de-época”.

Gostaria de perguntar sobre a génese deste projeto, mas também sobre como foi, após concluir a chamada “trilogia do trabalho”, aventurar-se por este novo universo? Como se sentiu ao dar esse passo?

Muita coisa! [risos] Depois de concluir o que acabou por se tornar numa trilogia — que, curiosamente, não começou com essa intenção —, a minha primeira ideia era fazer um novo filme social. Desta vez, seria situado numa grande empresa, com uma protagonista feminina e um tom diferente. Sentia essa vontade de continuar a explorar os mecanismos de subjugação: como é que se transforma um indivíduo? Como é que se força alguém a fazer algo que vai contra o seu próprio modo de ver o mundo? Tinha muitos elementos em mente para desenvolver.

Mas, quando expliquei essa ideia ao produtor com quem tinha trabalhado nos filmes anteriores, ele disse-me: “Não quero mais trabalhar contigo. Acabou.” E, de um dia para o outro, fiquei sem produtor. Foi um golpe duro. Decidi continuar sozinho, avançar com o projeto, mas percebi que não estava a reinventar nada. Estava apenas a repetir o que já tinha feito nos filmes anteriores.

Foi então que parei. Havia um peso emocional muito grande: a separação com o produtor, questões pessoais difíceis de gerir e, claro, a pandemia de COVID. Naquele período, a morte era uma presença constante no nosso quotidiano, uma sombra inevitável. Contávamos mortos nos jornais todos os dias. Creio que isso trouxe à superfície questões muito essenciais, quase arcaicas. O lado político, que sempre me interessou, parecia diluir-se, cedendo espaço a algo mais existencial.

Durante o COVID, todos passámos por um processo muito existencial, e “Hors-saison” nasceu disso. Foi o resultado de uma necessidade de contemplação, de olhar para a minha própria vida e experiência. Só depois de terminar esse filme é que consegui retomar o guião político e encontrar o caminho certo para ele. Mas precisava, naquele momento, de parar e de criar algo diferente, mais íntimo e reflexivo.

Mas, voltando à questão, porque falou-me desta ideia das crises existenciais, mas gostaria de perguntar-lhe sobre a escolha de um ator como protagonista. O porquê dela para representar uma crise de existencial social num filme que evoca o COVID? 

Compreendo perfeitamente o que perguntas, e foi algo em que reparei, embora não tenha sido exatamente ao ver o filme, mas sim no set, enquanto estávamos a filmar nas ruas vazias. Como a história de “Hors-saison” se desenrola numa cidade balnear fora de época, houve um momento em que, ao olhar para aqueles planos, aquelas ruas desertas fizeram-me lembrar as ruas de Paris durante o período do COVID.

Acho que isso não é um acaso. Pode ter sido algo totalmente inconsciente, mas não deixa de estar ligado a essa memória coletiva que agora carregamos. Talvez seja mesmo isso: as ruas vazias adquiriram uma nova camada de significado, remetem-nos para essa sensação partilhada, essa outra história que se infiltrou no nosso imaginário coletivo.

GDVLDHO3EFEIXOUVMQ7FLIEM7E.jpg

Da esquerda para a direita: a co-argumentista Marie Drucker, o ator Guillaume Canet, o realizador Stéphane Brizé e a atriz Alba Rohrwacher, no Festival de Veneza na apresentação de "Hors-Saison" (2023).

Sobre esse imaginário coletivo do COVID no filme, sublinho a sequência sobre o jazz como música de fundo, no qual o Cannet refere as suas batidas como provocadoras de ansiedade. E como bem encaramos, a ansiedade é quase uma cicatriz do pós-pandemia.

Não tenho muita imaginação, confesso. O que tenho, sim, é um bom sentido de observação, e é a partir daí que tento transmitir aquilo que vejo. O jazz, por exemplo, é algo profundamente pessoal [risos].

E o jazz... tem tantas vertentes. Algumas, claro, gosto e acho aceitáveis, mas há algo curioso neste universo: parece que é um daqueles territórios de que ninguém pode falar mal. Existe quase uma pressão implícita, uma obrigação de se gostar, talvez para parecer mais inteligente ou sofisticado. No entanto, tenho de admitir que não me enquadro totalmente nisso. Ainda assim, há coisas no jazz que me atingem de forma muito direta. É como se me estivessem a espetar uma agulha ali... [risos].

