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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Um Charles Bronson 'embriagado' em redbulls!

Hugo Gomes, 17.01.24

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Jason Statham está cada vez mais próximo do legado deixado, ainda por preencher na sua totalidade, por Charles Bronson (1921 - 2003), o de um justiceiro moralista e professoral, que não esconde os seus pragmáticos métodos de execução (possivelmente simplistas), dividindo ao soco e ao pontapé a violência enquanto castigo redentor. Se Bronson, nos anos 70 e 80, se tornou nessa figura de vinganças brejeiras e sem consequências para a sua existência (um bem maior para a sociedade), Statham, mesmo sendo mais atlético e físico (obviamente), expressa em trilhar caminho para ocupar esse lugar escasso de concorrentes, fazendo-o com mais precisão em projetos aparentemente fora dessa mímica, em vez de simplesmente repetir feitos anteriores (nunca devidamente replicados), como no duo “The Mechanic”, cuja comparação com o original de Michael Winner (fiel colaborador de Bronson) é bastante embaraçosa.

O britânico avista terra depois de ter trabalhado com o homem que praticamente o “descobriu” - Guy Ritchie - em “Wrath of Man” (2021), obra entregue às penitências de proporções bíblicas e estilos contidos em relação ao já satirizado toque ritchienescos que prenunciava uma mudança, ora mais madura e desafiadora, ao protagonista. Tal parece não ter se cumprido, sendo que o chamamento de Stallone num quarto (e não muito antecipado) “The Expendables” (2023) e um segundo round contra um tubarão pré-histórico ["The Meg 2"] o fez desviar o percurso. Porém, Statham aperta agora a mão a um David Ayer em desgraça e a um Kurt Wimmer cada vez mais invisível em “The Beekeeper”, uma coletânea imersa nos mais variados truques do cinema de ação hollywoodiano, desde alas secretas da CIA até ao ‘momentum’ “John Wick”. No entanto, é na representação deste Statham envelhecido, mas para lá das curvas, negando a sua possível decrepitude, que ele declara sem poesias algumas: "Roubar aos idosos é pior do que roubar crianças, porque as crianças têm pais e os idosos não têm ninguém que os defenda". Justiceiro de praça, com moralidades de história debitadas não muito distantes daquelas que Bronson, com o seu calibre máximo, diria de peito cheio em um dos seus “Death Wish”.

Uma simplicidade não apenas discursiva, mas também motivadora, numa fase em que desejamos desconstruir e humanizar, ou ceder à própria ambiguidade. O nosso "beekeeper", "apicultor" em bom português, desfaz os seus inimigos com os sete artifícios de matança, um dois mais dois, resultado fácil e sem dúvidas. O alvo da vingança demagoga de Statham também se estende a escadarias altas, não falamos de "ladrõezecos", serial killers ou gangues de qualquer género, não é a ralé ou o bicho-homem que abordamos, mas colarinhos brancos, altos comissários do pecado imperialista. Jeremy Irons, aqui interpretando um dos anti-herois acidentalmente envolvidos neste rasto de mortes súbitas, é confrontado com a pergunta: "O que prefere, dinheiro ou poder?". A hesitação da personagem de Irons face a esta questão revela a sua complexidade, ou a sua dissociação neste mundo neo-liberal anarcocapitalista. Não há dinheiro sem poder, nem poder sem dinheiro. Logo falamos.

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Com todo este discurso, parece que estamos a "vender" (palavra nefasta na crítica de cinema) um filme de Statham na quintessência da ação contemporânea. Nada disso, é direto e corriqueiro na sua execução, mesmo que assuma firmeza nas sequências de ação e algum gore lúdico. Daí surgirem as enésimas comparações com a saga “John Wick”, isso, e o anonimato do protagonista que se revela num complicado "bicho-papão" para qualquer Poder estabelecido. Essa rebeldia às estruturas político-sociais, iluminando a modernidade como a nova distopia científica, é marca do argumentista Kurt Wimmer, que, para quem esqueceu, aventurou-se em 2002 num cruzamento bastardo entre “Matrix” e Ray Bradbury - “Equilibrium” - um culto "patinho feio". Mas tal como Ayer, castigado por “Suicide Squad” (2016), Wimmer teve igualmente o seu acidente no caminho que o projetou para a liga B (“Ultraviolet”, 2006).

