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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Ele só quer 'brincar'. Quem? O Paracosmo!

Hugo Gomes, 07.03.24

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Paracosmos! Palavra que nos chega embrulhada em estranheza, levando-nos a correr em direção aos dicionários após a sessão... Peço perdão quebra do mistério, mas trata-se da condição em que as crianças criam relações com a sua imaginação, vulgo "amigos imaginários". Portanto, paracosmo, no contexto do cinema de terror, é o diagnóstico precoce dado a qualquer “enfant” que entra em contacto com entidades paranormais, tinhosas ou tóxicas, muitas vezes negligenciadas pelos seus progenitores. "É apenas fruto da sua imaginação. Todos nós tivemos amigos imaginários. É perfeitamente normal", dirão uns aos outros com um sorriso condescendente enquanto observam os "pequeninos" a interagir com o invisível, mencionando a "moça do banheiro", ou o "amigo que morreu numa certa madrugada".

"Imaginary", esta nova produção da ordem de Jason Blum, hoje considerado uma espécie de Roger Corman, no qual o seu toque autoral parece transparecer até à cadeira de realização, muitas vezes ocupada por tecnicistas (como James Wan ou David Gordon Green), ou pela maioria de meros anónimos, como é o caso de Jeff Wadlow (realizador que tem no currículo um slasher genérico - "Cry_Wolf" - com Jon Bon Jovi como professor universitário), é uma narrativa recalcada desse mesmo mal, um trauma de uma criança que "conhece" um companheiro de brincadeiras de outras imaginações / dimensões. O resultado é o esperado, tal que não é preciso somar complexidades para prever aonde o recreio nos levará. Tudo é exposto em lugares-comuns, algorítmicos (como ‘agora’ estamos a designar frequentemente), que nos confrontam com o previsível, povoados por personagens da mesma matéria, papel reciclado e pouco cuidado. Ainda podemos argumentar que ao seu terceiro ato é exibido uma disposição estética por vezes agradável ao olhar (mas de imaginação igualmente tão devedora), com intensa aspiração a um cinema de género com alcance para maiores idades. Aliás, é o efeito "Gremlins", negro, infanto-juvenil, e por vezes delirante, só que a 'coisa' tem propensão a ser uma esquizofrenia de todo o tamanho, com ursos de peluche psicóticos, pesadelos à moda de Elm Street e uma inspiração assumida em "Poltergeist" de Tobe Hooper, hinos e canções que aqui ressoam como fragmentos desencantados.

Onde "Imaginary" triunfa, ainda que em pequenez, é na revelação da palavra "paracosmos", despertando-nos curiosidade e empurrando-nos de bruços para o dicionário mais próximo... ops, queria dizer, Wikipédias e plataformas virtuais. Pois é, velhos hábitos que demoram a morrer, assim como os clichés mal-emaranhados desta "imaginação limitada".

Exterminadora Implacável

Hugo Gomes, 17.01.23

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A título pessoal: Em teoria, “M3gan” é uma salada de frutas dos meus medos, a começar pela pedofobia (não assustem com a designação, trata-se apenas de fobia a bonecas), passando pelo complexo de “uncanny valley” (a repugna ao que aparenta ser humano mas que não o é) e terminando na desconfiança tecnológica (principalmente no conceito ainda prototípica do A.I [inteligência artificial]). Ou seja, temos “caldo entornado” para uma experiência de fazer eriçar a pilosidade dos braços.

A título formal: Trata-se de uma histórias de “bonecas de última gama”, cada vez mais realistas e alicerçadas ao que indica ser inteligência por por conta própria (há indícios de consciência dickiana, principalmente quando a sintética antagonista esmiúça sobre a Morte), que se resume à homónima criação. Um experimento, e por sua vez, apropriado por uma grande corporação para o viabilizar como o “next big thing” do mercado - ou “a maior invenção do Homem desde o automóvel”, tal e qual é citado a meio da sua narrativa. Obviamente, que tudo é receita para uma pequena catástrofe.  

M3gan”, apesar das suas hipóteses de terror moderno e consciente, verga-se pela tradição de muito do que é hoje produzido no género em terras yankees, o conceito acima da prática. Esta nova prole de Jason Blum [produtor que assume autoralmente os seus “rebentos”], “bombeado” por um guião assinado por James Wan (não esquecer a direção de Gerard Johnstone, de “Housebound”) - uma versão “Child’s Play” [mais como extensão do remake de 2019 do que o original fomentador da duradoura saga] para novas gerações - apresenta-se como um recital de apontamentos e reaproveitamentos de medos comuns. 