[risos] Muito bem, voltemos então à questão do casting? Da personagem-actor, como também do ator?

Para mim, a ficção é sempre uma espécie de documentário sobre os atores. Nos filmes que faço, a ideia de personagem surge no momento da escrita e é algo que os espectadores inevitavelmente reconhecem. Mas, quando trabalho diretamente com um ator, não vejo uma personagem à minha frente; vejo uma pessoa real. O que realmente me interessa é capturar a sua humanidade, aquilo que o define, para depois, disso, emergir a personagem como uma consequência natural. Preciso de encontrar algo essencial e autêntico no ator, algo que não seja fabricado, e que estabeleça essa ligação entre ele, a atriz ou ator, e o que quero expressar através da personagem.

No caso do Guillaume, o que me atraiu foi algo que percebi nele: por trás da sua postura confiante, descontraída e até engraçada, havia uma grande angústia e, sobretudo, uma tristeza profunda. Foi essa tristeza que filmei. No entanto, o Guillaume tem uma grande capacidade de autodepreciação e um sentido de humor apurado, o que fez com que a sua tristeza não pesasse 100 toneladas, mas ainda assim presente e filmável.

Tenho uma pergunta pertinente, mas antes disso, queria continuar a falar sobre os atores. Passo agora para a Alba Rohrwacher. Portanto, uma atriz italiana para uma produção francesa.

Primeiro, porque, bom, ela fala francês. [risos] Mas essa escolha não foi algo que partiu de mim desde o início; foi, na verdade, uma sugestão da diretora de elenco. Como já expliquei antes, há sempre algo do real que é essencial para mim, mesmo num filme de ficção. Por exemplo, ao escolher Guillaume Canet, um ator conhecido que interpreta um ator famoso, era inevitável surgir a questão: quem coloco ao lado dele para dar vida a uma personagem desconhecida?

Na minha visão, não fazia sentido, escolher uma atriz francesa conhecida, porque isso poderia quebrar a coerência da história. Mas claro, a minha lógica francesa só funciona até ao momento em que o filme chega a Itália, e lá a Alba Rohrwacher é mais famosa que o Guillaume Canet! [risos] Foi curioso perceber, quando estivemos em Veneza, que essa troca de dinâmicas funcionava perfeitamente.

A escolha da Alba também veio da necessidade de alguém que pudesse interpretar um papel muito difícil: uma personagem forte, mas que trilha um percurso de resignação. E quem poderia carregar esse arco sem perder força? Precisava de uma grande atriz, e Alba é exatamente isso. Além disso, em França, ela não é muito conhecida, o que ajudava a manter a lógica da personagem.

No início, fizemos testes com outras atrizes, mas quando a Alba surgiu como sugestão, tornou-se evidente. O sotaque dela em francês também trouxe um toque poético, algo que remete à ideia de ser de fora, de outro lugar, o que adicionava camadas à personagem. E há, claro, aquele mistério que só os grandes atores e atrizes conseguem trazer — fazem existir o que o guião não escreve, mas que está lá, latente. Alba é exatamente assim: alguém que torna o invisível visível, que revela algo que transcende o texto. E essa é, talvez, a maior força dela

O seu rosto transmite tudo isso! 

alba.jpg

Gostaria de colocar-lhe a tal pergunta pertinente: É a seguinte — este filme, em certos momentos, poderá lembrar a muitos o “Triangle of Sadness”, mas prefiro evocar outro trabalho de Ruben Östlund, “The Square”. Nesse filme, há uma performance marcante de um homem-gorila, uma sequência angustiante e até agressiva, que explora a violência e a nossa animalesca natureza ‘adormecida’. Em “Hors-Saison”, a performance dos dois homens-pássaros parece apresentar uma contraposição clara: algo mais leve, mais distante da ferocidade do artista-símio. Nesse sentido, gostaria de saber: vê essa escolha como uma provocação ou até mesmo como uma resposta direta ao filme de Östlund?

Eu não sou um provocador! 

Digo antes, a provocação que é responder à agressividade e transgressão do homem-gorila com a harmonia dos homens-pássaros.