Voltando a “The Beekeeper”, mesmo com as piscadelas a eventuais franchisings, é um ensaio de porrada satisfatório. É um filme em estado de embriaguez, porque longe de nós encará-lo desmiolado, no entanto, sem consciência das suas ações.

Santo e Pecador

Hugo Gomes, 24.05.21

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Há muito que se tenta colar Jason Statham à memória de Charles Bronson, seja pelas reinvenções de velhos cultos do ator norte-americano (como “The Mechanic”, obra de 1972 que originou uma versão de tuta e meia em 2011) ou pela performance fragilizada no centro da ação, uma opção do britânico que, pouco a pouco, vem abandonando a onipresença frenética a que tem sido submetido em vários dos seus filmes.

Nesta visita ao velho amigo “bastardo”, com quem deu os primeiros passos no cinema há mais de 20 anos com “Lock, Stock and Two Smoking Barrels” (1998) e “Snatch – Porcos e Diamantes” (2000), o ator aproxima-se ainda mais da vingança de proporções bíblicas tão próxima de Bronson: “Wrath of Man” é esse ensaio de ação. E ainda que nada de frontalmente criativo pudesse nascer disto pois a história é “mais antiga do que o tempo”, nem por isso é obsoleta.

Além de Statham, com a sua rudeza familiarizada, a empenhar-se com o necessário rigor à sua personagem acinzentada (não precisamos de sentir empatia pela sua figura, mas pela sua causa), encontramos aqui um Guy Ritchie, “videoclippeiro” de base e propício ao subgénero que reúne comédia e violência num só “copo” conhecido por "gallows humours" britânico, que após anos e anos refém das produções "hollywoodescas" que o padronizaram e banalizaram a sua estética (“Sherlock Holmes”, “Rei Arthur: Legend of the Sword”, “Aladdin”), dedica-se aqui a um exibicionismo técnico e simultaneamente maduro e capaz.

Wrath of Man” tem tendência para ser demasiado embelezado e tático em comparação com o seu enredo, e sobretudo, a tentação obtusa de complicar o que não necessita ser complicado ("flashbacks" atrás de "flashbacks" em cima de uma narrativa com queda para "twists" atrás de "twists"). Mas fora essas essas intenções de exploração de filão, dedica-se de corpo e alma à sua "vendetta", zeloso quanto aos sentimentos de “justiça”. E perante essa ambição de tornar este ator “vulgar” numa hagiografia, Ritchie consegue, por momentos, atingir uma crença invulgar na sua personagem e no seu "pathos".

De certa forma, foram estas as pisadas de Charles Bronson durante o seu reinado cinematográfico, acreditar no seu próprio ativismo. Não só "de coração"... "fígado, pulmões, baço e coração"!

Wrath of Man: a vingança requer paciência ... e estimulo

Hugo Gomes, 14.05.21

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Jason Statham, action man como bem conhecemos revisita o velho “bastard” Guy Ritchie, supostamente amadurecido, resultando num típico filme de vingança de proporções desejosamente bíblicos. Estilizado e virtuoso tecnicamente, eis o conto de violência citadina, continuamente rude e másculo, que se disfarça de mero ensaio de ação para ambicionar os “céus”. Pena, que por dentro dessa sua modesta proposta exista uma intenção de confundir o espectador, e inconsequentemente, tornando-se quase condescendente para com este. Fora isso, é capaz de ser a melhor ‘coisa’ que Ritchie tocou em valentes anos.   

O filme "queer" do ano!