Digamos que dentro desse esquema de produto pré-fabricado, o filme espelha uma ideia há muito cobiçada por Hollywood, envergando e sumarizando os conceitos robóticos incentivados por Phillip K. Dick e toda a nossa relação com “vida artificial”, só que nesta variação, mesmo sendo narrativamente previsível até à medula, a idealização nunca trespassa o papel, preferindo-se mapear do que aprofundar as suas devidas preocupações teóricas e com isso falsear em momentos puramente “camp” ou de júbilo de cariz macabro.

A Blumhouse em parceria com o Atomic Monster [equação vencedora Blum + Wan] poderão ter encontrado a sua “galinha dos ovos de ouro” no que refere a matéria de franchises, até porque a “criatura” frankensteiniana obsessiva (um sinistro "avatar" de Amie Donald) preserva características frutíferas aos mais diferentes ícones do slasher (nomeadamente ao Chucky de Child’s Play, de Don Mancini [pelo menos fica tudo em “família”]), entre as quais a força de centralizar a trama ao redor da sua figura (enquanto que as personagens humanas são tudo menos interessantes e empáticas). 

Um modelo formalizado que garante sucesso com poucos milhões investidos. Low cost ou não, a verdade é que “M3gan” funciona graças à sua modéstia e de ocasional foco às questões fora da sua natureza. Por outras palavras, poderia ser mais cerebral e complexo, mas ficamos com o protótipo oleado.  

A título pessoal: Poderia ser a autêntica materialização dos meus pesadelo ... Poderia, se não fosse a sua leveza e seu jeito “brincalhão” como manda a indústria do qual está inserida. Talvez numa próxima!

Os Melhores Filmes de 2020, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 31.12.20

Nem sequer vou debruçar sobre o ano 2020 (essa data em que cada um de nós possui uma história particular para contar, possivelmente com desilusões e adversidades no meio) mas, como chegou aquela altura que se torna quase imperativo nomear 10 filmes (com estreia comercial no nosso pais) para os já habituais pódios, eis que, por fim, meto as mãos à obra. E mesmo sob adiamentos, cancelamentos, migrações para streamings, eis um cinema ainda rico de emoções, temáticas e estilos que, por momentos, fizeram-nos esquecer os 'coronavírus' e o mundo de avesso. Aqui, neste leque, o conflito israelita-palestino contínua presente, o Brasil demonstra a sua resistência e urgência, as mulheres tornam-se protagonistas das mais ricas narrativas do ano e a Reboleira é palco de uma das maiores evasões do cinema português. Eis que segue os meus 10 filmes de 2020:

 

#10) The Invisible Man

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“Se haverá sequela, universo partilhado ou "spin-offs" de qualquer natureza ainda é cedo para prever, mas, por enquanto, Leigh Whannell conseguiu um filme que vive por si só e, ao contrário do seu “monstro”, não tenciona mesmo passar despercebido. E com isso temos aqui uma entusiasta surpresa do cinema de género entregue por um grande estúdio de Hollywood.” Ler aqui

 

#09) There is No Evil

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Tido como um dos ditos realizadores iranianos “proibidos”, Mohammad Rasoulof comprometeu a sua carreia a denunciar, o que o levou (e leva) a inúmeras sentenças e consequências em território nacional. Com There is No Evil, vencedor do Urso de Ouro no último Festival de Berlim, prova, além da sua habilidade de “whitlesblower”, uma capacidade narrativa e de extrema sensibilidade (sem maniqueísmos propagandistas). Através do tema da pena de morte, ainda em uso no Irão, Rasoulof expõe quatro histórias sobre contactos diretos e indiretos para com essa questão político-social. Um relato que vai desde as vítimas até carrascos, decisões a dilemas, paz e tormento, passando por um primeiro ato de pulsações arendteanas [“A Banalidade do Mal”] até a um montanhoso e intacto limbo para acarretar culpas e humanismos. Sim, é um filme de tema a demonstrar que é mais do que somente o seu mesmo, é Cinema com causas e efeitos.  