Não houve uma referência consciente ao homem-gorila, mas havia uma intenção muito clara: provocar uma emoção pura. Enquanto a performance do homem-gorila em "The Square" desperta uma reação violenta e imediata, no meu caso, quis criar um clima que transformasse todos os olhares — tanto dos personagens como do espectador — num olhar infantil, desarmado e genuíno. Se existe um ponto de ligação entre as duas cenas, ele está na busca por algo integralmente orgânico e emocional. Não é sobre ser inteligente; é sobre sentir e trazer à tona o sorriso mais puro e espontâneo, quase como o de uma criança.

Enquanto escrevia o filme, ouvi um relato na rádio sobre este grupo artístico. Imediatamente pensei: "Isto tem tudo a ver com o filme." Contactei-os e sugeri uma colaboração, que aceitaram. Depois de assistir a uma das suas apresentações, vi não só o sorriso no rosto das pessoas, mas também no meu próprio, e foi aí que percebi que esta cena tinha que acontecer durante o casamento.

Filmámo-la com cinco câmaras, precisamente para capturar toda a espontaneidade e os risos genuínos numa única tomada. Nenhum dos presentes na sala sabia exatamente o que ia acontecer, nem mesmo o Guillaume e a Alba. Coloquei as pessoas estrategicamente na sala e preparei os performers, mas mantive o elemento surpresa. Disse aos atores principais apenas que era fundamental partilharem aquele momento de comunhão e alegria com os outros. E foi assim que conseguimos criar uma cena desarmante, carregada de poesia, humor e emoção verdadeira.

Alguns críticos e jornalistas comparam facilmente o seu “Hors-saison” a filmes como “Lost in Translation” ou “Broken Flowers”, e a sua resposta é com Claude Lelouch. Acho curioso porque ultimamente tem encontrado vários cineastas a mencionar Lelouch como referência, um homem visto como criador de melodrama francês, algo que foi considerado pejorativo durante algum tempo, mas que hoje muitos tem o declarado a saudade desse melodrama clássico no panorama francês, esse dito melodrama lelouchiano.

Essas comparações com “Broken Fever” e outros, deve-se muito à sensação que o meu filme transmite... O que certamente o que os une é que as personagens passam por momentos em que estão completamente perdidos. Acho isso fascinante de encenar: uma personagem que está perdida, mas sem cair no risco de aborrecer o espectador. Esse é sempre o grande desafio, o objetivo.

Sobre Claude Lelouch, tenho de admitir que tenho uma enorme admiração por ele. Curiosamente, ele chegou até a ser produtor de um dos meus filmes, por isso conheço o trabalho dele de perto. O que me fascina no Lelouch é como ele criou um gesto cinematográfico muito próprio. Quando nos encontramos pela primeira vez, percebi algo interessante: havia técnicas que já usava sem saber que ele também as fazia.

Por exemplo, dentro de um texto bastante estruturado, existe sempre a ideia de criar dispositivos no set que trazem algum grau de desequilíbrio para os atores. Não para os deixar desconfortáveis, longe disso, mas para criar um ambiente onde a escuta entre eles atinge o máximo potencial. Esse desequilíbrio torna tudo mais vivo, mais orgânico.

0ETaP2U4acWAAoGYiN6Lor.webp

Possivelmente, esta menção a Claude Lelouch deve-se porque um dos últimos filmes da sua autoria tem pontos de contacto com esta sua obra. São filmes de reencontro.

Qual filme?

A terceira parte da trilogia “Un homme et une femme” (1966), com o Jean-Louis Trintignant e com a Anouk Aimée … 

Deve ser o Les plus belles années d'une vie?

Exatamente, vi esse filme em Cannes.

O último foi apresentado em Veneza este ano [“Finalement”], com um prémio especial para ele. Também o vi em Cannes, ele convidou-me para essa exibição.

Portanto deves-te lembrar, quando no final, todo o cinema cantou... Foi incrível. Estava ele, o Jean-Louis Trintignant, a Anouk Aimée, na famosa linha do “Un homme et une femme”. E eu estava mesmo na fila da frente, a poucos metros. Fiquei tão emocionado com o filme, tão tocado. Foi incrível, porque o primeiro filme já é algo lendário na História do Cinema.