Hugo Gomes, 31.07.19

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Numa visão mais pessimista, podemos garantir que “Fast and Furious” é já uma saga longa de mais e precisa de um certo travão. Isso viu-se no cansaço (que, por sua vez, não se refletiu nas bilheteiras) do oitavo capítulo, novamente à volta da figura de Dominic Toretto (o papel que colocou Vin Diesel no estrelato da ação). Só que nesse episódio com Charlize Theron como a vilã de serviço, uma das suas outras novidades conquistou os fãs de imediato: a química explosiva entre Dwayne Johnson e Jason Statham. Ela revelava-se nos poucos momentos em que partilhavam o ecrã e os produtores perceberam logo o potencial e colocaram mãos à obra, expandindo assim o universo com um "spin-off" isento de Diesel e da "família" mais que vista e revista.

"Fast And Furious: Hobbs & Shaw” é esse filme, nascido do oportunismo. Mas curioso será dizer que, por detrás da sua esquemática intriga ou das bafientas sequências de ação (o desequilibrado ritmo ameaça-às constantemente), a proposta funciona sobre essas linhas-guias. Johnson de um lado, Statham do outro, como indicia a entrada dos créditos iniciais, um "split screen" que os coloca distantes e, ao mesmo tempo, próximos como as enésimas comédias românticas, onde personagens contrastadas são complementadas em nome do amor. A esta altura, o leitor quererá saber o porquê da referência "queer" do título numa produção direcionada a alfas, injetada de proteínas e testosteronas. Eis a resposta: em "Hobbs & Shaw” esconde-se um desejo contido que quase torna um embuste essa capa de heterossexualidade convicta e fantasiosa que nos querem vender. Não se trata apenas da química trazida por Dwayne Johnson e Jason Statham. Existe aqui uma intenção em transformar essa rivalidade e cumplicidade num romance não intencional.

Vejam-se os diálogos que Hobbs e Shaw trocam desalmadamente sob o gesto de ofensas e desdém: não serão eles mais do que um perfeito “flirt”? A sua agressividade contrai uma certa e cuidada invocação sexual, que por vezes parece terminar com um apaixonado beijo. Já vimos isso no cinema por muito menos. A juntar a estas suspeitas, existe todo um culto a um ecossistema de masculinidade e um homoerotismo em cada esquina. Há um sentimento de “não sair do armário” em todo este jogo de "bromance" enviesado no "buddy cop movie", um medo de se assumir e com isso deixar de oferecer ao espectador a ilusão de último reduto de um cinema puramente heterossexual.

Contudo, não é por estes caminhos que vamos condenar um filme. Mas é por estes mesmos trilhos que devemos quebrar o mito do “cinema para homens a sério” que uma certa cultura proclama ao tentar resistir a estes novos tempos de tolerância que se apoderam cada vez mais do nosso quotidiano. O que está em causa em "Hobbs & Shaw" é que, através dessa alusão dos conformes masculinos, nos seja entregue um produto regido por um prolongado "stand up comedy" entre dois homens de ação, esquecendo que um filme não se faz apenas de carismas e químicas. Obviamente, esquecendo as leis da física e da coerência, ficamos restringidos a um aspirante do cinema de Michael Bay. A surpresa é que, no final, o nome é outro: David Leitch, um dos mentores de “John Wick” e realizador de “Deadpool 2”, aqui sucumbindo ao anonimato. Ficou-se por Hollywood e pelos grandes orçamentos, vendendo a alma por um espectáculo de agenda.

Seja como for, "Fast And Furious: Hobbs e Shaw” é um cartucho gasto que, por sua vez, é preservado como um prémio de consolação. Além das inevitáveis promessas de sequela, é um perfeito exemplo de "silly season" para rentabilizar o que já não necessita ser rentabilizado.

"Baby Shark" ...

Hugo Gomes, 18.08.18

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Cada geração tem o “Jaws” que merece! Com isto, nem me atrevo a aproximar ambos os filmes, mas devo salientar que “The Meg” é o espelho da Hollywood de hoje, ou para ser mais preciso e furtivo, das audiências que povoam as salas existentes.

... para ser ainda mais preciso, é um filme idiota escrito por pessoas idiotas.

