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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O medo é um fantasma mais “penado” que Rebecca.

Hugo Gomes, 29.10.23

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Joan Fontaine em "Rebecca" (Alfred Hitchcock, 1940)

Sentir medo será à partida um lugar comum no dia a dia dos humanos, na verdade, senti-lo pode muito bem ser um dos clichês mais evocados na vida, não só naquilo a que chamamos de quotidiano, mas também na “vida do cinema”. A nossa existência está cheia de clichês que a sétima arte adotou, e viceversa, sim, porque, se por vezes eu tenho medo de tomar duche de cortina fechada, não foi porque o aprendi na serenidade da minha rotina, mas porque em algum momento, o cinema me mostrou que cenas em chuveiros, podem ser efetivamente dramáticas, e como já devem ter reparado, estou de forma muito clichê a referir-me ao plano do filme “Psycho”, em que a personagem de Janet Leigh é surpreendida por um assassino durante o banho. 

Os clichês foram roubados de um lado para o outro, e sinto que muitas vezes já não sei distinguir o que é que vem da realidade, ou o que é apenas ênfase da ficção. Por exemplo, nunca caminharam à noite e pensaram que a qualquer momento ia aparecer o Michael Myers? Já estiveram sozinhos num sótão e sentiram que a probabilidade do Ghostface surgir era altíssima? Ou ainda, numa sala de uma avó junto a um relógio daqueles que fazem muito barulho, nunca se perguntaram o que é que o Padre do “Exorcista”, diria naquela circunstância? O medo está em todo o lado, e acho que muitas vezes, ampliado por aquilo que o cinema nos deu. 

Por falar em atrizes nos filmes de Alfred Hitchcock, há vários depoimentos de personalidades da indústria, que partilharam várias situações sobre a falta de sensibilidade do realizador, em dirigir as atrizes que com ele trabalhavam. Muitos são os testemunhos, que apontam para o facto das mesmas terem sido terrivelmente manipuladas no set, para constantemente estarem em tensão, com o objetivo de tornar o medo, real nos seus rostos, tão real que a câmara o captaria implacavelmente. 

Medo, o realizador queria provocar medo nas intérpretes, queria juntar aos seus olhares intensos e doces, um ingrediente que nos provocasse a nós espectadores, pavor. A doçura do medo no olhar, tão perversamente perpetuada por Hitchcock, ficou consequentemente iconizada no cinema do século XX.

Embora mais conhecida pela sua leveza em comédias e romances, também Doris Day experienciou o medo nos filmes do senhor Alfred, em “The Man who Knew too Much”, com a sua complexa e delicada personagem Josephine Mckenna, provou os dissabores da intensidade de um homem, que queria realizar mais do que a ficção dos próprios filmes. 

A esplêndida Grace Kelly, também ela ao longo de três longas-metragens, mergulhou nas tensões de um realizador obcecado pela sua imagem, bom depois decidiu que afinal queria mesmo era ser princesa, o que também não deixa de ser um bocadinho assustador. Viram? Mais um momento em que não percebemos muito bem quem é que está a imitar quem, se a vida, se a ficção ou se todas ao mesmo tempo, de qualquer das formas, deixar de ser atriz para ser princesa do Mónaco, deve dar um medo dos diabos. 

Joan Fontaine em “Rebecca”, que a psicologia adotou para explicar mais um complexo, aqui relacionado com os medos do passado, medo dos fantasmas do passado, neste caso bem literal, já que o próprio do fantasma em questão, aqui é mesmo o espírito de uma ex-mulher que deambula pela casa, tentando terminar com a paz do casal. 

Se nunca tiveram que aturar uma assombração dessas, onde pessoas obcecadas pelos vossos companheiros vos tentam incendiar a vida (para quem viu o filme, perceberão a escolha do verbo incendiar), que bom para vocês, aqui Fontaine teve não só que aturar histórias do passado, como também um Hitchcock “passado”. 

O medo está em todo o lado, desenganem-se aqueles que pensam que o medo está só nos thrillers, filmes de terror e suspense, o medo vive até nas comédias mais românticas, ou acham que em “Love actually”,  a personagem de Colin Firth não sentiu medo de falhar, enquanto caminhava por um típico bairro Lisboeta, para declarar o seu amor? 

O medo vive entranhado nas nossas vidas e arrisco a dizer que até o mais feroz dos vilões, ainda que na ficção, o sentirá em grande escala, ou acham que os pesadelos do próprio Freddy Krueger, são mais leves que os das crianças que sonhavam com ele? Dada a circunstância da personagem, não me parece. Freddie Krueger tem medo, medo de si mesmo, medo de não trazer medo suficiente para a sua vingança, ele tem medo da sua própria história.