Disse-lhe como imaginava... Disse-lhe: “Claude, imagino como deve ter sido o teu entusiasmo enquanto montavas este filme.” Porque era possível trazer de volta o primeiro filme, com eles naquela cena em que fazem amor no Hotel Normandy. Eles são maravilhosos, belíssimos, belíssimos. É incrível o vínculo entre os dois filmes.

Talvez seja sobre o “tempo que passa” que referes como ligação desse filme com o meu? Só que nesse filme, fala-se do Claude. Vemos os personagens velhos, depois vemos-os novamente jovens, e, de repente, há ali 50, 60 anos de diferença, ou algo assim, e num determinado momento da montagem, sentimos intensamente o tempo que passou.

E o “Hors-Saison”, fala disso: o que fazemos com as nossas vidas, o que fazemos com o tempo. Fala mesmo sobre isso.

Quer no seu filme, quer na do Lelouch, o romance é entendido como uma espécie de veículo para regressar a um tempo que não tem regresso. São filmes sobre a ilusão encantatória do passado. 

Sim, concordo plenamente consigo. Este filme fala exatamente sobre isso. Há algo muito forte nele porque todos os espectadores se lembram do primeiro filme, lembram-se do início da história. No último filme, o Jean-Louis Trintignant não se lembra. A personagem principal não se lembra de algo que eu me lembro. Isso é muito poderoso. É uma ideia incrível. Às vezes, perguntamo-nos: “Será que ele se lembra? Não sabemos. Será verdade? Ou não será?”

Compreendo perfeitamente a sua questão, e é a primeira vez que alguém observa isso, por isso deixa-me contar-te uma história.

Sim, claro …

Na primeira versão do guião de “Hors-saison” tinha uma personagem para o Alain Delon. Eu o queria no meu filme, seria um dos hóspedes do hotel.

O Guillaume, a personagem, está tão em baixo... Ele vê o Alain Delon ao longe, no restaurante. O Alain Delon está ali. Ele tem dinheiro, é um grande hotel, é plausível. Guillaume liga à mulher, e ela diz-lhe: “Ouve, durante toda a tua vida disseste que, se um dia encontrasses o Alain Delon, lhe dirias: ‘Sou um grande fã, és muito importante para mim.’ Estão no mesmo hotel. Vai e diz-lhe que ele é importante para ti.” Mas o Guillaume, nessa tristeza, responde: “É o Alain Delon. O que é que ele se vai importar comigo? Faz o que quiseres.

Então, o que acontece? Mais tarde, noutra cena, noutro lugar, o Alain Delon está no mesmo espaço. E sabemos, naquele momento, que o Guillaume gostaria de se aproximar dele, mas não tem coragem. E não vai. No guião, estava escrito que, depois disso, ele estaria no quarto, a ver o “Plein Soleil" de René Clément.

Porquê “Plein Soleil”? Porque é exatamente o que está a dizer sobre o Claude Lelouch, queria ter a imagem do Alain Delon de antigamente logo após a imagem do Alain Delon na sua atualidade, porque o meu filme fala do tempo, do tempo que passa. Na história, era por isso que, quase no final do filme, o Guillaume estava sentado à mesa e víamos um homem a chegar – o Alain Delon – e ele dizia: “Não quero incomodá-lo, só quero dizer que sou um grande fã. Sabe, aproveite a estadia. Tenho de ir.

IMG_8471.jpeg

Alain Delon em "Plein Soleil" (René Clement, 1960)

Contactei a filha do Alain Delon, escrevi uma carta de amor para ele. Ela disse-me: “O meu pai está tão cansado, já não quer fazer estas coisas.” Mas ele recebeu a minha carta. Não sei se leu, mas recebeu. E era exatamente sobre o que estávamos a falar: sobre a vida.

Foi uma experiência, um experimento cinematográfico. Tal como em “Une Vie(2016), uma das principais experiências de montagem que já fiz para falar sobre o tempo. Em zero segundos, no não-tempo, ela é jovem, depois velha, depois jovem outra vez. E, de repente, estamos a falar do tempo, num único momento de montagem.

Voltará ao filme social que mencionou no início da conversa?