Hollywood para toda a velocidade para Bollywood

Hugo Gomes, 01.08.16

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Furious 7 (James Wan, 2015)

Era uma vez …

Estamos em 2015, depois de uma tresanda de anúncios e trailers dos próximos “filmes-fenómenos”, chega por fim o nosso filme. Para muitos dos que partilham a sala de cinema comigo, este é o mais esperado do ano, quiçá em anos. Sala bem composta onde o público marcava presença através de sussurros, conversas alheias, gargalhadas ocasionais e vozes que se confundiam com o ambiente em que se vivia, porém, o silêncio toma forma no preciso momento em que o nosso filme arranca.

Depois de um prelúdio onde nos é apresentado o “vilão de serviço”, Jason Statham ocupando o tempo do espectador com o seu monólogo protector, somos amparados com os créditos iniciais até estes desvanecerem na estrada com a passagem de um 1970 Plymouth Barracuda, dentro desse veículo duas das mais amadas personagens do nosso público dão entrada, “estão bem vivinhos da silva” pensam alguns. Michelle Rodriguez parece confusa nesta sequência “Come on Dom so where are you taking me?”, Vin Diesel no lugar do condutor responde com uma frase pseudo-profunda, uma filosofia de camionista que se enquadra como uma declaração de amor pela vida existente “They say the open road helps you think about where you’ve been where you're going”.

Bem, pela descrição já podem adivinhar qual é o filme em questão, no caso de não reconhecerem, eu passo então a explicar. Trata-se de “Furious 7”, que por cá sob o título de “Velocidade Furiosa 7”, o sétimo capítulo de um franchise que tem conquistado milhões e milhões de fãs. O vórtice desse sucesso é um cocktail de elementos que tanto agradam o grande público, “good-looking guys”, heróis maçudos e viris, mulheres esculturais com roupas reduzidas, sequências de acção que incluem perseguições automobilísticas e combates corpo-a-corpo, assim como uma ciência envolto de automóveis personificados e de topo de gama.

Sim, a fórmula é vencedora, os atores contribuem para isso, muitos deles cumprindo o check-in com somente as respectivas presenças e os realizadores, meros artesãos ao serviço de um grande estúdio, tentam a custo ter “mão” numa industrialização em série. Os objetivos estão definidos, “Furious 7” não é uma obra intimista, experimental, nem aspirando ser mais do que um “arrasa-quarteirões” (blockbuster), é em todo o caso, e não querendo reduzir o conceito de cinema em “castas”, um filme de povo, um entretenimento popular. Hollywood está mais que habituado em criar esse tipo de produções, “crowd pleaser" assim chamados, mas não é o único a fazê-lo.

Sendo óbvio que todas as produções locais e nacionais têm os seus sucessos de bilheteiras e as suas fórmulas triunfantes (relembramos que em Portugal “coisas” como “Crime do Padre Amaro” e “Pátio das Cantigas” detém o recorde de espectadores), apenas um mercado cinematográfico é capaz de rivalizar, e em certos casos superar, em número o comércio de Hollywood. Trata-se de Bollywood, cujo “B” não é silencioso, mas é referente a Bombaim (oficialmente Mumbai), a maior e mais importante cidade da Índia, a “terra dos sonhos” para grande parte da população indiana, onde todos os anos milhares de produções são lançadas tendo como grande objectivo atingir o público e "amealhar" os seus quinhões de rupias.

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Furious 7 (2015)

É um tipo de cinema hoje atribuído ao maneirismo, ao senso comum que lhe cataloga num profundo estereótipo, numa receita que parece hoje estar presente na moda até mesmo na nossa própria cultura: um rapaz, uma rapariga e uma árvore o qual serve de cenário para um evento de dança. Essa descrição tem sido mais que suficiente para que os amantes de cinema mais ocidental (e mesmo oriental) evitem o contacto para com esta indústria de sucesso, porém, ainda pouco explorada. Mas existe uma razão para esta invocação e ainda mais o paralelismo entre o último “Velocidade Furiosa” e as modernas produções bollywoodescas. Como diria Miguel Gomes na sua trilogia “Mil e uma Noites”, “ou existe paralelismo, ou é puramente abstracto". Mas o abstracto é algo dado a vertigens“. Para entendermos a relação entre estes dois pontos, devemos regressar aos primórdios do cinema, em alturas em que a Sétima Arte dava os seus primeiros passos e que a Índia desafiada por este novo “diamante bruto“, explora uma plataforma a fim de reivindicá-la como sua.