 

#08) Les Miserábles

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“Mais do que tudo, o realizador Ladj Ly prova o seu conhecimento, a sua vivência e a sua humanidade. A sua sede por um cinema de sangue na guelra, imparcial e, ao mesmo tempo, que denuncia sem ser ideologicamente agressivo ou ter alicerces nas tendências do "cinema verité" [cinema-verdade].” Ler aqui

 

#07) Corpus Christi

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““Corpus Christi” revela-se encantado com esses métodos de redenção, na farsa que impõe e prolonga, com frieza técnica e o desempenho visceral do seu protagonista, Bartosz Bielenia, o qual, como Cristo, “abraça” o seu estatuto de mártir em cada missa. Com um olhar atento à imagem do seu Salvador, segundos antes de dar início à sua leitura religiosa para com os demais, (...)  poderia ser um "running gag", mas é uma reflexão da nossa capacidade de superar adversidades, cinicamente ligada ao estatuto que ansiamos ter neste mundo.” Ler aqui

 

#06) O Fim do Mundo

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“O Fim do Mundo” “captura” um universo em extinção e o encara como a sua propriedade, preservado em âmbar, neste caso em filme com as promessas da sua “eternidade”. Uma coprodução luso-suíça que envergonha muitos da sua espécie e da sua nacionalidade pela forma como bravamente utiliza o “know-how”, pavimento de sugestões, fora-de-campos e o “desenrasque” (palavra tão portuguesa) para nunca perder a credibilidade deste quadrante de violência em cada esquina.” Ler aqui

 

#05) Portrait de la Jeune Fille en Feu

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Jean-Claude Brisseau deixou-nos somente há poucas semanas, mas é um facto que sentimos aqui uma réstia da sua vida no convívio espectral que Portrait de la jeune fille en feu estabelece entre a carnalidade dos corpos das atrizes até às premonições de um fim próximo: “Porque que é que os amantes sempre pensam que estão a inventar o romance?“. Não se fica pela coincidência o nome da realizadora com o filme Celine de Brisseau, ou do referido contrato com as entidades extranaturais, mas também a exploração do prazer feminino, embrulhado sob uma definição de romance platónico, que já por si é um dos temas cada vez mais tabus para direções masculinas.” Ler aqui [texto escrito durante a sua estreia no Festival de Cannes]. 

 

#04) It Must be Heaven

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“Portanto, em “It Must Be Heaven” somos deixados à geopolítica e com isso à globalização da sua mensagem, partindo para Paris até Nova Iorque, reconhecendo as metrópoles como um novo exotismo. Elia Suleiman filma-se a si próprio perante uma narrativa episódica, nada de igualmente novo na sua filmografia, porém, a sua costura autoral é gradualmente entorpecida perante um jogo de vontade. Saindo de Nazaré com um medo transluzente no seu olhar, deixando para trás os limoeiros que observa da sua varanda, as mulheres beduínas que carregam iogurtes pelo olival a dentro e os sacerdotes enfurecidos perante os rituais interrompidos (desta vez sem intervenção divina), e encarando um “Novo Mundo” com quem sente na pele a (desacreditada) Guerra sem fim (até mesmo o seu recorrente “I put a spell on you” entra na festa como uma recordação agridoce).” Ler aqui

 

#03) A Vida Invisível 

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“Este talvez seja, possivelmente, um dos filmes brasileiros mais belos dos últimos anos, que entra em diálogo com o mais belo produzido desta década – Elena, de Petra Costa. Ambos tornam-se cúmplices à melancólica derrota do desejo, o reencontro de um amor que só poucos perceberão a sua dimensão e que é disposto como uma busca à eternidade. A união que se desmaterializa como uma fantasia perante a ausência.” Ler aqui

 

#02) About Endlessness

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““Da Eternidade” nada restará (nem mesmo as ideologias com que abraçamos, aqui de maneira pictórica numa recriação do quadro “O Fim de Hitler”, de Kukryniksy), a futilidade da nossa sociedade que depende do transporte diário que encaminha milhões para as suas respetivas habitações como o seu mais consagrado Deus, marcando oposição a toda aquela matéria que supostamente constitui a alma. A nossa existência é ridícula, e até mesmo mesquinha, e Roy Andersson bem o sabe.” Ler aqui

 