Sim, o guião está praticamente pronto, e aliás, enquanto trabalhava em “Hors-saison”, a outra metade do meu cérebro pensava nesse filme. [risos] Posso dizer que não encontrei toque no momento certo, mas atualmente o vejo como uma examinação sobre os aspectos grotescos do liberalismo. Será de um filme performaticamente cínico. 

Ou seja, é uma resposta aos novos tempos. Tempos, esses, em que a política adquiriu uma certa espectacularidade circense.

Sim, vou voltar a Ruben Östlund para fechar o círculo. O que acontece é que, quando escrevi “La Loi du marché” (2015), “En Guerre” (2018) e “Un autre monde” (2021), fiz esses filmes a partir de dezenas de testemunhos. Fui ao encontro das pessoas, escutei-as, e elas contaram-me as suas vidas. Depois, tentei transpor essas vidas para o filme.

No entanto, em cada um desses filmes, fui obrigado a colocar a ficção abaixo do real. Porquê? Porque, de outra forma, os meus filmes realistas pareceriam falsos. O real é tão mais indecente, violento e cínico do que aquilo que conseguimos imaginar que, para não perder essa autenticidade, tive de subordinar a ficção à verdade.

Há anos que me pergunto: como se pode representar o real de forma precisa numa obra de ficção? E acho que é necessário deslocar-se um pouco em direção à farsa. É isso que Ruben Östlund faz. É um caminho para representar a indecência a que chegámos hoje — a indecência do cinismo e do grotesco do capitalismo. Por isso, o meu "cursor" também se desloca nessa direção.

Um Sonho de uma Noite de Verão Violento

Hugo Gomes, 26.11.23

estateviolenta.png

Em paredes adornadas sob o signo futurista de Carlos Carrà, o apropriado "Temptation" a ecoar no gira-discos daquela mansão que exala fascismo em todos os seus poros, o albergue de um grupo de jovens (mais uma infiltrada), infiltrados em tal ambiente na escapatória do negrume dos seus respectivos dias. Nada importa, sem ser o calor daquela noite de Verão; a Guerra parece algo distante, impalpável, inoportuno, e a política, essa, mera desnecessidade, ali, sem lugar naquela mansão - o "clube de poetas vivos", um esconderijo para as suas romanceadas ilusões.

Entretanto, falávamos de uma infiltrada, é verdade, alguém cuja juventude alça vôo como pássaro em fuga, uma viúva de um tenente da marinha, Roberta (Eleonora Rossi Drago), na casa dos 30, desconfortável na sua busca pelos "verdes anos" manifestados por aqueles jovens movidos pelo álcool e "beijos roubados", todos eles na casa dos 20 ou abaixo para contrastar. No grupo jovial, existe também quem anseia evadir a sua própria "imaturidade", Carlo (Jean-Louis Trintignant), filho de um líder do regime fascista daquela Itália estival de '43, que não é nada mais, nada menos, como proprietário daquele imóvel agora servido de silencioso festival.

Carlo ronda Roberta no aguardo de uma resposta, uma confirmação quanto aos sentimentos entre eles germinados. Horas antes estavam na bancada de um circo, um espetáculo ali decorrida entre palhaços e trapezistas que nada de jus fez ao duelo de olhares que acontecia ali entre os dois “jovens desencontrados”, um confronto, uma negação que contaria com o seu clímax tempo depois, naquela residência e ao som daquele soneto melodicamente encoraja à tentação. Contam-se gestos, passos calculados, olhares, cadências, até as sombras "conspiram" num demente jogo, etapa a etapa (economia da consequência, nada é desperdiçado) até por fim, como tomos de ar fresco no jardim propriamente dito, os silêncios triunfam num esperado beijo. Consolidou-se então o romance de Verão, naquele Verão que não era um qualquer, como havia datado, 1943 para sermos exatos, em plena Segunda Guerra numa Itália governada a mão de ferro por Mussolini (por pouco tempo), e é nessa precisa estação que as tropas aliadas invadiram o território. Pormenores, dirão alguns, que funcionam como cenário desta história que se assumiria como mais uma.