Ao contrário do que se possa julgar, a Índia foi um dos primeiros países a obter contacto com o engenho dos irmãos Lumière (em 1896). Tecnicamente, não era um país absoluto nessa altura, mas sim uma colónia inglesa, um facto que levou o subcontinente a produzir excertos fílmicos aos estilos dos primeiros ensaios da dupla criadora primeiro que muitos outros locais. O primeiro fragmento cinematográfico puramente indiano surgiu em 1899 com “The Wrestlers”, a filmagem de um combate de wrestling local. Todavia, só em 1913 chega a primeira longa-metragem, o início do Bollywood propriamente dito, com o mudo “Raja Harishchandra” (realizado por Dadasaheb Phalke), atualmente perdido.

Eram filmes populares que seguiam de acordo com o agrado do público, compondo dramas familiares vinculados por uma Índia tradicional e religiosa. Assim, as produções tornaram-se cada vez mais abundantes, até que em 1930 chegaram a ser filmados mais de 200 filmes por ano, mas existia uma ausência nestas populares histórias de grande ecrã, algo que evitava uma entrada na verídica alma desses seres bailantes – a voz. Em ’31, Bollywood aprende a cantar com Alam Ara (de Ardeshir Irani), a popularidade levou as autoridades a conterem as multidões em certas regiões e a partir daí seguiram ciclos que fermentavam ainda mais fama deste cinema, assim como a vanglória da exacta indústria.

Na década de 40, a tendência cinematográfica de Bombaim propaga-se para as regiões de Tamil, Telugu e Kannada, convertendo o cinema indiano numa arte polivalente, poliglota (detendo várias línguas e dialectos), assim como culturalmente diversificada (tendo em conta a cultura interior das suas respectivas religiões). Mesmo apresentado com histórias e intrigas popularmente identificáveis com a sua população, Bollywood teve que procurar influências para erguer-se de maneira pujante, e esses mesmos teores vieram de Hollywood, nomeadamente os seus musicais dos anos 20 e 30, das suas estrelas e claro do próprio modelo de star system. O cinema indiano replicou a sua Hollywood.

Contudo, a década 50 foi bem mais complicada e crucial para a Índia, mas os resultados foram satisfatórios. Com a luta pela independência, Bollywood revitalizou-se, ficou mais forte e firme no comércio local como global, a chamada Idade de Ouro desta indústria e nota-se que nesse momento Hollywood vai perdendo a sua pujança, o seu brilho e a sua credibilidade. É também neste período que entra em cena os autores; Adoor Gopalakrishnan, Ritwik Ghatak, Aravindan, Satyajit Ray, Shaji Karun, que contribuíram para a fama e de alguma “dignidade cinéfila” do cinema indiano no resto do Mundo. Duas décadas depois, à imagem do que sucedia nos EUA, Bollywood “contrata” os seus filmes violentos, predominando a temática dos gangsters e outros anti-heróis, como forma de desafiar e contornar a censura estabelecida na indústria desde os anos 30.

Os anos 90, os dramas familiares dominam as apostas cinematográficas na Índia, o estereótipo é formado: filmes longos, recheados de canções e dança sincronizada, enredos de heróis apaixonados por raparigas prometidas, vilões maniqueístas e a árvore como um tremendo símbolo de paz interior e da relação sempre acentuada entre Homem e Natureza. Bollywood praticava esta fórmula no limiar da exaustão, mas tirando os seus maneirismos reconhecíveis, não era de todo um cinema que diferenciasse daquelas cujas inspirações embebeu. Aliás, Bollywood era uma autêntica máquina produtiva de cópias exactas de Hollywood, de forma a não render ao mercado americano e tornar vivo o seu próprio cinema, uma possível essência revolucionária ainda resida da sua “prisão colonial“.