#01) Martin Eden

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“Martin Eden” é, para todos os efeitos, um filme de coração-artista: tumultuoso e inquietante numa sufocante ânsia em criar a todo o custo. É assim a personagem (figura refém do desempenho anárquico e igualmente magistral de Luca Marinelli), é assim a obra que busca livremente os sopros do homónimo trabalho literário de Jack London (de cariz autobiográfico) para proclamarem como seus numa Itália abstrata e enevoada quanto à perceção de século XX.” Ler aqui

 

Menções honrosas - Small Axe: Lovers Rock, Mosquito, Uncut Gems, Da 5 Bloods, Soul

#Metoo no Homem Invisível

Hugo Gomes, 05.03.20

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Há anos que a Universal Pictures anseia em devolver vida à sua galeria de monstros clássicos, já praticamente cedidos ao domínio público, e integrá-los num universo partilhado, cobiçando os moldes da Disney e do seu departamento Marvel. Durante as constantes “reanimações”, foram muitos os fracassos, desde um início corriqueiro do vampiro-rei de Bram Stoker ("Dracula: Untold Story") até à múmia do Egipto vergada aos egos de Tom Cruise e às delirantes ambições do estúdio em potenciar uma eventual saga (o "Dark Universe").

Graças a esses erros e o limbo que serviu de destino a muitos outros projetos não-concretizados (uma “Noiva de Frankenstein” de Angelina Jolie e até mesmo um “Homem-Invisível” com Johnny Depp), o estúdio requisitou os serviços da Blumhouse, a produtora que opera à imagem do seu produtor Jason Blum e tem como lema de construir um legado de obras de género com custos baixíssimos, para explorar um dos seus principais patrimónios, “O Homem Invisível” (“The Invisible Man”), uma das criações do “pai da ficção científica" H.G. Wells. Para o lugar de capataz de projeto foi contratado um artista habituado a estas andanças de "low cost" - Leigh Whannell - que se tem emancipando de mero suporte “criativo” de James Wan (“Saw”, “Insidious” e “Dead Silence”) e avançou para uma estética com base na sugestão e do desenrasque (basta ver “Upgrade” e o seu distinto "know-how").

Através de “O Homem Invisível”, Whannell pôde trabalhar, arquitetar e moldar esse efeito de instigação através de um antagonista invisível e para tal, era imperativo ter à sua mercê um(a) protagonista capaz de nos fazer acreditar em entidades e “mãos invisíveis”... sem ser a do capitalismo. A eleita é Elisabeth Moss, que integra a ação como um assumido caco humano, dubiamente frágil, psicologicamente desequilibrada e, mais do que tudo, alicerçada num arquétipo de feminino passivo-agressivo. Uma personagem forte, sem com isso obedecer ao estabelecido “cabide” de Hollywood. A atriz é esse vetor que torna “O Homem Invisível” fortemente emocional, quer no seu "pretexto" científico (o célebre "MacGuffin", como foi popularizado por Hitchcock), quer na sua alusão à violência doméstica ou abusos de poder.

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Sim, o clássico literário de H.G. Wells depara-se aqui com a sua versão #MeToo, entendida como um atalho aos mais diversos e recentes escândalos desta área. E, apesar disso, Whannell (que também é autor do argumento) nunca o reduz a uma panfletária "hastag": a protagonista "veste" uma ambiguidade, explorando o meio caminho entre a vítima "scream queen" e a vingativa heroína "final girl". Se Elisabeth Moss representa a parte racional e emotivo do filme, a sua imaculada atmosfera é fortalecida pela ginástica de Whannell para recriar ritmo por vias de uma câmara desengonçada que reage por instinto e uma música minimalista (lições estudadas por John Carpenter).

Ou seja, soube-se criar em “O Homem Invisível” uma coletânea de suspense de envolvências clássicas, do terror de facaria à dinâmica ação do "one-shot" (os planos-sequências que mapeiam o minado território numa espécie de "home invasion" destilado), para respeitar o lado perverso dos escritos de Wells e o modernismo da nossa veloz realidade (a contemporaneidade está na abordagem, no desenvolvimento das personagens e não somente no estilo e cadência).

Se haverá sequela, universo partilhado ou "spin-offs" de qualquer natureza ainda é cedo para prever, mas, por enquanto, Leigh Whannell conseguiu um filme que vive por si só e, ao contrário do seu “monstro”, não tenciona mesmo passar despercebido. E com isso temos aqui uma entusiasta surpresa do cinema de género entregue por um grande estúdio de Hollywood.