tumblr_6e2aa7848044f8402088fbfeab7c1deb_e8b09f83_5

Mas a Guerra possui um papel de ruptura aqui, uma adversidade ou antes um chamamento, cujos gritos encaminham-nos para um caminho de ferro bombardeado por aviões “aliados” (as aspas denotam a indiferença do termo aliança; as bombas não têm partido e os ataques não têm conduta), o terror dos céus pairando sobre eles, determinados a agendar sua fuga, o devaneio dos românticos. Nesse momento, o romance já não importa num mundo em conflito, e o corpo da criança assassinada, sem rosto e sem nome por sorte, poupado dos pés dos nossos protagonistas, conscientiza essa epifania mortal. Carlo (Trintignant, o jovem trágico em verões alheios), que até então gabava-se de desertar do “apelo nacional”, do exército, à Guerra, esse fantasma-encostado, é agora determinado a servir, sem obrigações, sem incentivos, sem ser em rebelião ao cenário que depara. O comboio que separa os amantes, cliché emoldurado do melodrama enquanto género, serve aqui como faca de dois gumes, perpetuar o trágico da ruptura amorosa e sublinhar o sacrifício individualista do nosso "bon vivant" ao serviço de um Bem maior.

É uma propaganda moral com atraso, visto que o filme data de 1959, com a Segunda Guerra no seu fim, mas não o fascismo, até aos nossos dias, como ervas daninhas que se revelam após um prolongado Inverno. "Estate Violenta", segunda longa-metragem de Valerio Zurlini, o romance de verão contra todos os romances de verão, do fascismo à liberdade e da liberdade ao fascismo, a imaturidade em busca de maturidade de Carlo com a maturidade em busca da imaturidade de Roberta, a sua representação e o seu oposto, que ao contrário do que o título incentiva não nos valida com violência. Saudades de filmes assim.

Estate-violenta-thumb.png

É o fim da viagem, Sr. Trintignant

Hugo Gomes, 17.06.22

5725962.jpg

Les plus belles années d'une vieThe Best Years of a Life (Claude Lelouch, 2019)

5755602-r_1280_720-f_jpg-q_x-xxyxx.jpg

Les plus belles années d'une vieThe Best Years of a Life (Claude Lelouch, 2019)

De “Il Sorpasso” a “Amour” é visível um percurso com vista direta para a Morte. Jean-Louis Trintignant o atravessou de vento em proa, falseando o seu destino ou operando como carrasco enviado pelo mesmo. Será que o anjo da Morte em “Amour” é aquele pombo invasor no set, em que o ator persegue calmamente, calculando com astúcia a emboscada? Tal não interessa por momentos, o dia é de tristeza, mas igualmente previsto, Trintignant em jeito conformista testemunhava a decadência com silêncio, a sua hora não tardaria a chegar.

Porém, seja Haneke, Risi, Bertolucci, Corbucci, Costa-Gavras, Kieslowski ou Truffaut, após a notícia da sua despedida a minha mente “voou” para Cannes de 2019, naquela exibição especial de “Les plus belles années d'une vie” de Claude Lelouch. Um filme que ninguém deseja falar, até porque Lelouch não entra nos livros canónicos ou simplesmente demasiado meloso para gostos mais requintados, mas é um olhar de um “velhote” sobre a velhice, e tratando-a como um digno fim às nossas vontades. Trintignant desempenhava um idoso, “aprisionado” na sua “casa de repouso”, que num reencontro com um antigo amor (uma gentil Anouk Aimée), a sua mente parte para intermináveis viagens, sempre com destino a uma nova oportunidade na sua frágil existência. É sim, uma obra desapegada de juventude mas que em si, requisita uma nova definição de jovialidade, uma segunda talvez, entendida como ressurreição. Contudo, nesse mesmo filme, um dos últimos da sua carreira, uma determinada sequência fala-nos ao coração. Monica Bellucci petrificada no tempo perante Trintignant, só os seus olhos se cedem ao sentimentalismo, um olhar carinhoso, sem condescendências, e simultaneamente reservando uma réstia de melancolia gerada no testemunho de um ente envelhecido, iludido quanto à sua permanência na vida. A sua personagem sabia, na perfeição, que por mais ultrapassagens que façamos, a Morte acabaria por nos apanhar.  