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Pather Panchali / Apu: Song of the Little Road (Satyajit Ray, 1955)

A “infiltração” indiana em terras do Tio Sam!

Porém, foi na passagem para o novo século que o cinema de Bollywood começou a “dar nas vistas” no Ocidente. As imigrações de vários artesãos de Bombaim para Hollywood contagiaram um mercado que parecia inabalável. A partir daí, foi uma ascensão. Na verdade, a própria internet teve também contributo na difusão de Bollywood no Mundo:

  • Em 2001, a Índia tem o seu candidato ao Óscar presente entre os nomeados para Melhor Filme Estrangeiro, “Lagaan” (de Ashutosh Gowariker), num ano em que a estatueta “caiu nas mãos” do destemido “No Man’s Land” (“Terra de Ninguém”, Danis Tanovic).
  • Baz Luhrmann dirige “Moulin Rouge!”, um dos últimos grandes êxitos musicais do cinema norte-americano, com claras influências a Bollywood. Basta verificar na forma como a música enquadra-se na ação e sob uma certa independência transpira para fora desta, recriando cenários oníricos invocados no intuito de acentuar as emoções das suas personagens. O caso mais “gritante” é a dança entre Nicole Kidman e Ewan McGregor num espaço rodeado de nébula e uma Paris de miniatura).
  • A visão reconhecivelmente “bollywoodiana” trazida pelo indiano Tarsem Singh, evidente na maioria das suas obras, de “Cell” (“Cela”, 2000) a “Mirror Mirror” (“Espelho Meu, Espelho Meu! Há Alguém Mais Gira do Que Eu?”, 2012). Visualmente enriquecidos, quer em termos cénicos, quer em termos de guarda-roupa.
  • As apropriações culturais no cinema de Hollywood visto em produções como o oscarizado “Slumdog Millionaire” (“Quem quer ser Bilionário?”, 2008), dirigido a meias por Danny Boyle e a “bollywoodesca” Loveleen Tandan. A “peregrinação” de Mira Nair para a “Meca do cinema“, a sua estadia gerou produtos como “Vanity Fair” (“A Feira das Vaidades”, 2004) e “The Namesake” (“O Bom Nome”, 2006).
  • A co-produção entre os EUA e Índia em “Marigold” (de Willard Carroll, 2007), uma homenagem ao cinema de Bollywood que fracassou dando origem a um “branqueamento” de uma Índia fabulista. "Marigold" também serviu de título para o êxito de John Madden em 2011 (“The Exotic Marigold Hotel”) e a sequela de 2015.
  • O crescente sucesso de produções de Bollywood no mercado norte-americano, chegando ao ponto de figurarem no Top 20 do box-office dos EUA.

 

Velocidade Furiosa: uma nova produção bollywoodiana?

Obviamente que todo este fenómeno de influências, alusiva ao eterno retorno de Nietzsche, é uma questão de globalização. Esses efeitos transmitem cada vez mais uma sensação de utopia quanto a referências e marcas culturais como também étnicas. Mas, voltando ao início da questão, os blockbusters norte-americanos que nos dias de hoje vendem milhões de bilhetes em todo o Mundo, muitos deles quebrando invejáveis recordes, falam gradualmente uma língua “bollywoodiana“. O mesmo deparamos com uma Bollywood a citar a veia do seu antípoda. A descoberta do CGI, por exemplo, motivou uma crescente afluência para produções mais arriscadas a nível de conteúdo.

“Velocidade Furiosa 7” não é mais que um arquétipo bollywoodesco construído para público ocidental, a esta altura o leitor deixa escapar um grito de espanto, decidindo recorrer à memória em busca de performances musicais e cantantes entre Vin Diesel e Dwayne “The Rock” Johnson. Pois, o paralelismo invocado não está no evidente, mas sim no seu subliminar íntimo.