E o medo de não sentir medo? Bom, sobre esse atrevo-me sempre com muito cuidado, porque o medo é também ele uma medida exímia que nos livra muitas vezes de tantos males. Por hoje fico-me  pelo medo debruçado no cinema, porque quando a tela se apaga e as luzes se acendem, posso voltar tranquila para o meu quotidiano sereno e feliz, mas onde tantas vezes insisto para que seja efusivo, dramático e belo como aquele que aprendi a ver nos filmes. 



*Texto da autoria de Mia Tomé, atriz, voice artist e criadora, foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian para estudar no The Lee Strasberg Theatre and Film Institute, em Nova Iorque. É licenciada em Teatro pela ESTC, e Mestre em Educação Artística pela FBAUL, onde investigou o tema “Cinema e Educação”. Foi autora e apresentadora do programa “Querem Drama?” no Canal Q, mas também do “Por uma Canção” na Antena 3. Atualmente tem em mãos Projeto Natália, que celebra o centenário de Natália Correia. Desde 2021 que está a desenvolver um projeto no Arizona, sobre as mulheres do Oeste Norte Americano.

A bruma é a resposta dos nossos medos

Hugo Gomes, 17.07.17

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“The Fog” é nas suas possibilidades o filme mais convencional e conservador de John Carpenter, título que viria a ser batido pelo até então derradeiro “The Ward” (“O Hospício”). Esta é a sua obra que mais facilmente condensa os primários elementos do género de terror clássico, sem com isto afirmar que nos deparamos com um nevoeiro “básico” ou rotineiro. Carpenter faz uso da escuridão, da luz e por sua vez a sugestão (não nos são demonstrados os “espectros-monstros” na sua totalidade) para orquestrar uma ambiciosa história de assombração, ao invés de um marco, edifício ou lugar, é uma cidade amaldiçoada sob a forma de uma praga “bíblica”, uma fobia patológica endereçada à condenação.

Mas começando pelo início, e porque Carpenter assume esta obra como um portento do seu terror, na sequência inaugural vislumbramos jovens ao redor de uma fogueira e o ancião Mr. Machen (John Houseman) pronto a relatar a história que os irá arrepiar a partir dali: “11:55, quase meia-noite. Tempo que sobra para mais uma história. Uma história mais antes das 12:00, para nos manter quentes. Em cinco minutos, será o dia de 21 Abril. (…)“.

Uma narração vivida pelas voluntárias pausas e a voz trémula e sinistramente confiante de Houseman como cúmplices, ao longe são ouvidos os sinos, outrora informantes do horário, agora encarando-se como trovantes ao auxílio do relato em si. “12:00, dia 21 de Abril“, o alerta foi dado ao espectador quanto a este terror prestes a emergir. Nesta sequência somos devolvidos à década de 30, com Edward Van Sloan a avisar-nos de forma premonitória dos horrores por detrás da cortina em “Frankenstein” (James Whale, 1932) – “Será provavelmente demasiado horrível para vocês. Então, se algum de vocês sente que não deve submeter os nervos a tal tensão, agora é a chance de, uh … Bem, nós o avisamos.

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The Fog” arranca então sob os acordes do próprio Carpenter para preencher uma atmosfera em constante ebulição para uma eventual catástrofe, uma calamidade sob a forma de nevoeiro e sob a aura de uma sinistra sobrenaturalidade. Antonio Bay é a cidade que nos acolhe, ficamos a conhecer os seus “pacatos” habitantes, a locutora de rádio do farol-monumento que conforta os noturnos (a confortante voz de Adrienne Barbeau), e dos andarilhos que chegam nas “piores das alturas” (Jamie Lee Curtis a submeter-se a mais uma perseguição “carpentiano”).

Há uma comemoração, um dia histórico, uma celebração, que mais tarde se vai descobrir num prematuro plot twist – “A celebração desta noite é um travesti. Nós honramos assassinos” – assim despertando um exercício de mortos-vivos espectrais. O que faz “The Fog" funcionar em todo o seu esplendor, para além da sua atmosférica esfera de um terror semi-antológico, é a sua capacidade de sugestão. A neblina propaga-se nos momentos de tensão e, tal como sucedera com “Jaws”, de Steven Spielberg, ou muito antes disso, “The Duel”, o efeito sugestão tem primazia, nunca cedendo ao explícito de revelar na totalidade o seu monstro, neste caso, monstros.

Porém, toda esta fantasmagórica corrida contra o tempo leva-nos a uma perversa perceção: afinal, tudo não é mais que uma história, um conto de fantasmas narrado pelo ancião de forma a assustar o seu público … o seu jovem público. Será esse “velho” Carpenter o incitador de pesadelos?