Jean-Louis Trintignant partiu hoje, a sua viagem (e que viagem!) chegou ao fim.

51399607958_2958594008_k.jpg

Il Grande Silenzio / The Great Silence (Sergio Corbucci, 1968)

Amor-Michael-Hanekes-Amour.jpg

Amour (Michael Haneke, 2012)

The-Conformist-Curtain.jpg

Il Conformista / The Conformist (Bernardo Bertolucci, 1970)

MV5BYmFlYmFhNTItNTZjMi00ZjU1LWI1NmEtODljMGQ1MmJlYz

Il Sorpasso (Dino Risi, 1962)

MV5BM2JiYzYwMTUtZWZjMS00N2VhLTk3YTMtOTUwZjA2YjE2MT

Trois Couleurs: Rouge / Three Colors: Red (Krzysztof Kieslowski, 1994)

O “amour” não é mais que uma mensagem do ceifeiro

Hugo Gomes, 11.03.20

283577-tt9075612.jpg

Fernando Pessoa escrevera certa vez que “todas as cartas de amor são ridículas“, pegando nessa deixa e contextualizá-la com a nossa atualidade, é bem verdade que “filmes sobre amor são ridículos“, porque temos uma inteira necessidade de citar ambiguidade em todas as matérias. E talvez seja a consciência de que não existe “felizes para sempre” ou até mesmo utopias, a fantasia de um romance como um puro atalho da felicidade concretizada é impensável no espectador contemporâneo.

Paixão, amor, ou qualquer quadrante da ala do coração, leva-nos à filosofia da projeção dos nossos desejos ou uma definição altruísta do mero cuidado, ou como a ciência anseia por explicar, uma simples reação química. Mas não falemos de disciplinas exatas, o cinema começou do real, ou diríamos mesmo da extração disso, para polvilhar-se na ficção, na narrativa, na estética, no possível e obviamente no impossível. O amor envolve-se como o segundo número da equação da experimentação que é o cinema, mas nada de novo, visto que esta veia romântica, ideia concebida por manifestações artísticas de séculos passados, já “tresanda” na tela desde os primeiros passos enquanto mais nova das artes.

Nessa ingenuidade, o de acreditar na pureza do romance, o veterano Claude Lelouch (cineasta francês que não acolhe a admiração devida) decide revisitar “velhos amigos”, devolver novas páginas ao platónico amor que criou em 1966 [“Un homme et une femme”] e que continuou passados 20 anos [“Un homme et une femme, 20 ans déjà”]. Aqui, em “Les plus belles années d'une vie” (“Os Melhores Anos da Nossa Vida”), as personagens de Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée reencontram-se após anos e anos de distância. A chama reacenderá, mas a realidade é mais forte que a fantasia de um amor concretizado e levado imaculadamente até à tumba. Aqui, Trintignant encontra-se preso ao seu corpo decadente e confinado ao pequeno “universo” limitado pelas paredes do centro de acolhimento que aqui operam como uma possível prisão. A única evasão deste anterior piloto indomável reside na sua imaginação, que parte como um escape com destino às suas gordas e intrusivas letras de “The End” como qualquer ficção acabada sem “pontas soltas”. Aí, são os devaneios oníricos colados às leis da física, mas culminados nos regulamentos da fantasia. A fuga é praticada, enfim, nunca devidamente deleitada.

D.W. Griffith dizia em tempos muitos remotos, frase que fora apropriada posteriormente por Jean-Luc Godard, que para fazer cinema bastava uma mulher e uma arma. Lelouch usa esse conceito minimalista e coloca-o em pratos limpos na pele do aventureiro Trintignant que sob o volante da sua viatura evoca as brisas de uma juventude em marcha (sim, “Il Sorpasso” de Dino Risi é incontornável).

Os Melhores Anos da Nossa Vida” é um filme recitado por um extrema ilusão de felicidade saltitante e crença inabalável pelas paixões derradeiras. É só “fachada”, quer dizer, “cantiga” para embalar antes que a morte chegue sorrateiramente à cabeceira da cama. Esta é uma obra sobre a velhice, está claro, sobre o fim e a sua iminente despedida. A do corpo energético e belo concebido no auge da juventude, a da ingenuidade com que se encara o amor de viver e sentir e por fim, a dos génios que prometeram mundos e fundos durante a sua existência. Monica Bellucci, que faz uma pequena e igualmente potente aparição, tem conhecimento desse mesmo adeus, chorando em certa medida por aqueles que, enganados, sucumbiram às maiores mentiras: a vida e consequentemente o amor enquanto cura da morte.