A começar pelo mais vistoso, o filme de James Wan tem, sim, momentos de pura musicalidade, não na forma transcendente como os mais clássicos modelos de Bollywood, mas disfarçados na narrativa que intriga e que fielmente segue. Entre eles, a longa sequência de dança emanada em Dubai, pura passagem de folia, contágio sexual e eufórico, ou até a ilícita “race wars” que aparece no início. Nestas específicas cenas, o filme tende em sair da sua própria realidade e interagir com a sua veia video-musical, um pouco como Bollywood faz com as suas personagens que de um momento para outro se vêem envolvidos numa dança que afronta a narrativa linear o qual se “pendurava“.

Como já havia dito, o CGI e o abuso dos stunts são dois elementos constantemente similares com as duas indústrias. Enquanto rimos que nem perdidos da imaginação tresloucada dos profissionais indianos em recriar ação insurgente das regras da física, fiquemos energéticos em seguir sequências idênticas num “Furious 7", como se acreditássemos que os “carros pudessem voar“.

Mas os seus conflitos estão nas suas mensagens, a masculinidade que reina em ambos os lados, no caso do “Velocidade Furiosa” é evidente essa testosterona, o foco que o filme tende em dar a um homoerotismo constantemente desmentido e obviamente o “bromance” que se comporta como combustão para todo o enredo. Tirando o último ponto, o cinema bollywoodiano goza dessa “veneração” ao homem, principalmente ao herói, determinado, justo e aparentemente sem falhas de carácter. Ambos são resultados de um sexismo absorvido e vivido nas respectivas sociedades, relembro que nestes exemplos as personagens femininas são esboços vagos existentes a fim de cumprir as necessidades do messiânico herói (par amoroso, motivo de conflito, leitmotiv, demonstração de maniqueísmo).

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Bãhubali: The Beginning (S.S. Rajamouli, 2015)

O herói tende a ser um “outsider“, porém, revela-se num conservador moralista, no caso do “Velocidade Furiosa”. A personagem de Vin Diesel refere constantemente a criação de uma família, seguindo questões afetivas, ou as exibições de religiosidade, como se tal transmitisse os valores morais e éticos e a abundância do politicamente correto. Em Bollywood, face algumas exceções, é um cinema leve, censurado, cujo herói é o exemplo individual do bem, e tudo vindo dele é justamente o correto modelo a seguir. A religião, como havia referido, é tema recorrente e respeitado no cinema indiano.

Quanto à sexualidade, ambos são sugestivamente provocadores, mas não passam daí, em causa está a moralidade, o conservacionismo e como é óbvio, a censura causada pelos sistemas de avaliação. Os heróis são igualmente pólos atractivos para o sexo feminino, existe uma clara firmeza de que todas as mulheres do filme estão interessadas no protagonista. Contudo, esses mesmos seres heroicos são incuravelmente românticos.    

Por último, o nacionalismo, no caso da produção norte-americana, poderíamos apelidar de patriotismo, e eles não fazem questão de esconder tal teor nas suas obras. Nos filmes de Hollywood, nomeadamente este “Velocidade Furiosa”, todo o Mundo fala inglês, e o resto dele é inserido em estereótipos que automaticamente identificam a sua cultura ou país. Em Bollywood, existe uma sobrevalorização de tudo o que é indiano. Nestas produções, Britânicos e Paquistaneses são por norma “demónios” alicerçados à vilania.

 

Sob o signo da seleção natural!

They say the open road helps you think about where you’ve been where you're going”, a primeira frase de Vin Diesel no êxito de 2015 evidencia os caminhos que Hollywood segue actualmente, e sem querer focar no óbvio, as ideias começam sobretudo a faltar quanto mais a busca por novas linguagens cinematográficas e inovadores dispositivos narrativos. “Who cares“, a Hollywood moderna e recente é vista como um ponto de reciclagem, atenta a concepções e fórmulas que eventualmente surgem neste Mundo fora, Bollywood é só um molde de como é possível transformar algo, por vezes repugnado pelas audiências ocidentais, em “minas de ouro“.

Por outro lado, a popular indústria indiana cresceu à conta dessa “cruzada” pelas referências. Hoje encontra-se de olhos abertos para o seu redor, o mesmo que Hollywood. Pelos vistos os tempos das “ilhas cinéfilas” terminaram há muito.


Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.
Antoine Lavoisier