Um final feliz à Michael Haneke

Hugo Gomes, 12.07.17

happyend.png

“Happy End” (“Final Feliz”) será que vamos acreditar? Michael Haneke não é dotado de finais felizes, mas quem é que realmente quer saber disso? O “final” não funciona como um juízo, uma redenção, nem uma recompensa moral. Nem sequer existe tal coisa que é um “final feliz”. A morte encarrega-se disso, e o tempo é apenas o argumento para este persistir. Mas é no referido “final feliz” que a piada reside, de um humor negro e absolutamente mórbido.

Há que entender que Haneke é um manipulador, um dos maiores manipuladores do cinema, sem querer persistir que existe um tom traiçoeiro, um engano. Não, quem se sentirá provavelmente traído são as suas personagens, condenadas a respirar neste universo tão hanekiano. “Happy End” é talvez, antes de mais, um filme que consolida esse mesmo Universo, essa carreira de emoções fortes e incómodos constantes. Filmado em Calais, o filme assume-se como um conto de burguesia tão próxima da soap opera, mas até aqui somos enganados. As personagens que se concentram nas suas tramas são violentamente atiradas ao grande abismo, esse que as levará a uma “bolha”, a um isolamento, uma quarentena. A burguesia, assim descrevendo, as classes sociais que o cinema francês sempre adorou retratar, e as diferenças, veiculadas em flashes de quotidiano.

Sim, Michael Haneke levou “Happy End” para Calais, a cidade francesa mundialmente conhecida pelo problema dos fluxos migratórios. Todavia, não se trata de um filme de refugiados, quer dizer, não nesse ponto de vista. Os refugiados são outros, a família, que se refugia, cada um à sua maneira, nos seus mundos, nas tramas que tentam orquestrar com tamanha plenitude. Eles isolam-se, criam e mantêm um ecossistema de aparências, de sustentabilidade, mas novamente, são enganados. HanekeHaneke … o que andas realmente a fazer?

MV5BMjQ4NzQ1ODE4MV5BMl5BanBnXkFtZTgwMDc1ODMyNDM@._

Michael Haneke dirige Jean-Louis Trintignant e Fantine Harduin

Neste universo é claro, a prisão tecnológica que arranca de um jeito tão cúmplice, o uso das novas plataformas audiovisuais leva-nos à memória de “Cache”, e a imponentes testemunhas que nos tornamos guiam-nos diretamente para os pesadelos vividos de “Funny Games”. Sim, as redes sociais, a partilha online, os smartphones e todas as possibilidades que nos prendem num autêntico calabouço. Tornamo-nos psicopatas, as nossas personagens tornam-se psicopatas e o espectador também. Este último contido, impedido pela câmara de Haneke que silencia os diálogos à distância, coloca-nos a léguas da ação, imponentes, indefesos, tornamo-nos assim as personagens.

Meticulosamente, Haneke vai construindo o seu ambiente, uma atmosfera de iminente catástrofe. Sentimos isso, essa faca aguçada que nos ameaça. Somente ameaça. E é então que chegamos às festas; a primeira ao som de um angelical violino e um discurso de boas-vindas pela nossa Isabelle Huppert; somos convidados a um cruzar de olhares, a um clima de suspeita, ao nascer de um “monstro”, a relações proibidas secretamente vividas no ar, às conversas soltas que nos confundem mais e mais. Saímos a meio, e partimos para outro festejo. O caos já é elevado, as consequências são fatais, fazemos corar as implantações de Luis Buñuel, os burgueses “estão em maus lençóis”.

Haneke fala de violência calmamente, mas de forma dolorosa. É como “Amour” (este filme bem poderia funcionar como uma sequela vistos os “easters eggs”), tecido frágil e de instintos imprevisíveis. Este é o filme que nos compreende e ao mesmo tempo nos interroga sobre a nossa natureza. A burguesia é uma piada, mas sem o seu final feliz.